Eduardo Hoornaert
Proponho-me a comentar aqui escritos menos
conhecidos de José Comblin, principalmente os que ele elaborou ainda na Bélgica
antes de viajar ao Brasil (1950-1958) ou nos primeiros anos do Brasil, quando
ele ainda escreveu em francês (1958-1965). Penso em juntar também um comentário
aos dois volumes de sua Teologia da Revolução, igualmente escritos em francês e
publicados no início dos anos 1970. A intenção é de realçar a figura
intelectual de Comblin, um aspecto talvez menos conhecido de sua
personalidade.
Vamos aos seus primeiros escritos, elaborados em
torno de sua Tese de Doutorado em Teologia na Universidade Católica de Lovaina,
na Bélgica, no início da década de 1950.
Bem jovem, Joseph Comblin (1923-2011, ainda não
José) entra no seminário católico de Malinas, na Bélgica, e, se revelando bom
nos estudos, é enviado à Universidade de Lovaina para estudar teologia.
Por que o estudante escolhe, para a difícil prova
do Doutoramento em Teologia, trabalhar sobre o Apocalipse de São João? Curvado
sobre o texto, no silêncio de seu quarto de estudos, lendo as primeiras
palavras do Apocalipse: Desvelamento de Jesus Cristo, ele se sente
atraído pela poderosa mística que emana do texto. Assim imagino. A mística que
fez com que Mateus, em seu Evangelho, escevesse: nada que é velado
deixará de ser desvelado, nada que é escondido ficará desconhecido. O que lhes
digo na escuridão, repitam à luz do meio dia, o que se lhes sussurra na orelha,
gritem em cima dos telhados (10, 26-27). Urge revelar Jesus Cristo o
mais depressa possível, pois Jesus fica escondido por demasiado tempo. Há de se
gritar em cima dos telhados o que se sussurra na
orelha. Urge mostrar o que se deve mostrar, o mais
depressa possível (Apoc. 1, 1). Nos textos do Novo Testamento se
encontram nada menos de cem exortações acerca do que ‘deve’ acontecer, do que
‘deve’ ser anunciado: O Filho do Homem deve sofrer e
morrer (Mt 8, 31), eu devo ocupar-me das
coisas de meu Pai (Lc 2, 49), O Filho do Homem deve ser
elevado da terra (Jo 3, 14). Tudo isso urgentemente, o mais
depressa possível. Para João, o místico judeu que escreve setenta anos
após a morte de Jesus, não há mais tempo a perder. Jesus Cristo tem de ser
revelado logo:
Feliz quem lê e os que escutam
As palavras da profecia
E que guardam as coisas nelas expressas
Pois o momento, sim, urge (Apoc. 1, 3).
Como ressoam essas palavras na alma de um
estudante, que cursa numa Universidade conhecida e estimada por procurar
alcançar ‘ideias claras e precisas’ sobre o que vai escrito? Onde textos
considerados obscuros e enigmáticos, permeados de imagens de difícil
interpretação, costumam ser deixados de lado?
Aqui já temos uma primeira imagem do intelectual
Joseph Comblin. Em meio a um ambiente intelectual impregnado de
‘cartesianismo’, ele se abre a um texto místico, cuja leitura postula, antes de
tudo, o exercício de uma inteligência intuitiva, aquela
inteligência que consiste em ver Deus nas coisas, como escreve Spinoza em sua
‘Ética’. Joseph não tropeça sobre imagens como a da luta entre a ‘Besta’ e os
seguidores do ‘Cordeiro imolado’, do ‘Cavaleiro montado num cavalo branco’, do
‘Filho do homem’ a segurar sete estrelas na mão direita e uma espada afiada
(que corta de dois lados) saindo da boca, etc. Ele não fica assustado com o
turbilhão de imagens do Apocalipse, pois capta a inspiração geradora dessas
imagens, dos símbolos, sugestões e evocações fortes e impactantes.
Penso que a opção do estudante Joseph Comblin, no
sentido de escolher trabalhar em cima do Apocalipse, diz muito, não só sobre
seu perfil intelectual, mas também sobre seu temperamento. Ao longo
de sua vida posterior, ele vai demonstrar que vem para ‘desvelar’, ‘revelar’,
provocar, desafiar a inteligência de seus ouvintes, leitores e
interlocutores.
O estudante Joseph se sente atraído pelo visionário
judeu João, que ‘descobre’ Jesus Cristo, retira o véu da incompreensão, por
meio de uma compreensão intuitiva de sua figura. Sua poderosa prosa, ‘obra de
furor e paz, sangue e luz’, não amedronta o estudante, que resolve fazer sua
Tese de Doutoramento em Teologia em cima de uma leitura do penúltimo capítulo
do Apocalipse, o capítulo 21, acrescido dos primeiros 5 versículos do capítulo
22, à qual dá o título La Liturgie de la Nouvelle Jérusalem
(Apoc 21,1-22,5). No referido capítulo surge a esplendorosa visão da
Nova Jerusalém, finalmente vencedora da Babilônia, onde reina a ‘Besta’ com
seus lacaios. A Nova Jerusalém desce do céu num fulgor de luz e de paz. O jovem
teólogo capta por que João opõe Jerusalém a Babilônia. E, logo após
a conclusão de seu Doutorado, ele resolve retrabalhar o texto, alargar o tema e
abarcar uma leitura do Apocalipse inteiro. Assim sai à luz seu primeiro
livro: Le Christ dans l’ Apocalypse (Bruxelles, Desclée,
1965).
O livro, editado 56 anos atrás, ainda hoje merece
ser lido. Consta do acervo de livros que Comblin, alguns anos antes da morte,
doou para a Biblioteca da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Como
sou feliz possuidor de um exemplar, dou aqui um breve comentário.
Não é à toa que Joseph retoma pacientemente a longa
lista de comentários do texto, que cobrem dois mil anos (como você pode
conferir por meio do verbete ‘Apocalipse’ no ‘Dicionário Patrístico e de
Antiguidades Cristãs’, editado pela Vozes em 2002, pp. 126-127). Mas, enquanto
muitos desses comentários, ao longo dos tempos, se atêm a estranhezas (o número
616; as sete trombetas e as sete taças, os quatro cavaleiros, a espada que
corta de dois lados, os candelabros etc.), Comblin focaliza logo o cerne da
questão: Babilônia e Jerusalém. A Babilônia, ‘a grande prostituta’ (19, 2), a
‘moradia dos demônios’ (18, 2), hospeda a Besta ‘que só abre a boca para
proferir blasfêmias contra Deus’ (13, 6).Ela simboliza sucessivas dolorosas
histórias, vividas pelo povo judeu, como o exílio babilônico do século IV aC,
por exemplo. A história mais dolorosa se refere à corrupção própria Jerusalém,
que decide, por meio de seu Sinédrio, crucificar Jesus. Eis o ponto
fundamental, em torno do qual tudo gira. No momento em que Jerusalém condena
Jesus, ela se torna cúmplice de Roma, a Babilônia. Mais: ao ‘matar o profeta de
Deus’ (11, 8), Jerusalém vira uma nova Babilônia, domínio do Satã (11, 7-8) e
executora dos profetas. Ao se alinhar com Roma, ela não é mais o ponto de
convergência dos povos. Nasce uma Nova Jerusalém entre os cristãos, seguidores
do mártir Jesus. Relacionando o drama de Jerusalém ao drama de Jesus, o
Apocalipse projeta esse último num cenário mundial. Roma significa a
mundialização da profecia de Jesus. Aqui vale a pena ler (para os que estão em
condição!) a longa nota 2 das páginas 88-89 do livro que estou comentando, e
que não cito aqui por falta de espaço.
A derrota política de Jerusalém no ano 70 dC
(movimento dos zelotes) confirma a visão de João. A cidade histórica deixe de
ser referência. Os cristãos fogem da cidade para Pella e aí se tornam o ‘resto
espiritual de Sião’. Carregam consigo a Jerusalém espiritual. Como Jesus foi
condenado em Jerusalém por Roma, os cristãos
fogem de Jerusalém e de Roma. A Nova Jerusalém é irredutível a
Roma. No momento em que Roma reivindica a supremacia sobre o mundo, ela entra
em conflito com Jesus (veja pp. 190-191).
Embora seu primeiro livro seja um primor, Joseph
não se dá por satisfeito, pois sabe que esse livro nunca será lido por um
público não versado em teologia. Então resolve retrabalhar o tema de modo menos
acadêmico, em forma de ensaio, deixando de lado o pesado aparelho bibliográfico
e mesmo a referência ao Apocalipse. Assim aparece em 1959 um novo livro,
intitulado La réssurrection de Jésus Christ. Essai (Paris,
Éditions Universitaires, 1959) e logo traduzido em neerlandês Hij is
verrezen. Essay (‘Ele ressuscitou. Ensaio’; s’ Gravenhage, Pax, 1963).
O livro é bem acolhido, ganha um elogio do professor holandês Grossouw, na
época uma referência no mundo teológico e pastoral de língua neerlandesa:
‘Comblin é legível por um leigo não especializado, mas não é superficial. Não
procura sensação por teses ousadas. Ele é um verdadeiro ensaísta. Paira um ar
de liberdade. O leitor se sente bem, pois o autor não se exibe conhecimentos e
conduz o leitor pela mão, como um guia. Ele é um autor ‘profano’, ou seja,
dialoga com o mundo profano. Critica a teologia medieval que não entende a
ressurreição, pois vive encapsulada na cristandade e não tem perspectiva de
futuro diferente, democrático e secular. Mostra-se a favor da secularização e
da democracia’ (edição neerlandesa, pp. 9-11).
Esses elogios fazem pensar em algo que permeia toda
obra teológica de Comblin: ele não está empenhado em provar que ‘entende do
assunto’, mas quer dialogar com seu leitor, sua leitora. Escreve em tom
‘ensaístico’, não ‘dogmático’, e nisso acompanha diversos bons teólogos da
época, como Michel de Certeau, que não se refugiam numa ‘especialidade’, mas
transitam livre e competentemente por diversos campos de conhecimento. Teólogos
que não têm medo de enfrentar os grandes temas do cristianismo, acima das
controvérsias, não se perdem em minúcias, não apresentam erudição, não entram
em discussões e controvérsias, não discutem pormenores, mas só tratam de dados
primários e fundamentais. Comblin não se exibe, vai direto ao assunto e
pressupõe, por exemplo, que seu leitor seja bastante inteligente para captar
que, em seu livro ‘A ressurreição de Jesus Cristo’, por exemplo, ele se move em
campo místico, não definidor nem doutrinador. O autor nada mais pretende que
apresentar uma síntese, provocar uma conversa com o leitor e, ao mesmo tempo,
instigar a reflexão.
Desde esses primeiros livros, ao comentar o
Apocalipse e o Evangelho de João, escritos considerados difíceis pelos
exegetas, ele revela a humildade e sinceridade de um grande intelectual. Não
pretende dizer a última palavra, não se refugia atrás de seu título de ‘Doutor
em Teologia’, não se exibe como exegeta, conversa com seu leitor, sua leitora,
está interessado em fazer com que se reflita. Enquanto os exegetas têm medo de
comentar o Apocalipse, dizendo que não dominam a complexa literatura
apocalíptica judaica da época, Joseph avança e depura o que está ‘por trás das
palavras’ desse texto em muitos pontos enigmático. Permanece ‘provisório’,
‘incompleto’, consciente da provisoriedade de qualquer interpretação de textos
tão complexos como são os textos atribuídos a João Evangelista.
Acrescento aqui um dado importante. Joseph vê no
Apocalipse a chave de compreensão do quarto Evangelho. Uma fértil intuição,
embora não aceita por todos os especialistas. Comblin enxerga no Evangelho a
mesma poderosa prosa que ele encontrou no Apocalipse. João é alguém que parece
dizer, a cada momento: como foi possível aparecer no mundo uma figura humana
como Jesus! Ele eleva a figura de Jesus ao mais alto dos céus, ao
mundo sublime de Deus, à própria convivência divina. O que atrai no texto de
João é a mais viva emoção que transparece a cada momento: a Verdade, a Luz e a
Glória alcançam nosso mundo na pessoa de Jesus de Nazaré! Uma obra de
excepcional inteligência intuitiva. Embora provavelmente poucos episódios
narrados por João tenham a ver com acontecimentos reais, ocorridos na vida de
Jesus, eles (as conversas com Nicodemos e com a mulher samaritana, a
ressurreição de Lázaro, etc.) captam maravilhosamente o espírito de Jesus e do
primeiro cristianismo.
Hoje temos o ‘best seller’ ‘The fourth Gospel’ (O
quarto Evangelho, Harper One, 2013), do exegeta e bispo norte-americano (da
igreja episcopal) John Shelby Spong. Mas quando lemos esse livro, verificamos -
não sem surpresa - que, no fundo, o Comblin de 1959 combina com o Spong de
2013. Claro, o primeiro não dispõe do instrumental de análise linguística do
segundo (escreve numa antecedência de mais de 50 anos), mas é interessante
verificar que ambos concordam no essencial: a obra de João Evangelista e a obra
de um místico judeu do final do século I dC, dotado de grandes habilidades
literárias, de uma inteligência intuitiva excepcional.
Gostaria, para terminar, de comentar a impressão
que o teólogo francês Yves Congar teve dos primeiros trabalhos de Comblin,
especificamente dos dois volumes da sua Théologie de la Paix
(Principes, editado em Bruxelles, Éditions Universitaires,
em 1960, e Applications, pela mesma editora, em 1963), que Joseph -
por sinal - redigiu a pedido do Cardeal Léon Suenens, da Bélgica. Congar
escreve que esses livros são um peu touffus (‘um pouco
espessos’, ou seja, sobrecarregados de detalhes).
É verdade. Mas há como argumentar que esses
detalhes e essas frequentes anotações ao pé das páginas revelam algo que, com
os anos, desaparecerá dos livros de Comblin: a preocupação em fundamentar a
teologia na história concreta dos homens. Ao longo de toda a sua produção
intelectual, José aborda sempre seus temas teológicos por meio de considerações
históricas, e isso exige entrar em pormenores, escrever longas páginas para
apresentar temas que, para muitos, pertencem a um passado morto. Acontece que o
passado não está morto, mas vive no presente. ‘Quem desconhece o passado está
condenado a repeti-lo’, diz o ditado. Ao longo de sua vida de
intelectual, Comblin se distingue de muitos de seus colegas teólogos por
nunca omitir a dimensão histórica do estudo teológico de não ‘pular’ em cima da
história e evocar simplesmente a vida dos primeiros cristãos para apresentar
experiências de hoje (na apresentação das Comunidades Eclesiais de Base [CEBs],
por exemplo). José nunca passa diretamente da Bíblia ou dos primeiros tempos
cristãos para a situação atual. Sempre considera a ‘tradição’, ou seja, a
mediação dos dois mil anos de cristianismo. Assim ele não fala em CEBs sem
falar da paróquia. Convencido que ‘o passado vive em nós’, não é nunca página
virada. Negligenciado, pode se vingar, de modo inesperado.
Concluindo. Nos primeiros livros de Joseph Comblin,
ainda dos anos 1950, que acabei de comentar acima, encontramos um estudante em
teologia que consegue ver claro num turbilhão de imagens e símbolos, muitos
deles enigmáticos para nós hoje. Um estudante capaz de superar a condição de
‘inteligência confusa’ e dizer as coisas com clareza meridiana. Uma clareza que
- à primeira vista - se apresenta como ousadia, mas que na realidade é uma
clarificação do pensamento (embora a muitos se apresente como
provocação). Nesse sentido, o ‘Desvelamento (a apocalipse) de Jesus’ é o
desvelamento da história do mundo, simbolizada pela transformação da Antiga
Jerusalém, vergonhosamente humilhada pela Babilônia e que acabou se submetendo
ao poder da ‘Besta’, em uma Nova Jerusalém, espiritual, que desce do céu e
liberta os habitantes dos poderes imperiais deste mundo. Encontramos aqui
outra poderosa imagem metafórica, a do Reino de Deus, que subjaz às falas de
Jesus de Nazaré.
Eduardo Hoornaert foi professor
catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da
História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a
formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros
séculos.