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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

JESUS JUDEU




 Por Eduardo Hoornaert 


Muitos problemas que nos aparecem quando lemos os evangelhos provêm do fato que lhes formulamos perguntas que eles são incapazes de responder. Perguntamos se Jesus fundou a Igreja, se ele instituiu o papado, o sacerdócio, os sacramentos. Por vezes forçamos a leitura dos evangelhos, na ânsia de neles encontrar respostas que confirmem a atual organização da vida cristã.

 Uma coisa bem diferente consiste em querer saber o que Jesus mesmo tem a dizer sobre si mesmo. Só dando a palavra ao próprio Jesus, respeitamos devidamente a memória de uma pessoa falecida dois mil anos atrás. Só escutando o que o próprio Jesus nos tem a dizer, conseguiremos saber algo a seu respeito. Embora só consigamos nos apoiar em textos escritos a seu respeito por terceiros, há como colher, em diversos tópicos dos evangelhos, declarações feitas por Jesus mesmo sobre si mesmo. Desde alguns decênios, há um esforço, por parte de especialistas em estudos neo-testamentários, em distinguir entre declarações ‘autênticas’ de Jesus e declarações ‘redacionais’, ou seja, palavras ou ações atribuídas a Jesus, mas cuja autenticidade é questionada. Os resultados desse trabalho seletivo não são definitivos, mas mesmo assim oferecem pistas por onde é possível continuar estudando. É nesse sentido que se situa este breve texto, que apresenta de modo bem resumido algum resultado de muitas pesquisas, que consegui colher lendo o recente livro alemão ‘Jesus Handbuch’, compilado por Jens Schröter & Christine Jacobi, e editado por Mohr Siebeck de Tübingen em setembro de 2017.

Efetivamente, nos últimos anos a figura de Jesus tem sido estudada intensivamente com a ajuda de ciências como a história, a sociologia, a análise linguística e a arqueologia. Hoje estamos em condições de penetrar mais no modo em que Jesus entendeu a si mesmo e a sua missão que algumas décadas atrás. Todos os estudos dos últimos anos apontam para um Jesus judeu, que pensa em categorias judaicas, próprias de seu tempo e do ambiente em que vive. Sua cosmovisão difere muito da nossa. Basta dizer que seu mundo é habitado por sopros, santos ou impuros, por anjos e demônios, forças positivas e negativas que influenciam poderosamente a vida humana. Portanto, uma ‘análise da realidade’ modo bem diferente da nossa, mas não desprovida de uma lógica convincente. 


Aqui vão alguns pontos que revelam como Jesus entende sua vida: 


1. Ele acredita que Deus detém o poder no céu, enquanto seu adversário Satanás manda na terra e no inferno. É dentro da resolução, tomada por Deus, no sentido de alargar seu Reino na terra, que Jesus entende sua ação, seus milagres e suas expulsões de demônios. Jesus acredita agir em nome de Deus e assim encara sua ação, que é inevitavelmente de caráter pontual e passageira. Ela é sinal da resolução, por parte de Deus, de estender seu domínio sobre a terra. Jesus entende que sua ação é obra de Deus, ou seja, que ele age em nome e no poder de Deus. Não se trata de uma ação propriamente humana, mas de uma ação de Deus (Jesus fala em ‘graça de Deus’). 

2. Acreditando ser o enviado de Deus, Jesus entende que suas ações, em última análise, são ações de Deus. Quem pensa que ele pratica milagres, expulsa demônios e afasta ‘sopros malvados’ pelo poder de Satanás, e desse modo se escandaliza com Jesus, está mal-intencionado, pois a cura de doentes, por exemplo, não pode ser obra de Satanás, já que obedece à lógica do Reino de Deus, que combate a doença e outros males. 

3. Jesus acredita que, quanto mais se alarga o círculo onde se praticam curas e exorcismos (expulsões de demônios), mais se alarga o Reino de Deus. Os setenta discípulos são enviados para circular pelas aldeias, curando e expulsando demônios. A ideia não é de fundar uma instituição religiosa, mas de difundir o Reino de Deus pela luta contra o que prejudica as pessoas, como a doença, a marginalização, etc. 

4. Um engano comum consiste em pensar que aderir a Jesus significa aderir a alguma religião, sem agir em consequência do que ouviu da boca de Jesus. ‘O homem que ouve minhas palavras se parece com quem, querendo construir sua casa, cava fundo e assenta a casa na pedra. Vem a tempestade, lançam-se as águas contra a casa, mas ela não se abala. Quem ouve, mas não faz nada, se compara com um homem que constrói uma casa sem fundamentos. A água se joga contra a casa, ela desaba. Sua ruína é total (Lc 6, 47-49). Não basta dizer: ‘felizes os pobres’, há de se fazer algo para que os pobres sejam felizes. 

5. Embora acompanhado de numerosos discípulos (setenta), Jesus faz questão de escolher um círculo mais íntimo de doze, ‘escolhidos para ficarem perto dele, serem enviados em seu nome e terem autoridade para caçar demônios. Assim ele fundou os doze’ (Mc 3, 14-16). Esses apóstolos são comparáveis aos doze patriarcas de Israel. São os patriarcas de um novo Israel, colaboradores na construção do Reino de Deus. 

6. A predileção de Jesus por montanhas e lugares altos provém da ideia que a montanha é o lugar onde o céu de Deus fica mais próximo e a terra de Satanás mais distante. Deus fala de preferência na montanha, perto de sua morada. Em tempos de dominação satânica sobre a terra, faz bem subir à montanha, como disseram os grandes profetas. Que seja o Tabor, o Carmelo, o Horeb, ou ainda o Sinai, a montanha é um lugar que fica mais perto do céu. É no monte Sinai que Deus fala com Moisés e no monte Carmelo que, diante de todo o Reino do Norte reunido em festa, Elias mostra de forma espetacular que Ihwh é o maior. É no monte Tabor que Jesus conversa com Moisés e Elias. Na montanha, ele encontra inspiração para fazer suas declarações mais contundentes:  Venda todos os seus bens, dê o dinheiro aos pobresVocê amontoará assim um tesouro no céu (Mt 19, 21). Na terra, ou seja, no mundo segundo a vontade dos homens, o dinheiro vale muito.  Contudo, no céu, ou seja, no mundo segundo a vontade de Deus (o Reino de Deus), é preciso cambiar os valores monetários por outros valores, ou seja, pela atenção à situação em que vive a humanidade. 

7. Como Jesus trabalha psicologicamente essa convicção de ser o enviado de Deus para estabelecer seu Reino na terra? Um texto forte de Lucas descreve isso. A ideia deixa Jesus inquieto, impaciente e ao mesmo tempo resoluto: Vim botar fogo na terra e não vejo a hora dele pegar. Devo me meter num batismo e me atormento, pois não vejo nada mudar. Vocês pensam que vim trazer a paz sobre a terra? Mas não: eu trago a divisão (desunião). Doravante, cinco pessoas moram numa casa, e elas estarão divididas. Serão três contra dois e dois contra três. Pai contra filho, filho contra pai. Mãe contra filha, filha contra mãe. Sogra contra nora, nora contra sogra (Lc 12, 49-53). O profeta Elias teve uma emoção parecida:  Sou tomado por uma paixão furiosa por Ihwh (1Rs 19, 10). E no Salmo 39 se lê: Meu coração arde em mim, dentro de mim se acende um fogo (Sl 39, 4). 

8. Não é por menos. Com Jesus, o reino de Satanás sobre a terra está abalado.  Demônios são expulsos, melhor, convertidos em anjos. Desvanecem, na mente de Jesus, os espíritos maus que milenarmente rondam o mundo, os demônios das sete profundezas subterrâneas, os dragões, as serpentes, os monstros, as maldições, as perturbações assombrosas, as máscaras de cifres ameaçadores, os carrascos, os tiranos do mal, os ‘divisores’ (diabolos), as turvações, as perturbações, as dissoluções, as tiranias, a cauda que varre o mundo, os morcegos que chupam a vida, as unhas que arranham todo sinal de vida, as presas enormes, o sol negro, as trevas de Lucifer (o anjo carregado de levar a luz vira o príncipe das trevas), o adversário, os maus pensamentos, a desordem na consciência humana, a enganação, o demônio infiltrado na história. Aparecem os anjos, mensageiros de Deus, guardiões da vida, condutores de astros e homens, protetores de plantas e de filhos de Deus. Entram Michael, Gabriel, Rafael, os protetores da vida. Jesus visualiza, com Isaías, os serafins em torno do trono de Deus. Ele enxerga os anjos da guarda a proteger as pessoas, fazer a festa, fundamentar a alegria e divulgar. Algo inteiramente novo acontece.  

9. Essa convicção enche a alma de Jesus de uma inconfundível alegria. Imagens terríveis, que atormentam a humanidade desde sempre, desvanecem, enquanto aparecem imagens de luz e festa. Por onde Jesus anda se espalha um clima de festa. Em sua presença ninguém jejua. ‘Numa festa de casamento, será que os acompanhantes de honra do noivo jejuam? Enquanto ele está com eles, não jejuam. O dia virá em que o noivo lhes será tirado. Então jejuarão. Ninguém conserta roupa velha com emenda nova: o pedaço novo puxará o velho, novo sobre velho, e o rasgão será pior. Ninguém mete vinho novo em odres velhos. O vinho arrebenta os odres e tudo fica perdido. Vinho novo, odres novos’ (Mc 2, 18-22). O vinho novo da alegria, do convívio alegre: ‘um homem oferece um grande festim’ (Lc 14, 16). ‘Façam a festa, pois meu filho estava morto e vive de novo, estava perdido e foi encontrado’ (Lc 15, 24). Jesus convida as pessoas a comer e beber com ele, inclusive ‘pecadores e cobradores de impostos’. A Carta aos Hebreus, dos anos 65, traduz essa alegria contagiante: (Vocês não têm de que se queixar, pois) é do monte de Sião, da cidade de Deus vivo, de Jerusalém celeste e da miríade de anjos em festa que vocês se aproximam (Hb 12, 22). 

10. Como Jesus se apresenta? Enviado de Deus, revestido do poder de Deus, mais que profeta, ele sofre o destino dos profetas. Mais que anunciador do Reino de Deus, ele o realiza ao derrotar o Reino de Satanás e demonstrar poder sobre os demônios. Mais que idealizador do novo Israel, ele é seu iniciador, embora de modo apenas tópico. Está empenhado em alargar o Reino de Deus na terra e de fundar um novo Israel. Para tanto, envia seus discípulos pelas aldeias da Galileia. Seu ‘vinho’ é novo, exige ‘odres novos’. Jesus não se apresenta como fundador de uma nova religião, nem mesmo como ‘mestre em Israel’, antes como iniciador e animador de atividades e comportamentos, na humildade.

 Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.


www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/


terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

A VITÓRIA DA RESISTÊNCIA



Por Marcelo Barros

Em todo o Brasil, as mais de 2200 comunidades afrodescendentes, formadas por remanescentes de quilombos, espalhadas pelo território nacional, comemoram uma importante vitória jurídica e política. Nesses dias, exatamente, na quinta-feira, 08 de fevereiro, depois de um longo processo, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou válido o Decreto 4887/ 2003 do presidente Lula que reconhecia aos quilombolas o direito a suas terras ancestrais. O Partido Liberal (DEM) impetrou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para invalidar o decreto e impedir os quilombolas de ter as suas terras. Finalmente, o STF declarou que essa ação era improcedente e deu ganho de causa às comunidades afrodescendentes.

Em todo o território nacional, muitas comunidades negras resistem, com seus costumes próprios e, em alguns casos, até seu idioma ancestral. Desde o século XVI, chamam-se no Brasil quilombos as comunidades de homens e mulheres que fugiam da escravidão. Ali se reuniam homens e mulheres negros, assim como brancos pobres e índios. Formavam comunidades no meio das matas e nas montanhas, geralmente em pontos de difícil acesso aos brancos, para melhor se defenderem dos “capitães do mato” e dos soldados, a serviço dos senhores de engenhos e escravocratas. Assim como a senzala era o símbolo da escravidão, os quilombos significavam resistência e luta pela liberdade, conquistada no meio de muitos perigos e ameaças. Desde os tempos da escravidão até quase nossos dias, muitas dessas comunidades se mantiveram isoladas e com suas culturas próprias. Somente com a Constituição de 1988, elas foram reconhecidas. Assim mesmo, até hoje, só uma minoria das comunidades quilombolas tem a terra demarcada e garantida. É a mesma luta vivida pelos povos indígenas, ainda expropriados de suas terras ancestrais. A publicidade capitalista apregoa que índios e quilombolas têm terras demais e as suas terras não produzem lucro. Além disso, como protegem a floresta, veneram os rios que correm em seus territórios, impedem a destruição ambiental e vão na linha contrária ao agronegócio que quer transformar o país em uma imensa plantação de soja, de eucalipto ou um imenso pasto para o maior rebanho bovino do mundo.

Em 2013, a CNBB criou um grupo de Trabalho para estudar e aprofundar a missão da Igreja junto às comunidades quilombolas. Esse grupo produziu um excelente subsídio, publicado no livro de Estudos da CNBB, número 105, intitulado: “A Igreja e as Comunidades Quilombolas”, Ali, os bispos católicos reconhecem que, no passado, a maioria da Igreja foi conivente e cúmplice da escravidão. Por isso, continuando o gesto do papa João Paulo II, os representantes da Igreja Católica no Brasil, pedem perdão às comunidades remanescentes de Quilombos e reconhecem uma dívida histórica e moral da Igreja para com essas comunidades, suas culturas e religiões. A CNBB se solidariza com a caminhada dos quilombolas em sua luta pela terra e pelo direito a viverem suas culturas. Diz que na luta dessas comunidades há um apelo de Deus para todos nós. Diante do avanço do capital, a resistência das comunidades quilombolas é uma profecia a ser acolhida e sustentada.

O documento aprecia a riqueza cultural que as comunidades quilombolas vivenciam e transmitem. Faz uma leitura bíblica contrária ao fundamentalismo que condena as culturas e religiões negras. Alerta sobre o racismo religioso que ainda existe no Brasil. Lembra que, já em 1967, em uma exortação, o papa Paulo VI reconheceu o valor positivo das religiões de matriz africana. Denuncia a maldade com a qual os terreiros de Candomblé e de outros cultos afro têm sido discriminados e perseguidos por grupos que se dizem cristãos. Nesses dias, em que ainda vivemos a memória do Carnaval, ressoa por todo o Brasil, o canto profético que, no desfile do Rio de Janeiro, a Escola de Samba Paraíso do Tuiuti cantou e que se tornou a oração de todos nós: “ Meu Deus, meu Deus, Se eu chorar, não leve a mal. Pela luz do candeeiro, Liberte o cativeiro social!”.

 Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.br  
 


segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

INTERVENÇÃO: UM MAL NECESSÁRIO?



     Por  Maria Clara Lucchetti Bingemer 

            O Estado do Rio de Janeiro está sob intervenção federal. O presidente da República nomeou interventor o general de Exército Walter Souza Braga Netto, do Comando Militar do Leste, sediado na Cidade do Rio.  O oficial assumirá o comando das forças de segurança e da ordem no Estado, a saber: as Polícias Militar e Civil e o Corpo de Bombeiros.  Seus comandados do Comando Militar do Leste serão mobilizados para interferir nos problemas de segurança, respondendo apenas ao Presidente da República. 

            Ninguém nega que o estado precisa encontrar um caminho para resolver a situação de insegurança em que se encontra.  Com um governo inoperante, uma prefeitura da cidade do Rio ausente e o poder paralelo do tráfico armado até os dentes e cada vez mais organizado, as mortes se multiplicam e os cidadãos não conseguem sequer exercer seu direito de ir e vir com um mínimo de tranquilidade.

            Porém é fato igualmente inegável que intervenção militar desencadeia em nossa memória recente recordações – e, portanto, reações – muito mais negativas que positivas.  O Brasil conheceu por décadas o gosto amargo da intervenção militar feita ditadura, com um saldo irreparável de violência, medo, torturas e morte.  Continuam sendo encontradas ossadas de uma geração ferida de morte por aqueles que saíram dos quartéis para garantir a ordem que acreditavam perturbada e tardaram muito em retornar a eles. 

Por isso, intervenção é palavra ambígua e movediça. Com origem no vocábulo latino interventĭo, intervenção é formada pelos vocábulos “inter” e “venire”, e indica a ação ou o efeito de intervir.  E isso faz referência direta a diversas questões onde identidade e alteridade se cruzam e se esbarram mutuamente. Abrange desde o ato cirúrgico que, em medicina, destina-se a solucionar um problema de saúde com a ciência exercida na prática, até o ato de dirigir os assuntos que correspondem a outro, seja este pessoa física ou entidade coletiva. 

Uma intervenção militar supõe o fracasso da sociedade civil em resolver seus próprios problemas, sua incapacidade de controlar uma situação que está sob sua alçada.  Outra esfera da sociedade vem então e intervém para solucionar aquilo que a sociedade não consegue administrar.  Assim foi nos tristes idos de março de 1964.  Acreditando o Brasil em perigo diante do comunismo internacional, o Exército interveio e assumiu o controle do país. Quando se trata de relações internacionais, a intervenção diz respeito a dirigir, de forma temporária, os assuntos internos de outra nação. 

Na recente história da humanidade, podemos contar várias destas intervenções, protagonizadas por distintas potências estrangeiras, como a Alemanha nazista e a Rússia comunista.  Ambas fracassaram em seus intentos e a médio ou longo prazo foram derrotadas e substituídas por regimes democráticos.  Ainda que essas democracias não sejam perfeitas, os povos que se encontravam sob o tacão intervencionista preferem as dificuldades que têm hoje do que se sentir invadidos em casa e ver sua soberania atacada. 

Os Estados Unidos – muitas vezes com o auxílio de outras potências mundiais – têm se especializado nessas intervenções, que se revelam tanto militares como políticas.  Na América Latina, contamos mais de um caso, como o Panamá do General Noriega, El Salvador, a Nicarágua entre outros.  Hoje, o Oriente Médio – Iraque, Afeganistão, etc. -  é o palco principal dessas intervenções que pretendem forçar uma mudança de rumo político com o pretexto da segurança mundial e do bem-estar do povo local.  

E o que temos visto como consequência é um constante recrudescimento da violência e dos fanatismos os mais diversos como resposta de povos que não desejam ser tutelados por outros povos e reagem negativamente a este tipo de intervenções que ameaçam sua autonomia. 

É o profundo desejo da sofrida população carioca que a intervenção federal agora decretada não acrescente mais sangue, mais luto e mais dor aos que já povoam diariamente seu cotidiano.  Que seja uma medida destinada a restabelecer a segurança no território do Rio de Janeiro apenas por um tempo até que a situação melhore e atinja níveis um pouco menos traumáticos. Para tal, os métodos não podem ser mais violentos do que a violência já presente na situação estabelecida. 

Violência gera violência. Dinâmicas de paz não poderão ser aplicadas se o ponto de partida for a intervenção truculenta e agressiva.  Isso só gerará revolta e mais agressividade, sobretudo naqueles que diariamente sofrem as consequências da injustiça.  A violência é filha da injustiça.  Se a intervenção pode ser uma necessidade para dirimir uma situação que chegou a um ponto de estrangulamento, pode ser um profundo fator de risco que tende a piorar esta situação em lugar de minorá-la ou resolvê-la. 

Que não se deixe de, a par das ações que a intervenção federal realizará na cidade e no estado, buscar construir soluções a longo prazo.  E isso implica  escolhas políticas que tragam governantes mais capacitados e desejosos de investir naquilo que realmente importa: educação, saúde e superação das injustiças.  Só aí estará o caminho para uma paz dinâmica e realista para o Rio, que já não suporta mais contar cadáveres e deseja voltar a viver com dignidade. 

Maria Clara Lucchetti Bingemer é  professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)

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