Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
O
Estado do Rio de Janeiro está sob intervenção federal. O presidente da
República nomeou interventor o general de Exército Walter Souza Braga Netto, do
Comando Militar do Leste, sediado na Cidade do Rio. O oficial
assumirá o comando das forças de segurança e da ordem no Estado, a saber: as
Polícias Militar e Civil e o Corpo de Bombeiros. Seus comandados do
Comando Militar do Leste serão mobilizados para interferir nos problemas de
segurança, respondendo apenas ao Presidente da República.
Ninguém
nega que o estado precisa encontrar um caminho para resolver a situação de
insegurança em que se encontra. Com um governo inoperante, uma
prefeitura da cidade do Rio ausente e o poder paralelo do tráfico armado até os
dentes e cada vez mais organizado, as mortes se multiplicam e os cidadãos não
conseguem sequer exercer seu direito de ir e vir com um mínimo de
tranquilidade.
Porém
é fato igualmente inegável que intervenção militar desencadeia em nossa memória
recente recordações – e, portanto, reações – muito mais negativas que
positivas. O Brasil conheceu por décadas o gosto amargo da
intervenção militar feita ditadura, com um saldo irreparável de violência,
medo, torturas e morte. Continuam sendo encontradas ossadas de uma
geração ferida de morte por aqueles que saíram dos quartéis para garantir a
ordem que acreditavam perturbada e tardaram muito em retornar a eles.
Por isso, intervenção é
palavra ambígua e movediça. Com origem no vocábulo latino interventĭo,
intervenção é formada pelos vocábulos “inter” e “venire”, e indica a ação ou o
efeito de intervir. E isso faz referência direta a diversas questões
onde identidade e alteridade se cruzam e se esbarram mutuamente. Abrange desde
o ato cirúrgico que, em medicina, destina-se a solucionar um problema de saúde
com a ciência exercida na prática, até o ato de dirigir os assuntos que
correspondem a outro, seja este pessoa física ou entidade coletiva.
Uma intervenção militar
supõe o fracasso da sociedade civil em resolver seus próprios problemas, sua
incapacidade de controlar uma situação que está sob sua
alçada. Outra esfera da sociedade vem então e intervém para
solucionar aquilo que a sociedade não consegue administrar. Assim
foi nos tristes idos de março de 1964. Acreditando o Brasil em
perigo diante do comunismo internacional, o Exército interveio e assumiu o
controle do país. Quando se trata de relações internacionais, a intervenção diz
respeito a dirigir, de forma temporária, os assuntos internos de outra
nação.
Na recente história da
humanidade, podemos contar várias destas intervenções, protagonizadas por
distintas potências estrangeiras, como a Alemanha nazista e a Rússia
comunista. Ambas fracassaram em seus intentos e a médio ou longo
prazo foram derrotadas e substituídas por regimes
democráticos. Ainda que essas democracias não sejam perfeitas, os
povos que se encontravam sob o tacão intervencionista preferem as dificuldades
que têm hoje do que se sentir invadidos em casa e ver sua soberania
atacada.
Os Estados Unidos – muitas
vezes com o auxílio de outras potências mundiais – têm se especializado nessas
intervenções, que se revelam tanto militares como políticas. Na
América Latina, contamos mais de um caso, como o Panamá do General Noriega, El
Salvador, a Nicarágua entre outros. Hoje, o Oriente Médio – Iraque,
Afeganistão, etc. - é o palco principal dessas intervenções que
pretendem forçar uma mudança de rumo político com o pretexto da segurança
mundial e do bem-estar do povo local.
E o que temos visto como
consequência é um constante recrudescimento da violência e dos fanatismos os mais
diversos como resposta de povos que não desejam ser tutelados por outros povos
e reagem negativamente a este tipo de intervenções que ameaçam sua
autonomia.
É o profundo desejo da
sofrida população carioca que a intervenção federal agora decretada não
acrescente mais sangue, mais luto e mais dor aos que já povoam diariamente seu
cotidiano. Que seja uma medida destinada a restabelecer a segurança
no território do Rio de Janeiro apenas por um tempo até que a situação melhore
e atinja níveis um pouco menos traumáticos. Para tal, os métodos não podem ser
mais violentos do que a violência já presente na situação estabelecida.
Violência gera violência.
Dinâmicas de paz não poderão ser aplicadas se o ponto de partida for a
intervenção truculenta e agressiva. Isso só gerará revolta e mais
agressividade, sobretudo naqueles que diariamente sofrem as consequências da
injustiça. A violência é filha da injustiça. Se a
intervenção pode ser uma necessidade para dirimir uma situação que chegou a um
ponto de estrangulamento, pode ser um profundo fator de risco que tende a
piorar esta situação em lugar de minorá-la ou resolvê-la.
Que não se deixe de, a par
das ações que a intervenção federal realizará na cidade e no estado, buscar
construir soluções a longo prazo. E isso implica escolhas
políticas que tragam governantes mais capacitados e desejosos de investir
naquilo que realmente importa: educação, saúde e superação das
injustiças. Só aí estará o caminho para uma paz dinâmica e realista
para o Rio, que já não suporta mais contar cadáveres e deseja voltar a viver
com dignidade.
Maria Clara Lucchetti
Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, decana
do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
A teóloga é autora de “Simone
Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
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