Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Os últimos dias foram marcados pelo debate sobre
assédio sexual. Em parte, graças a Deus, porque de assédio político e
econômico estamos todos um pouco cansados.
O discurso de Oprah Winfrey na festa do Globo de
Ouro foi o clímax de uma caminhada legítima e positiva da mulher. Em busca do
seu espaço e a paridade de direitos com o homem há várias décadas, a mulher
hoje se nega a ser assediada e oprimida em um mundo ainda marcado pela
supremacia masculina.
Como mulher e negra – portanto duplamente vulnerável
– Oprah deu voz a muitas de suas colegas do meio cinematográfico e artístico
que trabalharam para construir uma carreira e no caminho foram submetidas a
chantagens, assédios, passando até mesmo pelo “teste do sofá”. O discurso
incluiu igualmente todas as vítimas de abusos e violências sexuais de qualquer
espécie. A apresentadora comoveu e convocou com seu inflamado e
emocionado discurso.
Pouco depois, outras mulheres tomaram a
palavra. Cem francesas publicaram uma carta com outra visão sobre a
questão. Entre elas, ninguém menos que a grande e belíssima atriz
Catherine Deneuve e também a pensadora e escritora Catherine Millet. Com
a visão do feminismo francês – bem diferente do estadunidense – criticaram o
tom com que as denúncias de assédio vêm sendo feitas do outro lado do
Atlântico. E apontaram para o que poderia ser um “machismo às avessas”,
sendo os homens vítimas de denúncias irresponsáveis e extremistas.
Catherine Deneuve pediu desculpas às vítimas pelo
mal-estar que sua carta causou. Mas deixou bem claro que o fazia “a elas
e só a elas”. Ou seja, não pretendia incluir em seu pedido de desculpas
as feministas de além-mar. As reações foram fortes e muitas, na França
mesmo e nos Estados Unidos mais ainda. As cossignatárias francesas foram acusadas
de serem inimigas da liberdade e coniventes com os abusos sexuais cometidos
pelos homens contra as mulheres.
Com temor e tremor, registro meu sentir.
Impossível não compreender e sentir-se solidária com as norte americanas, a
luta delas e o luto pela pisoteada dignidade da mulher. É fato que não
apenas ao norte do Equador, e mais ainda ao sul, mulheres são usadas, abusadas,
chantageadas e agredidas. O assédio pode começar na família,
protagonizado pelo pai, o tio, um amigo, o irmão, o primo. As histórias são
muitas e dolorosas, compostas de silêncios, pânicos, lágrimas e o pavor de que
a noite viesse, a casa dormisse e as visitas indesejáveis se
aproximassem.
A idade adulta e a entrada no mercado de trabalho
não melhoram o panorama. Na vida profissional, até mesmo nos mais
inimagináveis e improváveis setores, o assédio se faz presente. E a sombra do
abuso cerca, roça, toca, encosta, força e se tem algo de poder, chantageia. O
comportamento sinistro é encoberto pela mentalidade que não escuta, não observa,
não acredita. E reforçada pelos que acham que a culpa é da vítima, que
saiu de short ou decotada, provocando indevidamente a libido masculina.
Por outro lado, a convivência entre homens e
mulheres supõe uma diferença que quase nunca repele e quase sempre atrai. E
esta pode se expressar em galanteios, admiração, olhares, que não podem ser
apressadamente classificados de assédio ou abuso. Este intercâmbio é
necessariamente sexuado (não sexual) e pode ser vivido no respeito e dentro de
limites éticos. E quando assim sucede, dignifica tanto o homem como a
mulher.
Não necessariamente a admiração de um homem por uma
mulher deve derivar para assédio, abuso ou violência. Portanto, não há
que anatematizar qualquer iniciativa dos homens nesse sentido como digna de ser
repelida, denunciada e execrada. O manifesto das francesas não deixa de
acertar neste ponto. Só não me agrada a palavra “importunar”. A
associação imediata se faz com “molestar”, que leva ao assédio e à repulsa ao
mesmo. Ninguém gosta de ser importunada, mas de ser admirada com respeito
e delicadeza, sim. Duvido que haja alguma mulher que não goste.
Gosto que me ajudem a carregar a mala pesada, que
abram a porta da sala ou do carro para que eu possa entrar, que puxem a cadeira
para que eu me sente. Tantos amigos tive e tenho na vida que já fizeram isso,
na frente de meu marido ou na sua ausência. E jamais me senti assediada.
E se o admirador se tornar insistente e inconveniente, a mulher é livre e
adulta para fazê-lo sentir que o limite chegou e é melhor parar por
ali.
Entre o feminismo militante das estadunidenses e de
muitos outros coletivos na Europa, no Brasil e em toda parte e a visão mais
flexível das francesas, haverá uma terceira via? Quero crer que
sim. E ela reside na tolerância zero com a violência sexual de qualquer
tipo: física, emocional, profissional etc. Porém não ao se criar uma
atitude tão antitética em relação aos homens que transforme todos e cada um em
potencial agressor e/ou inimigo.
Nada se constrói de positivo se a proposta é lutar
apenas “contra” algo. Lutar apenas “contra” o machismo não nos levará
muito longe, parece-me. Melhor é lutar a favor. A favor de mais
educação e formação para as mulheres, mais reconhecimento de sua competência, mais
respeito à sua diferença, mais equidade e justiça para avaliar seu desempenho
junto aos colegas homens, mais esforços para que a equiparação salarial para
iguais competências seja uma realidade.
Senão, como ficariam as obras literárias, musicais
e artísticas em que a beleza da mulher é cantada e louvada? A canção de
Vinicius de Moraes e Tom Jobim sobre uma garota que passava em Ipanema rumo à
praia celebra a beleza e o encanto daquela mocinha sem deslizar nem um
milímetro para a grosseria ou a falta de respeito. Por outro lado, há
canções, textos pretensamente literários e manifestações supostamente
artísticas que, na verdade, são de extremo mau gosto e desrespeito e não ajudam
em nada o processo de emancipação da mulher.
Um mundo onde não se possa mais cantar “Garota de
Ipanema”, onde os poemas de Carlos Drummond de Andrade, Pablo Neruda e outros
sejam banidos como misóginos e machistas, onde as pinturas e esculturas que
retratam o corpo feminino com suas curvas e relevos sejam postos sob suspeita
será um mundo enfadonho, opaco e desagradável. Não humanizará ninguém e
muito menos as mulheres.
Maria
Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da
PUC-Rio. A teóloga é autora de “Simone
Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
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