Muitos
problemas que nos aparecem quando lemos os evangelhos provêm do fato que lhes
formulamos perguntas que eles são incapazes de responder. Perguntamos se Jesus
fundou a Igreja, se ele instituiu o papado, o sacerdócio, os sacramentos. Por
vezes forçamos a leitura dos evangelhos, na ânsia de neles encontrar respostas
que confirmem a atual organização da vida cristã.
Efetivamente,
nos últimos anos a figura de Jesus tem sido estudada intensivamente com a ajuda
de ciências como a história, a sociologia, a análise linguística e a
arqueologia. Hoje estamos em condições de penetrar mais no modo em que Jesus
entendeu a si mesmo e a sua missão que algumas décadas atrás. Todos os estudos
dos últimos anos apontam para um Jesus judeu, que pensa em categorias judaicas,
próprias de seu tempo e do ambiente em que vive. Sua cosmovisão difere muito da
nossa. Basta dizer que seu mundo é habitado por sopros, santos ou impuros, por
anjos e demônios, forças positivas e negativas que influenciam poderosamente a
vida humana. Portanto, uma ‘análise da realidade’ modo bem diferente da nossa,
mas não desprovida de uma lógica convincente.
Aqui
vão alguns pontos que revelam como Jesus entende sua vida:
1.
Ele acredita que Deus detém o poder no céu, enquanto seu adversário Satanás
manda na terra e no inferno. É dentro da resolução, tomada por Deus, no sentido
de alargar seu Reino na terra, que Jesus entende sua ação, seus milagres e suas
expulsões de demônios. Jesus acredita agir em nome de Deus e assim encara sua
ação, que é inevitavelmente de caráter pontual e passageira. Ela é sinal da
resolução, por parte de Deus, de estender seu domínio sobre a terra. Jesus
entende que sua ação é obra de Deus, ou seja, que ele age em nome e no poder de
Deus. Não se trata de uma ação propriamente humana, mas de uma ação de Deus
(Jesus fala em ‘graça de Deus’).
2.
Acreditando ser o enviado de Deus, Jesus entende que suas ações, em última
análise, são ações de Deus. Quem pensa que ele pratica milagres, expulsa
demônios e afasta ‘sopros malvados’ pelo poder de Satanás, e desse modo se
escandaliza com Jesus, está mal-intencionado, pois a cura de doentes, por
exemplo, não pode ser obra de Satanás, já que obedece à lógica do Reino de
Deus, que combate a doença e outros males.
3.
Jesus acredita que, quanto mais se alarga o círculo onde se praticam curas e
exorcismos (expulsões de demônios), mais se alarga o Reino de Deus. Os setenta
discípulos são enviados para circular pelas aldeias, curando e expulsando
demônios. A ideia não é de fundar uma instituição religiosa, mas de difundir o
Reino de Deus pela luta contra o que prejudica as pessoas, como a doença, a
marginalização, etc.
4.
Um engano comum consiste em pensar que aderir a Jesus significa aderir a alguma
religião, sem agir em consequência do que ouviu da boca de Jesus. ‘O
homem que ouve minhas palavras se parece com quem, querendo construir sua casa,
cava fundo e assenta a casa na pedra. Vem a tempestade, lançam-se as águas
contra a casa, mas ela não se abala. Quem ouve, mas não faz nada, se compara
com um homem que constrói uma casa sem fundamentos. A água se joga contra a
casa, ela desaba. Sua ruína é total (Lc 6, 47-49). Não basta
dizer: ‘felizes os pobres’, há de se fazer algo para que os pobres
sejam felizes.
5.
Embora acompanhado de numerosos discípulos (setenta), Jesus faz questão de
escolher um círculo mais íntimo de doze, ‘escolhidos para ficarem perto
dele, serem enviados em seu nome e terem autoridade para caçar demônios. Assim
ele fundou os doze’ (Mc 3, 14-16). Esses apóstolos são comparáveis aos
doze patriarcas de Israel. São os patriarcas de um novo Israel, colaboradores
na construção do Reino de Deus.
6.
A predileção de Jesus por montanhas e lugares altos provém da ideia que a
montanha é o lugar onde o céu de Deus fica mais próximo e a terra de Satanás
mais distante. Deus fala de preferência na montanha, perto de sua morada. Em
tempos de dominação satânica sobre a terra, faz bem subir à montanha, como
disseram os grandes profetas. Que seja o Tabor, o Carmelo, o Horeb, ou ainda o
Sinai, a montanha é um lugar que fica mais perto do céu. É no monte Sinai que
Deus fala com Moisés e no monte Carmelo que, diante de todo o Reino do Norte
reunido em festa, Elias mostra de forma espetacular que Ihwh é o maior. É no
monte Tabor que Jesus conversa com Moisés e Elias. Na montanha, ele encontra
inspiração para fazer suas declarações mais contundentes: Venda
todos os seus bens, dê o dinheiro aos pobres. Você amontoará assim
um tesouro no céu (Mt 19, 21). Na terra, ou seja, no mundo segundo a
vontade dos homens, o dinheiro vale muito. Contudo, no céu, ou seja, no
mundo segundo a vontade de Deus (o Reino de Deus), é preciso cambiar os valores
monetários por outros valores, ou seja, pela atenção à situação em que vive a
humanidade.
7.
Como Jesus trabalha psicologicamente essa convicção de ser o enviado de Deus
para estabelecer seu Reino na terra? Um texto forte de Lucas descreve isso. A
ideia deixa Jesus inquieto, impaciente e ao mesmo tempo resoluto: Vim
botar fogo na terra e não vejo a hora dele pegar. Devo me meter num batismo e
me atormento, pois não vejo nada mudar. Vocês pensam que vim trazer a paz sobre
a terra? Mas não: eu trago a divisão (desunião). Doravante, cinco pessoas moram
numa casa, e elas estarão divididas. Serão três contra dois e dois contra três.
Pai contra filho, filho contra pai. Mãe contra filha, filha contra mãe. Sogra
contra nora, nora contra sogra (Lc 12, 49-53). O profeta Elias teve
uma emoção parecida: Sou tomado por uma paixão furiosa por
Ihwh (1Rs 19, 10). E no Salmo 39 se lê: Meu coração arde em
mim, dentro de mim se acende um fogo (Sl 39, 4).
8.
Não é por menos. Com Jesus, o reino de Satanás sobre a terra está
abalado. Demônios são expulsos, melhor, convertidos em anjos. Desvanecem,
na mente de Jesus, os espíritos maus que milenarmente rondam o mundo, os
demônios das sete profundezas subterrâneas, os dragões, as serpentes, os
monstros, as maldições, as perturbações assombrosas, as máscaras de cifres
ameaçadores, os carrascos, os tiranos do mal, os ‘divisores’ (diabolos), as
turvações, as perturbações, as dissoluções, as tiranias, a cauda que varre o
mundo, os morcegos que chupam a vida, as unhas que arranham todo sinal de vida,
as presas enormes, o sol negro, as trevas de Lucifer (o anjo carregado de levar
a luz vira o príncipe das trevas), o adversário, os maus pensamentos, a
desordem na consciência humana, a enganação, o demônio infiltrado na história.
Aparecem os anjos, mensageiros de Deus, guardiões da vida, condutores de astros
e homens, protetores de plantas e de filhos de Deus. Entram Michael, Gabriel,
Rafael, os protetores da vida. Jesus visualiza, com Isaías, os serafins em
torno do trono de Deus. Ele enxerga os anjos da guarda a proteger as pessoas,
fazer a festa, fundamentar a alegria e divulgar. Algo inteiramente novo
acontece.
9.
Essa convicção enche a alma de Jesus de uma inconfundível alegria. Imagens
terríveis, que atormentam a humanidade desde sempre, desvanecem, enquanto
aparecem imagens de luz e festa. Por onde Jesus anda se espalha um clima de
festa. Em sua presença ninguém jejua. ‘Numa festa de casamento, será
que os acompanhantes de honra do noivo jejuam? Enquanto ele
está com eles, não jejuam. O dia virá em que o noivo lhes será tirado. Então
jejuarão. Ninguém conserta roupa velha com emenda nova: o pedaço novo puxará o
velho, novo sobre velho, e o rasgão será pior. Ninguém mete vinho novo em odres
velhos. O vinho arrebenta os odres e tudo fica perdido. Vinho novo, odres
novos’ (Mc 2, 18-22). O vinho novo da alegria, do convívio
alegre: ‘um homem oferece um grande festim’ (Lc 14, 16). ‘Façam
a festa, pois meu filho estava morto e vive de novo, estava perdido e foi
encontrado’ (Lc 15, 24). Jesus convida as pessoas a comer e beber com
ele, inclusive ‘pecadores e cobradores de impostos’. A Carta
aos Hebreus, dos anos 65, traduz essa alegria contagiante: (Vocês não têm de
que se queixar, pois) é do monte de Sião, da cidade de Deus vivo, de
Jerusalém celeste e da miríade de anjos em festa que vocês se aproximam (Hb
12, 22).
10.
Como Jesus se apresenta? Enviado de Deus, revestido do poder de Deus, mais que
profeta, ele sofre o destino dos profetas. Mais que anunciador do Reino de
Deus, ele o realiza ao derrotar o Reino de Satanás e demonstrar poder sobre os
demônios. Mais que idealizador do novo Israel, ele é seu iniciador, embora de
modo apenas tópico. Está empenhado em alargar o Reino de Deus na terra e de
fundar um novo Israel. Para tanto, envia seus discípulos pelas aldeias da
Galileia. Seu ‘vinho’ é novo, exige ‘odres novos’. Jesus não se apresenta como
fundador de uma nova religião, nem mesmo como ‘mestre em Israel’, antes como
iniciador e animador de atividades e comportamentos, na humildade.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É
membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina
(CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas
origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
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