Por Maria
Clara Bingemer
Os olhos do mundo se voltaram na última semana para a Terra Santa. A viagem do
Papa Francisco, há muito planejada, era de suma importância. A agenda
muito delicada. Tratava-se de dirigir-se ao território onde habitam
israelenses e palestinos, e, ao mesmo tempo, o lugar sagrado dos cristãos por
haver sido o lugar onde Jesus de Nazaré nasceu, viveu, morreu e ressuscitou.
Para deixar bem clara a motivação religiosa e pastoral de sua viagem, o
pontífice viajou acompanhado por duas pessoas cuja presença amiga falava alto
simbolicamente: o rabino Abraham Skorka, seu interlocutor muito próximo desde
os tempos da Argentina, e o líder muçulmano Omar Abboud, presidente do
Instituto para o Diálogo Inter-religioso de Buenos Aires. A postura do
papa, de abertura e diálogo, já estava portanto patente em sua pessoa e em sua
comitiva.
Já o início da viagem chamou a atenção pela escolha original do
itinerário. Francisco chegou à Terra Santa pela Palestina, sem passar por
Israel. Voou de helicóptero a Belém da Jordânia, onde começou sua viagem no
sábado, tornando-se o primeiro pontífice a viajar diretamente à Cisjordânia em
vez de entrar por Israel, outro aceno às aspirações palestinas. Enfrentou
corajosamente o mal estar que isso poderia provocar na comunidade israelense
para fazer um gesto de convocação à paz.
Em seguida, Francisco fez parada não programada - quebrando o protocolo -
no Muro de Belém, visto pelos palestinos como um símbolo de repressão e
separação. Ali rezou e fez um apelo à paz. Declarou claramente que era preciso
acabar com a separação que tanto sofrimento traz a ambos os povos. E
encantou seus ouvintes palestinos ao reivindicar um "Estado
Palestino" como meta necessária das negociações de paz. Embora
acrescentando que tal meta deveria ser alcançada por um diálogo e cuidadosa
negociação, o papa deixou bem clara sua convicção de que os dois povos precisam
ver reconhecida sua soberania e autonomia para poder viver em paz.
Inspiradamente, convidou os mandatários de Israel e da Palestina à oração
em comum pela paz: "Aqui, no local de nascimento do Príncipe da Paz, eu
gostaria de convidá-lo, Presidente Mahmoud Abbas, junto com o Presidente Shimon
Peres, a se juntarem a mim em uma sincera oração a Deus pelo dom da paz".
Em Jerusalém, outro muro esperava por Francisco: o muro das lamentações frente
ao qual seguramente Jesus de Nazaré e seus discípulos rezaram repetidas vezes e
onde todo judeu piedoso encosta as mãos, o rosto, os lábios. Ali o Papa
rezou em silêncio por vários minutos e, tal como fazem seus irmãos judeus,
inseriu uma mensagem entre as pedras. Segundo o porta-voz do Vaticano, Pe.
Federico Lombardi, tratava-se do Pai-Nosso em espanhol. Em meio às
orações e mensagens várias ao Deus de Abraão, Isaac e Jacó, a oração de Jesus
foi acrescentada por seu vigário na terra.
Com a visita e a oração feita frente a este segundo muro, o Papa já se
aproximava do fim de sua peregrinação na Terra Santa. No Yad Vashem, construído
em homenagem aos seis milhões de judeus mortos no genocídio nazista da Segunda
Guerra Mundial, o Papa usou linguagem emocionada e forte. Falou na
necessidade de toda a humanidade envergonhar-se dos crimes cometidos na Shoa
contra tantas pessoas humanas pelo simples fato de sua identidade
judaica.
Após beijar as mãos de seis sobreviventes da Shoa, Francisco simulou um diálogo
entre Deus e Adão, onde o Criador repreende amargamente sua criatura pela
monstruosidade cometida. A isto Adão responde implorando misericórdia e
pedindo a graça de envergonhar-se do imenso pecado que foi capaz de cometer:
destruir sua própria carne. A esta oração do primeiro homem criado, o
pontífice deu voz em primeira pessoa.
Era a culminância de uma peregrinação no encalço da paz tão desejada e que
parece tão distante. Com o habitual tom positivo e esperançoso que tem
marcado todo o seu pontificado, Francisco quis fazer um forte apelo para um
compromisso entre as três religiões monoteístas em favor da paz.
Mas não apenas quis fazê-lo em forma de apelo. Quis desde o início dizer:
é possível. Assim se pode e se deve interpretar seu gesto de levar um
judeu e um muçulmano consigo na viagem. Assim é permitido interpretar sua
fervorosa oração diante dos dois muros: o de Belém e o de Jerusalém. Assim se
ousa entender seu discurso pedindo misericórdia pelo holocausto nazista que
pode estender-se a todos os outros holocaustos que uma humanidade violenta
insiste em continuar cometendo.
Após esta peregrinação, as atitudes, os gestos e as palavras do Papa serão
referência obrigatória para todas as iniciativas de diálogo, superação de
conflitos e construção da paz. Os muros podem ser referências religiosas
fundamentais para uma tradição, como é o caso do Muro das Lamentações.
Mas não podem nem devem ser barreira de cruel separação entre povos, religiões
e pessoas, como é tristemente o caso do Muro de Belém.
Maria Clara
Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é
autora de “O mistério e o mundo
– Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora
Rocco.
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