Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
A sociedade do descarte e da obsolescência rápida,
das relações a um clique de distância, dos compromissos efêmeros valoriza muito
o novo. Cansou do vestido? Compra um novo. Do sapato?
Idem. Saiu um novo modelo de celular? Compra. Não importa se
o outro de um ano atrás ainda funciona perfeitamente. O importante é ter
o último, o mais novo, o de agora há poucos minutos. Novo é sinônimo de
imediatez, de avidez aquisitiva. E funciona em tudo: relações
afetivas, objetos etc.
Aproximamo-nos agora, dentro de uns dias, de um ano
novo. Será que o entendemos dentro desta chave imediatista e
descartável? O que é a celebração de Ano Novo? Por que é tão
importante, por que a festejamos com fogos de artifício? E, se o Natal é
uma festa com origens claras no Cristianismo, o Ano Novo toca em todas as
religiões. Trata-se de uma comemoração universal. No Brasil, as religiões
afrobrasileiras homenageiam Iemanjá, rainha das águas, e muitos cristãos se
unem a essa comemoração realizando rituais com velas e pulando as ondas que
chegam à beira da areia.
O ano novo que celebramos – cuja festa também pode
ser chamada ano bom – faz parte do calendário gregoriano que adotamos, herdeiro
do calendário romano. Neste, o ano novo começava em 1º de janeiro e
era dedicado a Jano, o deus dos portões, divindade bifronte, com duas faces:
uma voltada para a frente, visualizando o futuro; a outra voltada para trás,
olhando para o passado. Nessa fronteira entre o passado e o futuro, os romanos
viram uma forma adequada de delimitar o momento entre o fim de um ano (passado)
e o começo de outro (futuro). Júlio Cesar, imperador romano, proclamou o
decreto que fixa o dia 1º de janeiro como dia do ano novo. Daí o nome do mês.
Os romanos eram um povo politeísta e adoravam muitos deuses, entre os quais
Jano e o próprio imperador, considerado divino. Muitos cristãos foram
martirizados por se recusarem a prestar culto ao imperador, proclamado como um
deus pela cultura romana. Aqueles que adoravam o Deus Pai de Jesus Cristo e proclamavam
sua divindade eram chamados de ateus e por isso martirizados.
Não se tem notícia de que o povo judeu, monoteísta, assim como a
comunidade cristã primitiva, tenha comemorado o ano novo. Tratava-se,
pois, de uma festa fundamentalmente pagã. O Ano Novo judaico não acontece na
mesma data que o nosso, situado, segundo o calendário gregoriano, entre 31 de
dezembro e 1º de janeiro. É uma festa religiosa, diferente da que celebramos na
praia ou com fogos de artifício.
O calendário gregoriano seguiu a expansão da
cultura ocidental e foi adotado oficialmente em diversos países. Assim,
o ano novo é comemorado a 1º de janeiro mesmo em países com suas próprias
celebrações em outros dias, como em Israel e na China, por exemplo.
O que importa, no entanto, na virada do ano
que se aproxima é estarmos conscientes do que representa o novo no nosso
imaginário. Se nos movemos pela chave consumista, o novo é apenas a
substituição do já adquirido, do já possuído, do já utilizado, por algo ainda
não conhecido, que traz a excitação da descoberta. Porém, logo esse novo
cairá no esquecimento ou ficará num canto, desprezado e sem
utilidade. Assim pode acontecer com o ano novo e, sobretudo, com os
propósitos e resoluções que nesta época do ano em geral fazemos. Duram
apenas um mês ou quem sabe menos.
No entanto, para os que cremos que com Jesus Cristo
a absoluta novidade de Deus entrou definitivamente na história, tudo é
permanentemente novo, porque renovado pelo Espírito que faz novas todas as
coisas. E, nesse sentido, a categoria do tempo está para sempre
alterada. Para aquele ou aquela em quem o Espírito Santo habita, o tempo
não é mais um tempo linear (kronos), mas um kairós (tempo
de Deus), que só encontra em Deus sua unidade de medida. Não se trata
mais de um tempo submetido à caducidade.
E
se é assim, as coisas não podem mais ser medidas pelos parâmetros temporais de
antes. Tampouco podem ter seu valor efemerizado por uma mentalidade consumista
e predatória de valores. Não apenas esperamos um novo céu e uma nova
terra, mas já vivemos de fato uma nova ordem de coisas, uma nova
criação. E embora este novo esteja ainda sendo
dolorosamente "parido" em meio a um mundo que parece insistir no
desamor, na violência e na injustiça, na verdade já está
acontecendo plenamente para aqueles que vivem em Cristo. Para estes e
estas, chegou a plenitude dos tempos. É o Espírito que realiza e
atesta este novo, as coisas tornadas novas, fazendo de todos novas criaturas,
crianças novas, ainda que o homem exterior envelheça e esteja submetido à
erosão do tempo.
Que
venha, portanto, o Ano Novo. Estamos dispostos a saudá-lo alegremente
junto com todos os irmãos e irmãs, que através de toda a terra neste momento
esperam um tempo melhor, uma vida melhor, um novo estado de coisas para suas
vidas e as vidas daqueles e daquelas que amam. Que venha! Mas que além de
Novo seja Bom, como em português também se diz.
Que
a novidade do ano que vem seja atravessada pela bondade, intrínseca à justiça,
à paz, ao amor, enfim. Desejar Feliz Ano Novo tem de ser
equivalente a desejar Feliz Ano Bom. É o que esperamos e desejamos uns aos
outros nesta virada que ansiamos seja boa.
Maria
Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da
PUC-Rio, teóloga e autora de “O
mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”,
Editora Rocco.
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