O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

domingo, 30 de janeiro de 2011

O PROCESSO NO QUAL DEUS É REU


por MARCELO BARROS




No ano passado, as agências norte-americanas noticiaram que Ernie Chambers, senador por Nebraska, abriu na justiça dos Estados Unidos, um processo criminal contra Deus. Ele descobriu que, por trás de muitas iniciativas terroristas existe um fanatismo religioso. Decidiu, então, acusar o Criador de ser responsável pelas contínuas ameaças terroristas que prejudicam milhões de pessoas no mundo inteiro. Culpou também a Deus de provocar terremotos, furacões, guerras e nascimentos de crianças com má formação. Além disso, Deus teria ainda distribuído, em forma escrita, documentos considerados sagrados, como a Bíblia, que, de acordo com a acusação, servem para transmitir medo e insegurança às pessoas só com a finalidade de conseguir obediência total e servil. O processo caminhou até o Tribunal de Justiça, mas o Juiz encarregado do processo respondeu que não poderia abrir o processo contra Deus e condená-lo porque Deus não tem um endereço fixo e reconhecido. “Se o senhor não tem um endereço postal certo do acusado e um número de telefone com o qual nos possamos colocar em contato com ele, não temos como convocá-lo a uma audiência e julgá-lo”. “Mesmo à revelia, podemos fazer o julgamento, mas depois, como contatá-lo?”.

Este fato pode parecer quase folclórico, mas tem a sua seriedade e até sua consistência. Em 2003, um escritor sério como José Saramago, prêmio Nobel de literatura, declarou: “De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus”.

Quem é crente em qualquer religião ou tradição espiritual gostaria de contestar que nosso Deus é fonte de paz e unidade e nunca de divisão ou violência. Entretanto, a história mostra que isso não é tão simples. De fato, todas as grandes religiões da humanidade foram envolvidas em conflitos violentos. No decorrer da história, infelizmente, o Cristianismo foi a religião que mais patrocinou ou legitimou guerras, atos de intolerância e de violências. Graças a Deus, hoje, ministros de todas as Igrejas têm se posicionado pela paz e um dos fenômenos mais importantes do século XXI tem sido a proliferação de congressos e organizações para o diálogo entre as religiões.

No Brasil, em 2007, uma portaria assinada pelo Presidente da República consagra o dia 21 de janeiro como dia nacional contra a intolerância religiosa.

Se naquele processo, o juiz norte-americano aceitasse, se poderia dizer que Deus tem sim endereço neste mundo. Jesus disse no Evangelho: “Quem der até um copo de água fria a um pequenino em meu nome é a mim que está dando”. Deus mora onde moram os pequeninos e pobres do mundo. É claro que isso muda a imagem de Deus que a maioria de nós recebeu quando criança. O padre Ernesto Balducci, filósofo e espiritual italiano, dizia com convicção: “Enquanto não renunciarmos à idéia de um deus onipotente, não compreenderemos profundamente a fé cristã”.

De fato, a imagem clássica de um Deus todo-poderoso, de acordo com a visão de poder deste mundo, responsável por tudo o que acontece e sem o qual nada acontece, merece mesmo a acusação e o processo do senador Chambers. Atualmente, a cada dia, aumenta o número de crentes de todas as religiões que testemunham: Deus é fonte de paz porque ele mesmo é Amor. Em um livro de meditações cotidianas, o irmão Roger Schutz, prior da comunidade ecumênica de Taizé, deixou claro: “Deus não castiga ninguém. Deus só pode amar e só ama. Se não, não seria Deus”.

Atualmente somos todos chamados a nos tornar crianças para aprender de Jesus a espiritualidade mais profunda. Até hoje, todos nós somos chamados a valorizar a criança divina que está adormecida no mais profundo de nosso coração. Muitas vezes, a tradição ocidental fixou-se em métodos de espiritualidade que tornam as pessoas sérias demais, artificialmente adultas. O Mestre Eckhart, místico medieval, ensinava que “cada um de nós tem uma dimensão mística. Esse ser místico é a criança que existe dentro de nós”. Na música popular brasileira, Milton Nascimento tem a música “Bola de Gude, Bola de meia”, na qual canta: “Dentro de mim mora uma criança, um moleque. Quando em mim, o adulto fraqueja, a criança vem e me dá a mão”.


É DANDO QUE SE RECEBE?

por LEONARDO BOFF


Estamos em tempos de montagem de governos. Há disputas por cargos e funções por parte de partidos e de políticos. Ocorrem sempre negociações, carregadas de interesses e de muita vaidade. Neste contexto, se ouve citar um tópico da inspiradora oração de São Francisco pela paz “é dando que se recebe” para justificar a permuta de favores e de apoios onde também rola muito dinheiro. É uma manipulação torpe do espírito generoso e desinteressado de São Francisco. Mas desprezemos estes desvios e vejamos seu sentido verdadeiro.

Há duas economias: a dos bens materiais e a dos bens espirituais. Elas seguem lógicas diferentes. Na economia dos bens materiais, quanto mais você dá bens, roupas, casas, terras e dinheiro, menos você tem. Se alguém dá sem prudência e esbanja perdulariamente acaba na pobreza.

Na economia dos bens espirituais, ao contrario, quanto mais dá, mais recebe, quanto mais entrega, mais tem. Quer dizer, quanto mais dá amor, dedicação e acolhida (bens espirituais) mais ganha como pessoa e mais sobe no conceito dos outros. Os bens espirituais são como o amor: ao se dividirem, se multiplicam. Ou como o fogo: ao se espalharem, aumentam.

Compreendemos este paradoxo se atentarmos para a estrutura de base do ser humano. Ele é um ser de relações ilimitadas. Quanto mais se relaciona, vale dizer, sai de si em direção do outro, do diferente, da natureza e até de Deus, quer dizer, quanto mais dá acolhida e amor mais se enriquece, mais se orna de valores, mais cresce e irradia como pessoa.

Portanto, é “dando que se recebe”. Muitas vezes se recebe muito mais do que se dá. Não é esta a experiência atestada por tantos e tantas que dão tempo, dedicação e bens na ajuda aos flagelados da hecatombe socioambiental ocorrida nas cidades serranas do Rio de Janeiro, no triste mês de fevereiro, quando centenas morreram e milhares ficaram desabrigados? Este “dar” desinteressado produz um efeito espiritual espantoso que é sentir-se mais humanizado e enriquecido. Torna-se gente de bem, tão necessária hoje.

Quando alguém de posses, dá de seus bens materiais dentro da lógica da economia dos bens espirituais para apoiar aos que tudo perderam e ajudá-los a refazer a vida e a casa, experimenta a satisfação interior de estar junto de quem precisa e pode testemunhar o que São Paulo dizia:”maior felicidade é dar que receber”(At 20,35). Esse que não é pobre, se sente espiritualmente rico.

Vigora, portanto, uma circulação entre o dar e o receber, uma verdadeira reciprocidade. Ela representa, num sentido maior, a própria lógica do universo como não se cansam de enfatizar biólogos e astrofísicos. Tudo, galáxias, estrelas, planetas, seres inorgânicos e orgânicos, até as partículas elementares, tudo se estrutura numa rede intrincadíssima de inter-retro-relações de todos com todos. Todos co-existem, inter-existem, se ajudam mutuamente, dão e recebem reciprocamente o que precisam para existir e co-evoluir dentro de um sutil equilíbrio dinâmico.

Nosso drama é que não aprendemos nada da natureza. Tiramos tudo da Terra e não lhe devolvemos nada nem tempo para descansar e se regenerar. Só recebemos e nada damos. Esta falta de reciprocidade levou a Terra ao desequilíbrio atual.

Portanto, urge incorporar, de forma vigorosa, a economia dos bens espirituais à economia dos bens materiais. Só assim restabeleceremos a reciprocidade do dar e do receber. Haveria menos opulência nas mãos de poucos e os muitos pobres sairiam da carência e poderiam sentar-se à mesa comendo e bebendo do fruto de seu trabalho. Tem mais sentido partilhar do que acumular, reforçar o bem viver de todos do que buscar avaramente o bem particular. Que levamos da Terra? Apenas bens do capital espiritual. O capital material fica para trás.

O importante mesmo é dar, dar e mais uma vez dar. Só assim se recebe. E se comprova a verdade franciscana segundo a qual ”é dando que recebe” ininterruptamente amor, reconhecimento e perdão. Fora disso, tudo é negócio e feira de vaidades.

Leonardo Boff é autor de A oração de São Francisco, Vozes 2010.

PAULO, O APÓSTOLO


por FREI BETTO



Na última terça, 25, celebrou-se a festa de Paulo de Tarso, que dá nome à capital paulista. Sobre ele temos informações graças a 13 cartas que escreveu e ao relato do evangelista Lucas, com quem fez viagens missionárias, intitulado Atos dos Apóstolos – documentos que integram o Novo Testamento.

Paulo ou Saulo nasceu provavelmente no ano 1 de nossa era e faleceu em 64, aos 63 anos, em Roma. Seus pais haviam emigrado da Palestina para Tarso. Judeus piedosos, evitaram matricular o filho em escolas gregas. Tão logo completou 14 anos, Paulo foi remetido a Jerusalém, onde morava sua irmã casada. Estudou na mais renomada escola rabínica da época: “aos pés de Gamaliel” (Atos 22, 3).

Seus textos demonstram sólida formação teológica. E era excelente escritor. Seu “Hino ao Amor” (1 Coríntios 13, 1-13) é dos mais belos poemas da literatura universal: Ainda que eu falasse / a língua dos homens e dos anjos, / e não tivesse amor,/ seria como o bronze que soa / ou o címbalo que tine…

Paulo encontrava-se entre os apedrejadores do jovem levita Estêvão, condenado por “blasfêmia” por haver se tornado cristão. As vestes dos executores foram depositadas “aos pés de um jovem, chamado Saulo” (Atos 7, 58).

Tornou-se inimigo dos cristãos: “Persegui de morte esta doutrina, acorrentando e encarcerando homens e mulheres” (Atos 22, 4). Tinha ele 28 anos: “Fui com o objetivo de ali prendê-los (os cristãos) e trazê-los acorrentados a Jerusalém, onde seriam castigados. Ora, estando eu a caminho e aproximando-me de Damasco, pelo meio-dia, de repente me cercou uma intensa luz do céu. Caí por terra e ouvi uma voz que me dizia: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” Respondi: “Quem és, senhor?” E ele me disse: “Sou Jesus Nazareno, a quem persegues.” (Atos 22, 5-10).

Em Damasco, ao pregar nas sinagogas, despertou-lhe a vocação apostólica. Pouco depois retirou-se ao deserto, talvez para se preparar, espiritual e teologicamente, em alguma comunidade judaica-cristã. Ali permaneceu 13 anos! Nada se sabe sobre esse período da vida dele.

Aos 41 anos, Paulo dirigiu-se a Jerusalém para “visitar” o chefe da nascente Igreja, Pedro (Gálatas 1, 18).

Paulo dedicou mais de 14 anos a viagens missionárias. Percorreu cerca de 15 mil km e enfrentou todo tipo de dificuldades: foi açoitado, apedrejado, preso, assaltado; naufragou, sentiu-se traído, passou fome, frio e noites sem dormir (2 Coríntios 11, 24-27), exposto “ao perigo a todo o momento” (1 Coríntios 15, 30).

Nem sempre é fácil adequar a mudança do modo de pensar com a do agir. Foi o que ocorreu a judeu-cristãos de Jerusalém e a Pedro. Acreditavam que um pagão convertido ao cristianismo deveria, primeiro, aceitar certos rituais judaicos, como a circuncisão e as práticas de pureza. Paulo discordava. Para ele, um pagão podia abraçar a fé em Cristo sem a menor observância à lei mosaica. Frente ao impasse, no ano 51 ele participou, em Jerusalém, do primeiro Concílio da história da Igreja.

Logo depois, em Antioquia, ocorre um incidente entre ele e Pedro. Eis o que Paulo escreveu na Carta aos Gálatas (2, 11-14): “Quando Pedro foi a Antioquia, eu o enfrentei em público, porque ele estava claramente errado. De fato, antes de chegarem algumas pessoas da parte de Tiago (bispo de Jerusalém), ele comia com os pagãos; mas, depois que chegaram, Pedro começou a evitar os pagãos e já não se misturava com eles, pois tinha medo dos circuncidados. Os outros judeus também começaram a fingir e até Barnabé se deixou levar pela hipocrisia. Quando vi que eles não estavam agindo direito, conforme a verdade do Evangelho, eu disse a Pedro, na frente de todos: “Você é judeu, mas está vivendo como os pagãos e não como os judeus. Como pode, então, obrigar os pagãos a viverem como judeus?””

Paulo não era contra os judeu-cristãos observarem a lei mosaica. Encarava isso com tolerância. A questão se complicou ao perceber Pedro mudar seu modo de agir e passar a admitir que a salvação não viria apenas como dom gratuito de Cristo, mas também pelo cumprimento da lei de Moisés. Ao retomar antigos costumes judaicos, Pedro fez os pagão-cristãos se sentirem inferiores aos judeu-cristãos, como se fossem fiéis de segunda classe.

Paulo fazia questão de não ser um peso às comunidades que o acolhiam. Sustentava-se com o seu ofício de fabricante de tendas e de objetos de couro (Atos 18, 3).

Ao chegar a Atenas, sugeriram-lhe ir ao Areópago, a colina de Marte, onde se reuniam os interessados em filosofia. Ali exercitou toda a sua pedagogia evangelizadora: valorizou seus ouvintes como “extremamente religiosos” (Atos 17, 22) e, ao deparar-se com um altar dedicado “ao Deus desconhecido”, soube tirar proveito: “Aquele que venerais sem conhecer é este que vos anuncio” (Atos 17, 23). E parafraseando Arato, poeta conhecido pelos gregos, concluiu que Deus “não está longe de cada um de nós; é nele que vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17, 27-28).

Para tempos de fundamentalismos religiosos, Paulo deixou importante legado por seu testemunho de quem passou de perseguidor a perseguido; de membro da elite a pregador itinerante; de fariseu intolerante a cristão dotado de espírito ecumênico; de legalista a misericordioso.

Paulo soube ser grego com os gregos e judeu com os judeus; respeitou a hierarquia da Igreja sem deixar de criticar inclusive o papa, Pedro; demonstrou que o contrário do medo não é a coragem, é a fé.

Místico, Paulo ousou exclamar: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gálatas 2, 20).

PAULO, O APÓSTOLO artigo de Frei Betto

Frei Betto é escritor, autor do romance “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org> - twitter:@freibetto


Copyright 2011 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

CHUVAS NO RIO DE JANEIRO: TRAGÉDIA QUE SE REPETE ANUALMENTE


por MARIA CLARA




Tom Jobim cantou e Elis Regina imortalizou em sua voz única o fenômeno das águas de março que fecham o verão e trazem promessa de vida ao coração. No entanto, as águas de janeiro e fevereiro (que, às vezes, começam a cair já em dezembro) chegam todos os anos não como promessa de vida, mas como realidade dura, violenta e dolorosa de morte, desaparecimento de pessoas, desabrigo de centenas e um rastro amargo de tristeza e dor.
Todo o Brasil e mesmo o exterior estão vendo a situação que o Estado do Rio de Janeiro enfrenta com as chuvas e as enchentes nas principais cidades da região serrana, feitas para o descanso do calor da grande cidade: Teresópolis, Petrópolis e Nova Friburgo.
Milhares de jornais em todo país divulgam a cada hora o número de mortos já encontrados e este passa de oitocentos. Há centenas de desaparecidos e seus familiares vivem a indizível angústia de procurar corpos que não se sabe onde estão nem se poderão ser localizados.
Ao lado disso, a tristeza do desabrigo de quem perdeu tudo que levou uma vida inteira para construir: uma casa, objetos, eletrodomésticos. Tudo. A imagem dos destroços das casas pelas encostas, o desalento das pessoas nos abrigos são a própria imagem da desolação.
O sepultamento das vítimas se dá sem velório e suas covas são improvisadas nos cemitérios das cidades atingidas, insuficientes para a quantidade de corpos a enterrar. O macabro desfile de pessoas enterrando parentes, um ou mais de um, continua diante de nossos olhos perplexos com a devastação que as águas de janeiro fizeram e ameaçam ainda fazer. As buscas pelos desaparecidos continuam, mas a chuva atrapalha muito e retarda o trabalho da Defesa Civil e dos bombeiros.
O que choca mais, no entanto, quando se reflete sobre essa tragédia é que ela vem se tornando tristemente crônica. Repete-se anualmente como um filme que se vê de novo, e de novo e de novo. Já em 1966, na cidade do Rio de Janeiro, choveu 245 milímetros em 24 horas e os deslizamentos de terra nas favelas causaram mais de 140 mortes. O então governador Negrão de Lima foi duramente interpelado pela população e foram esperadas providências nas encostas, nos rios... nunca tomadas. Depois disso houve outras, muitas outras tragédias como essa. Mas nos últimos anos parece que a coisa vem se agravando. Em fevereiro de 2009, a chuva havia deixado 3.605 desalojados só no estado do Rio. Na virada para 2010, uma tragédia em Angra dos Reis (RJ) deixou morte e tristeza em quatro famílias. As poucas pessoas que se salvaram somente o fizeram porque caíram no mar. Agora, em janeiro de 2011, essa tragédia toma a maior proporção de todas já vistas.
O governador Sérgio Cabral culpou o tempo: a intensidade dos temporais, a violência das chuvas, etc. E as pessoas: a ocupação irregular das encostas, em áreas de deslizamento, de maneira irresponsável etc. Ora, ao que se sabe, a responsabilidade pela ocupação em áreas de risco é do governo municipal. Porém, ao município interessa a arrecadação de impostos, o incremento do turismo. O resultado é que não só moradias populares são construídas nas perigosas encostas. Pousadas, hotéis e condomínios de luxo foram proliferando e se multiplicando ao longo do tempo. As construções enfraquecem o solo, eliminando a mata nativa, cujas raízes ajudam a fixar a terra. Além disso, os rios, não dragados, transbordam e provocam catástrofes, como a morte da família inteira de Erick de Carvalho em uma casa de veraneio no Vale do Cuiabá.



O impacto da tragédia, para os sobreviventes, vai além das perdas materiais. Deixa profundas feridas psicológicas, dificilmente cicatrizáveis. Num momento assim, a mobilização das comunidades torna-se tão importante quanto o amparo governamental. Apoio psicológico está sendo providenciado para os atingidos. No entanto, é de se esperar que finalmente sejam tomadas enérgicas providências de fiscalização nas encostas, desativando as residências inviáveis e dando suporte às construções, para que tragédias como essa não voltem a acontecer. Não é possível que todos os verões se transformem num pesadelo de proporções cada vez piores, quando correções na estrutura de construção e medidas preventivas podem ser tomadas.



Que cheguem as águas de março com promessa de vida. Mas que não mais as águas de janeiro e fevereiro provoquem tantos estragos e custem tantas vidas humanas como até agora.


Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)


Copyright 2010 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização.
Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)


segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

NOEL ROSA: O FEITIÇO QUE NÃO ACABOU

por MARIA CLARA BINGEMER


Cem anos de Noel, certamente um dos maiores, talvez o maior compositor popular brasileiro. E não saio de meu espanto com duas coisas: a primeira é como uma pessoa que morreu tão jovem – aos 26 anos – conseguiu criar tanta música bonita, até hoje encantando e enfeitiçando ouvidos e corações. A outra é a pouca importância que a mídia dá ou parece dar a esse acontecimento.
Qualquer espirro de um jogador de futebol, de um roqueiro, merece mais espaço que o centenário do genial compositor com pouco queixo, saúde frágil, vida breve, mas muitíssimo e transcendente talento. Autor de peças imortais como: Fita amarela, Feitiço da Vila, Três apitos, O orvalho vem caindo e por aí vai, Noel perenizou Vila Isabel e o Rio de Janeiro em suas canções. O bairro de Noel, Vila Isabel, tornou-se mitológico e imortalizado devido à lira do compositor. Com sua verve de poeta, Noel disse que ali na Vila, quem era bacharel não tinha medo de bamba. E proclamou que se São Paulo dava café e Minas, leite, o que a Vila tinha de melhor para dar era samba. E como dava! Tanto samba e de tanto poder sedutor fez o jovem Noel, de família de classe média, estudante do tradicional Colégio São Bento e da Faculdade Nacional de Medicina largar tudo e optar irremissível e apaixonadamente pela boemia. Fumando, bebendo, se apaixonando, namorando mulheres permitidas ou proibidas, Noel varava as noites enchendo de beleza o cancioneiro carioca e brasileiro para todo o sempre. Noel, na verdade, é cronista de uma época. Época de ouro, de encanto e beleza, durante a qual o Rio de Janeiro era sinônimo de vida agradável, musical, boemia. A capital do amor, certamente. Tanto assim que a discografia de Noel é amor do princípio ao fim. Amor e boemia. Amor naquela época combinava com luar, samba, violão, noites em claro. Música para celebrar os amores vividos e bebida e mais música para esquecer os amores impossíveis. Evidentemente que em um universo assim não havia lugar para especulações sobre dinheiro. O boêmio é sempre duro e tem que pedir ao garçom, em uma conversa de botequim, para pendurar a conta da média não requentada e do pão bem quente com manteiga à beça que acabou de comer. Noel dá testemunho dessa época durante a qual o amor era obsessão e enchia a vida inteira, desde a alvorada até o anoitecer, emendando dia com noite e fazendo o amante não ter outro assunto a não ser a amada. A canção Três apitos marca o ritmo do dia da amada que se dirige ao trabalho na fábrica de tecidos. Naquele momento, soa o primeiro apito. No segundo, o poeta pensa na mulher que ama fazendo pano e faz versos para ela junto ao piano. No último, o apito se confunde com a buzina do carro que tenta chamar a atenção daquela que só obedece ao apito de uma chaminé de barro e às ordens do gerente impertinente. Noel Rosa também é um dos principais compositores brasileiros com verdadeira devoção pela mulher, pelas mulheres em geral, e, sobretudo, por aquelas que lhe convocavam o afeto e o coração. Apesar de casado com Lindaura, são conhecidos os relacionamentos do compositor com outras mulheres, presentes em seus versos e sua vida. A admiração de Noel pela mulher como obra-prima da criação assume proporções enormes, a ponto de fazer pensar analogicamente no discurso dos escritos de cavalaria, quando os guerreiros lutavam por Deus, pelo Rei e pela amada de seus pensamentos. Talvez a maior comprovação dessa fervente admiração de Noel pelas mulheres esteja em um de seus principais sambas, o belíssimo Fita Amarela, onde o poeta deseja que em seu enterro, “a mulata sapateie sobre o seu caixão “. Prefere isso a choros e velas de gente hipócrita que o fez sofrer em vida e agora finge que lamenta compungida sua perda. Não tinha muitas ilusões sobre a condição humana, o sensível Noel, de quem a tuberculose nos privou aos 26 anos, após ter composto mais de 300 canções que até hoje nos enfeitiçam e deslumbram com sua beleza. Certamente daria um sorriso de canto de boca ao constatar que se não fosse o empenho de Martinho da Vila, seu centenário passaria em branco até para a escola de samba do bairro que ele imortalizou. Graças a Deus a autoridade de Martinho da Vila se impôs e o GRES Unidos de Vila Isabel adotou como enredo a vida de Noel Rosa, com o samba intitulado Noel: A Presença do "Poeta da Vila”, de autoria do próprio Martinho. O desfile da Unidos de Vila Isabel se deu na segunda-feira de carnaval, no dia 15 de fevereiro deste ano. Quinta a desfilar, recebeu a quarta colocação. Muito pouco para Noel. Mas para nós, que amamos a música, a beleza e o Rio de Janeiro, fica seu legado inesquecível. O feitiço de seu talento que não morreu. Diante de sua partida, só nos resta cantar, saudosos, com Silvio Caldas e Sebastião Fonseca, a canção-elegia. VIOLÕES EM FUNERAL
VILA ISABEL VESTE LUTO, PELAS ESQUINAS ESCUTO, VIOLÕES EM FUNERAL. CHORAM BORDÕES, CHORAM PRIMAS, SOLUÇAM TODAS AS RIMAS, NUMA SAUDADE IMORTAL. ENTRE AS NUVENS ESCONDIDA, COMO DE CREPE VESTIDA, A LUA FICA A CHORAR. E O PRANTO QUE A LUA CHORA, GOTEJA, GOTEJA AGORA, NOS OITIS DO BOULEVARD. ADEUS CIGARRA VADIA, QUE MESMO EM TUA AGONIA, CANTAVAS PARA MORRER. TU VIVERÁS NA SAUDADE, DA TUA GRANDE CIDADE, QUE NÃO TE HÁ DE ESQUECER. ADEUS POETA DO POVO, QUE RESSUSCITAS DE NOVO, QUANDO NA MORTE DESCAMBAS. SINHÔ, DE PELE MAIS CLARA, NO QUAL O SENHOR ENCARNARA, A ALMA SONORA DOS SAMBAS. MEU VIOLÃO CHORA TANTO SOLUÇOS E MUITO PRANTO SOBRE O CAIXÃO DE NOEL ESTÁCIO, MATRIZ E SALGUEIRO TODO O RIO DE JANEIRO CONSOLA VILA ISABEL.


Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
Copyright 2010 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

A HERANÇA DE GANDHI


por MARCELO BARROS




Nesta semana, até 30 de janeiro, aniversário do martírio do Mahatma Gandhi, a Índia e o mundo inteiro recordam sua vida consagrada à paz e procuram a cada ano, reavivar a inestimável herança que Gandhi deixou para a humanidade. Sua luta pacífica através da Satyagraha, o caminho da verdade e ahimsa, a não violência, além de trazer para a Índia a independência política, inspirou líderes como o bispo Desmond Tutu e Nelson Mandela na África do Sul , o pastor Martin-Luther King na luta contra a discriminação racial nos Estados Unidos e todo o trabalho de Dom Hélder Câmara no Brasil da ditadura militar por uma insurreição evangélica a partir da justiça e da paz.

Gandhi foi assassinado no dia 30 de janeiro de 1948 por um hindu fanático que não aceitava que ele, hindu, estivesse morando em um bairro de muçulmanos para vivenciar o diálogo entre as religiões. Atualmente, na Índia, um partido político prega que ser hindu de nacionalidade significa pertencer à religião hinduísta. E assim todos os hindus muçulmanos, judeus ou cristãos são considerados traidores. Infelizmente, mais de 60 anos depois, o mundo de hoje não está mais tolerante e capaz de ser um espaço de convivência nas diferenças. Ao contrário, tem se revelado mais perigoso e intransigente. Por isso, é urgente recordar a herança do Mahatma Gandhi e atualizá-la para nós e para toda a humanidade. Alguns de seus pensamentos percorrem o mundo inteiro e propõem um novo modo de agir: “Comece por você mesmo a mudança que propõe ao mundo”. “Você pode se considerar feliz somente quando o que pensa, diz e o modo como age estiverem em completa harmonia”. Aí está uma profunda indicação de caminho.

Em vários países da América Latina, está crescendo um processo social e político inspirado em Simon Bolívar, venezuelano que no inicio do século XIX propunha libertar os países latino-americanos do domínio espanhol e das injustiças internas como a escravidão e a miséria de tanta gente. Bolívar propunha fazer de toda a América do Sul uma única “pátria grande”, livre e solidária. Para isso, propunha uma revolução baseada na educação para todos e no reconhecimento dos direitos civis e igualdade de todos os cidadãos, índios, negros e lavradores. Atualmente, na Venezuela, este processo político se chama “revolução bolivariana”, no Equador “revolução cidadã” e na Bolívia, “revolução indígena”. Nestes países e em outros, este caminho tem se dado através dos instrumentos democráticos das eleições e da discussão de novas constituições que garantam os direitos de todas as pessoas e grupos até aqui marginalizados. Este caminho baseado nas culturas ancestrais dos povos indígenas e com a participação de muitas comunidades cristãs de base tem assumido como método a não violência de Gandhi e o exemplo de muitos homens e mulheres que consagram a sua vida pela justiça e pela libertação dos povos no caminho da paz. Na Argentina, Adolfo Perez Esquivel, escultor e ativista cristão pelos Direitos Humanos, recebeu o prêmio Nobel da Paz. Também, em 1992, Rigoberta Menchu, índia Maya da Guatemala foi agraciada com o mesmo prêmio por sua luta pacífica pela libertação do seu povo e sua mensagem de esperança para todo o continente.

Nas novas Constituições nacionais, aprovadas no Equador e na Bolívia, um dos princípios fundamentais colocados como meta do Estado é garantir o “bom viver” que cada povo indígena chama de uma forma diferente (suma kawsay ou suma kamana ou ainda com outros nomes), mas significa a opção por uma vida plenamente sadia, baseada no princípio da sustentabilidade ecológica e social e na dignidade de todas as pessoas. O “bom viver” privilegia o coletivo e não o individual e busca uma cultura da sobriedade e da partilha solidária na relação com a Terra e na forma de desenvolver a educação e a saúde. Quem é cristão, logo se recorda de que esta busca de uma vida que seja verdadeira e plenamente vivida é o objetivo pelo qual Jesus de Nazaré define a sua missão: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10, 10).

Apesar de que estes caminhos políticos bolivarianos são intuições latino-americanas e a partir das necessidades do mundo deste início do século XXI, sem dúvida, podem se considerar uma digna e bela realização da herança do Mahatma Gandhi na vida de nossos povos.


UMA LEI DE RESPONSABILIDADE SÓCIO-AMBIENTAL?


por LEONARDO BOFF




Lboff/ responsabilidade sociio-ambientalJá existe a lei de responsabilidade fiscal. Um governante não pode gastar mais do que lhe permite o montante dos impostos recolhidos. Isso melhorou significativamente a gestão pública.

O acúmulo de desastres sócio-ambientais ocorridos nos últimos tempos, com desabamentos de encostas, enchentes avassaladoras e centenas de vítimas fatais junto com a destruição de inteiras paisagens, nos obrigam a pensar na instauração de uma lei nacional de responsabilidade sócio-ambiental, com pesadas penas para os que não a respeitarem.

Já se deu um passo com a consciência da responsabilidade social das empresas. Elas não podem pensar somente em si mesmas e nos lucros de seus acionistas. Devem assumir uma clara responsabilidade social. Pois não vivem num mundo a parte: são inseridas numa determinada sociedade, com um Estado que dita leis, se situam num determinado ecossistema e são pressionadas por uma consciência cidadã que cada vez mais cobra o direito à uma boa qualidade de vida.

Mas fique claro: responsabilidade social não é a mesma coisa que obrigação social prevista em lei quanto ao pagamento de impostos, encargos e salários; nem pode ser confundida com a resposta social que é a capacidade das empresas de se adequarem às mudanças no campo social, econômico e técnico. A responsabilidade social é a obrigação que as empresas assumem de buscar metas que, a meio e longo prazo, sejam boas para elas e também para o conjunto da sociedade na qual estão inseridas.

Não se trata de fazer para a sociedade o que seria filantropia, mas com a sociedade, se envolvendo nos projetos elaborados em comum com os municípios, ONGs e outras entidades.

Mas sejamos realistas: num regime neoliberal como o nosso, sempre que os negócios não são tão rentáveis, diminui ou até desaparece a responsabilidade social. O maior inimigo da responsabilidade social é o capital especulativo. Seu objetivo é maximizar os lucros das carteiras e portofólios que controlam. Não vêem outra responsabilidade, senão a de garantir ganhos.

Mas a responsabilidade social é insuficiente, pois ela não inclui o ambiental. São poucos os que perceberam a relação do social com o ambiental. Ela é intrínseca. Todas empresas e cada um de nós vivemos no chão, não nas nuvens: respiramos, comemos, bebemos, pisamos os solos, estamos expostos à mudanças dos climas, mergulhados na natureza com sua biodiversidade, somos habitados por bilhões de bactérias e outros microorganismos. Quer dizer, estamos dentro da natureza e somos parte dela. Ela pode viver sem nós como o fez por bilhões de anos. Nós não podemos viver sem ela. Portanto, o social sem o ambiental é irreal. Ambos vêm sempre juntos.

Isso que parece óbvio, não o é para a grande parte das pessoas. Por que excluimos a natureza? Porque somos todos antropocêntricos, quer dizer, pensamos apenas em nós próprios. A natureza é exterior, posta ao nosso bel-prazer.

Somos irresponsáveis face à natureza quando desmatamos, jogamos bilhões e litros de agrotóxicos no solo, lançamos na atmosfera, anualmente, cerca de 21 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa, contaminamos as águas, destruímos a mata ciliar, não respeitamos o declive das montanhas que podem desmoronar e matar pessoas nem observamos o curso dos rios que nas enchentes podem levar tudo de roldão.

Não interiorizamos os dados que biólogos e astrofísicos nos asseguram: Todos possuímos o mesmo alfabeto genético de base, por isso somos todos primos e irmãos e irmãs e formamos assim a comunidade de vida. Cada ser possui valor intrínseco e por isso tem direitos. Nossa democracia não pode incluir apenas os seres humanos. Sem os outros membros da comunidade de vida, não somos nada. Eles valem como novos cidadãos que devem ser incorporados na nossa compreensão de democracia que então passa a ser uma democracia sócio-ambiental. A natureza e as coisas dão-nos sinais. Elas nos chamam atenção para os eventuais riscos que podemos evitar.

Não basta a responsabilidade social, ela deve ser sócio-ambiental. É urgente que o Parlamento vote uma lei de responsabilidade sócio-ambiental imposta a todos os gestores da coisa pública. Só assim evitaremos tragédias e mortes.

DARWINISMO SOCIAL


por FREI BETTO




DARWINISMO SOCIAL artigo de Frei Betto

A catástrofe na região serrana do Rio de Janeiro é noticiada com todo alarde, comove corações e mentes, mobiliza governo e solidariedade. No entanto, cala uma pergunta: de quem é a culpa? Quem o responsável pela eliminação de tantas vidas?
Do jeito que o noticiário mostra os efeitos, sem abordar as causas, a impressão que se tem é de que a culpa é do acaso. Ou se quiser, de São Pedro. A cidade de São Paulo transbordou e o prefeito em nenhum momento fez autocrítica de sua administração. Apenas culpou o excesso de água caída do céu. O mesmo cinismo se repetiu em vários municípios brasileiros que ficaram sob as águas.
Ora, nada é por acaso. Em 2008, o furacão Ike atravessou Cuba de Sul a Norte, derrubou 400 mil casas, deu um prejuízo de US$ 4 bilhões. Morreram 7 pessoas. Por que o número de mortos não foi maior? Porque em Cuba funciona o sistema de prevenção de catástrofes naturais. No Brasil, o governo promete instalar um sistema de alerta... em 2015!
O ecocídio da região serrana fluminense tem culpados. O principal deles é o poder público, que jamais promoveu reforma agrária no Brasil. Nossas vastas extensões de terra estão tomadas pelo latifúndio ou pela especulação fundiária. Assim, o desenvolvimento brasileiro se deu pelo modelo saci, de uma perna só, a urbana.
Na zona rural faltam estradas, energia (o Luz para Todos chegou com Lula!), escolas de qualidade e, sobretudo, empregos. Para escapar da miséria e do atraso, o brasileiro migra do campo para a cidade. Assim, hoje mais de 80% de nossa população entope as cidades.
Nos países desenvolvidos, como a França e a Itália, morar fora das metrópoles é desfrutar de melhor qualidade de vida. Aqui, basta deixar o perímetro urbano para se deparar com ruas sem asfalto, casebres em ruínas, pessoas que estampam no rosto a pobreza a que estão condenadas.
Nossos municípios não têm plano diretor, planejamento urbano, controle sobre a especulação imobiliária. Matas ciliares são invadidas, rios e lagoas contaminados, morros desmatados, áreas de preservação ambiental ocupadas. E ainda há quem insista em flexibilizar o Código Florestal!
Darwin ensinou que, na natureza, sobrevivem os mais aptos. E o sistema capitalista criou estruturas para promover a seleção social, de modo que os miseráveis encontrem a morte o quanto antes.
Nas guerras são os pobres e os filhos dos pobres os destacados para as frentes de combate. Ingressar nos EUA e obter documentos legais para ali viver é uma epopeia que exige truques e riscos. Mas qualquer jovem latino-americano disposto a alistar-se em suas Forças Armadas encontrará as portas escancaradas.
Os pobres não sofrem morte súbita (aliás, na Bélgica se fabrica uma cerveja com este nome, Mort Subite). A seleção social não se dá com a rapidez com que as câmaras de gás de Hitler matavam judeus, comunistas, ciganos e homossexuais. É mais atroz, mais lenta, como uma tortura que se prolonga dia a dia, através da falta de dinheiro, de emprego, de escola, de atendimento médico etc.
Expulsos do campo pelo gado que invade até a Amazônia, pelos canaviais colhidos por trabalho semiescravo, pelo cultivo da soja ou pelas imensas extensões de terras ociosas à espera de maior valorização, famílias brasileiras tomam o rumo da cidade na esperança de uma vida melhor.
Não há quem as receba, quem procure orientá-las, quem tome ciência das suas condições de saúde, aptidão profissional e escolaridade das crianças. Recebida por um parente ou amigo, a família se instala como pode: ocupa o morro, ergue um barraco na periferia, amplia a favela.
E tudo é muito difícil para ela: alistar-se no Bolsa Família, conseguir escola para os filhos, merecer atendimento de saúde. Premida pela sobrevivência, busca a economia informal, uma ocupação qualquer e, por vezes, a contravenção, a criminalidade, o tráfico de drogas.
É esse darwinismo social, que tanto favorece a acumulação de muita riqueza em poucas mãos (65% da riqueza do Brasil estão em mãos de apenas 20% da população), que faz dos pobres vítimas do descaso do governo, da falta de planejamento e do rigor da lei sobre aqueles que, ansiosos por multiplicar seu capital, ignoram os marcos regulatórios e anabolizam a especulação imobiliária. E ainda querem flexibilizar o Código Florestal, repito!


Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.
www.freibetto.org> - twitter:@freibetto

Copyright 2011 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

CRIADO O CENTRO DE INFORMAÇÃO DOM HELDER CAMARA

POSTADO NO BLOG www.marietaborges.com

por Marieta Borges, em 19 de janeiro de 2011



A iniciativa foi tomada no Rio de Janeiro, pelos que fazem a Paróquia dos Santos Anjos, no Leblon: criou-se o "CENTRO DE INFORMAÇÃO DOM HELDER CAMARA", dando início à série dos "Grandes Personagens da História do Brasil" naquele local.

Essa paróquia se situa na área onde de implantou - em 1955 - a Cruzada São Sebastião, um conjunto habitacional no bairro do Leblon, zona sul da cidade, por iniciativa do então Bispo Auxiliar do Rio e Secretário Geral da CNBB, Dom Helder Camara, agora homenageado - com justiça - nesse museu que se inicia.

Inaugurado no dia 15 deste mês de janeiro, o Museu é um espaço educativo, equipado para servir à comunidade e tem, na sua entrada, um bonito painel pintado com a imagem de Dom Helder, realizador do ambicioso projeto de erradicar, naquela época, em dez anos, as 150 favelas então existentes na cidade do Rio de Janeiro.

Quem visita a paróquia percebe, claramente, a imensa devoção dos que ali vivem, pela figura carismática daquele profeta do século XX... Todas as iniciativas tomadas carregam a marca daquele visionario, que sonhou uma terra sem miséria, que desse ao pobre a possibiildade de viver bem, num ambiente limpo e urbanizado, uma espécie de "plano piloto" que chegasse a alcançar a meta traçada por ele de acabar, em dez anos, com as favel as da cidade, naquele tempo.

Seus primeiros moradores vieram da favela vizinha, na Praia do Pinto, que foi incendiada. Um conjunto de dez prédios, com 945 apartamentos foi financiado num prazo de 15 anos e lá está ele até hoje, sendo uma das mais importantes ações concretas para dar dignidade ao pobre favelado.

Abençoado pelo Padre Marcos Belisário, pároco dos Santos Anjos e estudioso da vida de Dom Helder, o Museu - Centro de Informações Dom Helder Camara contou, na sua inauguração, com a presença dos moradores mais antigos da Cruzada São Sebastião e com autoridades e colaboradores que se empenharam para que a obra existisse... Seu objetivo maior é facilitar a integração da Cruzada com o resto do bairro, desfazendo o seu estigma de "gueto" e resguardando os ideais de Dom Helder, meio século depois que ele viveu ali e tornou seu sonho uma realidade. É um núcleo de referência sobre a história do Brasil, com um espaço virtual interativo de informações e pesquisas, através de biografias de personalidaeds importantes de todo o País.

Os usuários poderão interagir através do site www.museudacruzada.com.br e o banco de dados será alimentado pelos pesquisadores do Museu, pelo público e por internautas de todo o Brasil.

Bem-vindos todos à lembrança de Dom Helder, imortalizado em uma grande iniciativa carioca!

ADONIRAN BARBOSA: UM CENTENÁRIO QUE PASSOU


por MARIA CLARA BINGEMER




Tão pouco percebido passou que só no ano seguinte encontramos tempo para falar dele. Falo de mim, mas falo da mídia também. O fato é que se o centenário de Noel Rosa foi pouco comemorado proporcionalmente à sua grandeza como compositor, o de Adoniran Barbosa o foi menos ainda. E, no entanto, poucos cantaram a alma brasileira como este paulista de Valinhos.
Enquanto Noel é o próprio Rio de Janeiro em pessoa, Adoniran cantou o interior do país, a gente simples e humilde do interior do estado de São Paulo e de sua capital, com seus problemas, suas dores e alegrias. Típico paulistano, filho de imigrantes italianos, Adoniran experimentou na carne a luta pela sobrevivência do paulistano comum numa metrópole sufocante como é São Paulo, onde tudo, o tempo e a vida inclusive, corre, range e solta fumaça pelas ventas, poluindo o céu e apagando as estrelas, como diria o baiano Caetano.

O verdadeiro nome de Adoniran Barbosa era João Rubinato. Mas, devido ao proverbial amor com que ele canta mesmo as tragédias e os sofrimentos, ia mudando de nome e de personalidade em cada situação vivida, tornando-se personagem de uma nova história. O dia a dia do cidadão comum é corrente e a matéria-prima com a qual Adoniran Barbosa constrói seu cancioneiro. Notícias de jornal, observação da gente da rua, daí sai a lira do compositor, que tem criações imortalizadas na música popular brasileira.
Quem já não sorriu entre encantado e triste com a história melancólica de Iracema, amada pelo cantor, que um dia “atravessou na contramão”, vivendo hoje lá no céu, bem pertinho de Nosso Senhor? Mas em meio ao que é notícia de obituário de jornal - Adoniran se inspirou para compor Iracema em uma notícia sobre uma mulher atropelada na Avenida São João - ocorrência triste e cinzenta do cotidiano mais triste e nublado do paulistano, está o humor do amante inconsolável, que guarda da amada a meia e o sapato, pois perdeu o seu retrato.
Como todo bom poeta, Adoniran foi também um criador de linguagem. O mergulho que fará na linguagem com suas construções e inovações linguísticas, pontuadas pela escolha exata do ritmo da fala popular e coloquial paulistana, na verdade vão no sentido inverso daquele que toma o samba em sua história oficial. Enquanto os outros compositores buscavam tom sublime e solene para suas composições, Adoniran nunca se afastou do jeito popular de ser e de falar, construindo uma linguagem própria e original.
Falando com o jeito popular, que dá às palavras a forma com que as pronuncia, diferente da oficial, mas com o sabor do entendimento oral, o compositor, cujo centenário agora celebramos, introduziu definitivamente na língua portuguesa a expressão “ tiro ao Álvaro” para cantar o tiro ao alvo que era o seu coração em direção ao qual a amada teimava em enviar flechas e mais flechas até não ter mais onde furar. Quem que já tenha amado na vida não se sentiu assim algum dia? “E quem já não ouviu algum brasileiro confundir “alvo” e” Álvaro”? Ou ”tábua” e” talba”?
Não só expressões idiomáticas próprias saem da criação de Adoniran. Também nomes próprios são rebatizados com a liberdade que o talento confere à arte. É assim que o personagem Ernesto que mora no Brás e que deu uma festa onde não havia ninguém e rebatizado de Arnesto, e todos os que cantam o samba de Adoniran nem pensam em cantar de outra maneira senão Arnesto.
Mas a peça-chave, o ícone definitivo de seu cancioneiro é, sem dúvida, o famoso “Trem das onze”, onde o desejo de ficar ao lado da namorada tem que ser deixado de lado para tomar o último trem, não só para não ter que ficar esperando até “amanhã de manhã” como para não preocupar a mãe, que não dorme enquanto o rapaz não chegar.
Com várias interpretações, de Elis Regina a Clara Nunes e até Chico Buarque, entre outros, Adoniran viveu e morreu modesto como nasceu. Amando a vida e acreditando na amizade, contando histórias com sua voz rouca, enchendo de humor e de realidade a vida dos botecos, foi o único sambista paulista que todo o Brasil reconheceu e reverenciou, inclusive o Rio de Janeiro e a Bahia, que são considerados um pouco o território do samba por excelência.

O PREÇO DE NÃO ESCUTAR A NATUREZA

por LEONARDO BOFF





Lboff/tragedia na serraO cataclisma ambiental, social e humano que se abateu sobre as três cidades serranas do Estado do Rio de Janeiro, Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, na segunda semana de janeiro, com centenas de mortos, destruição de regiões inteiras e um incomensurável sofrimento dos que perderam familiares, casas e todos os haveres tem como causa mais imediata as chuvas torrenciais, próprias do verão, a configuração geofísica das montanhas, com pouca capa de solo sobre o qual cresce exuberante floresta subtropical, assentada sobre imensas rochas lisas que por causa da infiltração das águas e o peso da vegetação provocam frequentemente deslizamentos fatais.

Culpam-se pessoas que ocuparam áreas de risco, incriminam-se políticos corruptos que destribuíram terrenos perigosos a pobres, critica-se o poder público que se mostrou leniente e não fez obras de prevenção, por não serem visíveis e não angariarem votos. Nisso tudo há muita verdade. Mas nisso não reside a causa principal desta tragédia avassaladora.

A causa principal deriva do modo como costumamos tratar a natureza. Ela é generosa para conosco pois nos oferece tudo o que precisamos para viver. Mas nós, em contrapartida, a consideramos como um objeto qualquer, entregue ao nosso bel-prazer, sem nenhum sentido de responsabilidade pela sua preservação nem lhe damos alguma retribuição. Ao contrario, tratamo-la com violência, depredamo-la, arrancando tudo o que podemos dela para nosso benefício. E ainda a transformamos numa imensa lixeira de nossos dejetos.

Pior ainda: nós não conhecemos sua natureza e sua história. Somos analfabetos e ignorantes da história que se realizou nos nossos lugares no percurso de milhares e milhares de anos. Não nos preocupamos em conhecer a flora e a fauna, as montanhas, os rios, as paisagens, as pessoas significativas que ai viveram, artistas, poetas, governantes, sábios e construtores.

Somos, em grande parte, ainda devedores do espírito científico moderno que identifica a realidade com seus aspectos meramente materiais e mecanicistas sem incluir nela, a vida, a consciência e a comunhão íntima com as coisas que os poetas, músicos e artistas nos evocam em suas magníficas obras. O universo e a natureza possuem história. Ela está sendo contada pelas estrelas, pela Terra, pelo afloramento e elevação das montanhas, pelos animais, pelas florestas e pelos rios. Nossa tarefa é saber escutar e interpretar as mensagens que eles nos mandam. Os povos originários sabiam captar cada movimento das nuvens, o sentido dos ventos e sabiam quando vinham ou não trombas d’água. Chico Mendes com quem participei de longas penetrações na floresta amazônica do Acre sabia interpretar cada ruído da selva, ler sinais da passagem de onças nas folhas do chão e, com o ouvido colado ao chão, sabia a direção em que ia a manada de perigosos porcos selvagens. Nós desaprendemos tudo isso. Com o recurso das ciências lemos a história inscrita nas camadas de cada ser. Mas esse conhecimento não entrou nos currículos escolares nem se transformou em cultura geral. Antes, virou técnica para dominar a natureza e acumular.

No caso das cidades serranas: é natural que haja chuvas torrenciais no verão. Sempre podem ocorrer desmoronamentos de encostas. Sabemos que já se instalou o aquecimento global que torna os eventos extremos mais freqüentes e mais densos. Conhecemos os vales profundos e os riachos que correm neles. Mas não escutamos a mensagem que eles nos enviam que é: não construir casas nas encostas; não morar perto do rio e preservar zelosamente a mata ciliar. O rio possui dois leitos: um normal, menor, pelo qual fluem as águas correntes e outro maior que dá vazão às grandes águas das chuvas torrenciais. Nesta parte não se pode construir e morar.

Estamos pagando alto preço pelo nosso descaso e pela dizimação da mata atlântica que equilibrava o regime das chuvas. O que se impõe agora é escutar a natureza e fazer obras preventivas que respeitem o modo de ser de cada encosta, de cada vale e de cada rio.

Só controlamos a natureza na medida em que lhe obedecemos e soubermos escutar suas mensagens e ler seus sinais. Caso contrário teremos que contar com tragédias fatais evitáveis.

EUA: CALDO DE CULTURA FASCISTA


por FREI BETTO




EUA: CALDO DE CULTURA FASCISTA artigo de Frei Betto

Caldo de cultura é quando fico atado a um videogame treinando matar figuras virtuais. Segundo a Newsweek, o videogame mais vendido nos EUA em 2010 foi o Grand Thief Auto 3 (O grande roubo de carros 3). O jogador progride quanto mais crimes comete. Se o jogador rouba um carro e mata um pedestre, a polícia passa a persegui-lo. Se atira no policial, o FBI aparece. Se assassina o agente federal, os militares entram no caso...

Caldo de cultura é quando meu irmão luta no Afeganistão, assim como meu pai fez no Iraque e meu avô no Vietnã.

Caldo de cultura é, aos 23 anos, entrar numa loja e comprar, sem a menor burocracia, uma pistola Glock 9mm e um pente extra que me permite disparar 33 tiros seguidos sem precisar descarregar – como fez Jared Lee Loughner, em Tucson (Arizona), no sábado, 8/1, matando 6 pessoas, entre as quais o juiz federal John M. Roll, e ferindo gravemente várias, inclusive a deputada democrata Gabrielle Giffords.

Os EUA estão num impasse. A eleição de um presidente negro com discurso progressista não foi digerida por amplos setores racistas e conservadores. O que deu origem ao mais recente caldo de cultura fascista –o Tea Party, liderado por Sarah Palin, ex-governadora do Alasca e candidata a vice-presidenta pelo Partido Republicano em 2008.

O movimento Tea Party situa-se à direita do Partido Republicano. Para seus adeptos, as liberdades individuais estão acima dos direitos coletivos. Embora muitos sejam contra a guerra, eles coincidem com os ultramontanos ao reprovar a união de homossexuais e a legalização de imigrantes, e defender a abstinência sexual como o melhor preservativo ao risco de aids.

Obama é uma decepção para muitos de seus eleitores. Nas eleições legislativas de novembro foi alta a abstenção entre jovens, negros e latinos que nele votaram. Não parece saber lidar com a crise econômica que afeta o país desde 2008. Muitos perderam suas casas devido ao estouro da bolha especulativa; 8,5 milhões de trabalhadores ficaram sem emprego e 8 milhões carecem de seguro-desemprego. O próprio governo admite que em 2012 a taxa de desemprego ultrapassará 8%.

Malgrado o Nobel da Paz, Obama não pôs fim às guerras no Iraque e no Afeganistão; não reduziu a ameaça terrorista; não avançou no quesito ambiental; não melhorou as relações com Cuba; não reformou o projeto de lei de imigração; e não tem segurança de que sua reforma da saúde será aceita pelo atual Congresso.

Hoje, os EUA estão mais à direita do que na eleição de Obama. No pleito de novembro, o Partido Republicano avançou 63 cadeiras. Agora, são 242 deputados republicanos e 193 democratas.

Obama sente-se encurralado. Não ousa como Roosevelt nem inova como Kennedy. Já agradou os republicanos ao contrariar sua promessa de campanha e anunciar, a 6 de dezembro, a prorrogação dos privilégios tributários aos mais ricos, herança da era Bush. Deu um Papai-Noel de US$ 4 trilhões à elite usamericana. E reduziu de 6,2% para 4,2% o imposto recolhido da folha de pagamento e destinado a financiar a Seguridade Social, agora com menos US$ 120 bilhões!

E o Senado, onde os democratas mantêm maioria, desaprovou, a 18 de dezembro, a legalização de 11 milhões de indocumentados que vivem nos EUA.

A democracia fica ainda mais ameaçada desde que a Suprema Corte, há um ano, deu sinal verde para as grandes corporações financeiras abastecerem o caixa dois das campanhas eleitorais. Estima-se que nas eleições de novembro os republicanos angariaram US$ 190 milhões, e os democratas a metade. E a turma da privatização da saúde contribuiu com US$ 86,2 milhões para tentar boicotar a reforma proposta por Obama ao setor. Em suma, o modelo usamericano de democracia é refém do dinheiro.

O novo Congresso vai bater forte na tecla de corte de gastos do governo. Isso significa, num país em crise, reduzir os serviços sociais e multiplicar a exclusão social e a criminalidade. Inclusive a dos fanáticos como Loughner, convictos de que as cabeças que não pensam como as deles merecem uma única coisa: bala.



Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da Prisão” (Agir), entre outros livros. www.freibetto.org> - twitter:@freibetto


Copyright 2011 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

O AMOR INCONDICIONAL CONTRA A INTOLERÂNCIA


por MARCELO BARROS




Há um ano, uma vasta região do Haiti era destruído por um terremoto que matou milhares de pessoas e deixou o país devastado. O Haiti, já secularmente vítima da dominação estrangeira e da corrupção política, agora, sofre mais ainda para se reerguer. De todas as imagens terríveis que feriram a sensibilidade das pessoas solidárias, certamente, uma das mais chocantes foi ouvir George Samuel Antoine, cônsul do Haiti, dizer na televisão que aquela tragédia tinha se abatido sobre o seu país como castigo divino porque o povo praticava o Vodu e tinha feito um pacto com o demônio para se tornar politicamente independente. Para aquele diplomata, o povo negro do Haiti só conseguiu se libertar da escravidão francesa e depois da dominação norte-americana porque se aliou ao demônio. A Teologia da Libertação descobre em todo verdadeiro processo de libertação o Espírito Divino está presente e atuante. Ao contrário, o sistema opressor parece insistir que é mais de Deus quem se deixa escravizar.

Ainda bem que, nestes dias, no Brasil, não surgiu ninguém que tente explicar com argumentos religiosos as inundações e tantas vítimas fatais de deslizamentos de morros no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Talvez no seio de suas congregações, ainda há pastores e mesmo um ou outro padre católico arautos de uma divindade capaz de assassinar pessoas inocentes somente para impor sua vontade e seus preceitos a uma humanidade descrente. De fato, pesquisas revelam: em um mundo inseguro e sem referências éticas claras, os movimentos religiosos que mais crescem são os mais fanáticos e fechados em seu dogmatismo. Eles agrupam principalmente jovens e pessoas carentes de segurança interior e institucional. Tanto grupos cristãos, como muçulmanos, judeus e hindus fundamentalistas pensam que Deus assinou um contrato de exclusividade com eles e só a sua religião, Igreja ou grupo detém a verdade e o direito de existir.

No Brasil, este tipo de fenômeno tem provocado discriminações e até perseguições a alguns grupos espirituais, como por exemplo, comunidades de tradição afro-descendente. Apesar da Constituição Brasileira defender a liberdade de culto para todas as tradições religiosas, ainda existem programas de rádio e televisão nos quais se pregam a intolerância e se combatem as religiões negras.

No início do ano de 2000, no Rio de Janeiro, Mãe Gilda, sacerdotisa do Candomblé, viu duas vezes o seu templo ser invadido por pessoas de uma Igreja neo-pentecostal. Estas invadiram o lugar e destruíram os assentamentos dos Orixás. E no dia 21 de janeiro, Mãe Gilda viu estampada no jornal “A Folha Universal”, uma foto sua com a legenda: “Macumbeiros ameaçam a vida e o bolso dos clientes”. Ao ver aquilo, aquela senhora idosa teve um infarto e faleceu. Para que não se repitam mais fatos como este, em 2007, o presidente Lula assinou uma portaria determinando que, a cada ano, 21 de janeiro seja considerado o “Dia Nacional contra a Intolerância Religiosa”.

É claro que para acabar com a intolerância cultural e religiosa, não basta uma lei ou decreto. É preciso transformarmos interiormente o processo da fé. Muitas confissões religiosas ainda confundem a verdade com uma forma cultural de expressar a verdade. Por isso absolutizam seus dogmas e tendem a se fechar em certo autoritarismo fundamentalista, inclusive as que parecem mais liberais. Daí, facilmente, se justificam conflitos e até guerras em nome de Deus. Em 1965, em um dos seus mais belos documentos, (a declaração Nostra Aetate), o Concílio Vaticano II proclamava o valor das outras religiões e incentivava os católicos do mundo inteiro ao respeito ao diferente e ao diálogo. Também, em 1961, o Conselho Mundial de Igrejas, que reúne mais de 340 Igrejas evangélicas e ortodoxas, pediu às Igrejas uma atitude de respeito e diálogo com todas as culturas e colaboração com outras tradições religiosas.

Atualmente, a diversidade religiosa no mundo é, não somente um fato atual que, queiramos ou não, se impõe à humanidade, mas uma graça divina e uma bênção para as tradições religiosas que, assim, podem se complementar e mutuamente se enriquecer. Para que este diálogo seja verdadeiro e profundo, cada grupo religioso tem de reconhecer o elemento de verdade que existe no outro e se abrir ao que Deus nos revela, não somente a partir de nossa própria tradição, mas do caminho religioso do outro. Para esta abertura pluralista e para o diálogo daí decorrente vale o que, no século IV, dizia Santo Agostinho: “Apontem-me alguém que ame e ele sente o que estou dizendo. Dêem-me alguém que deseje, que caminhe neste deserto, alguém que tenha sede e suspira pela fonte da vida. Mostre-me esta pessoa e ela saberá o que quero dizer” [1].



[1] - AGOSTINHO, Tratado sobre o Evangelho de João 26, 4. Cit. por Connaissance des Pères de l’Église32- dez. 1988, capa.