Eduardo
Hoornaert.
Todos
lamentamos as crescentes ondas de violência em nossas sociedades. Contudo, nem
sempre tomamos consciência de suas raízes profundas, que frequentemente ficam
tão escondidas que acabam sendo confundidas com fatores considerados neutros.
Aqui também um estudo da história é esclarecedor, como se verá em seguida.
A
tecnologia é neutra?
Visto
superficialmente, o desenvolvimento tecnológico parece neutro, mas numa análise
histórica se revela gerador de violência. Basta contemplar a
história do Brasil, de Cuba, do sul dos Estados Unidos e de Colômbia, para
verificar como a tecnologia de transformar cana de açúcar em tabletes de
rapadura (açúcar não refinado) está na origem do tráfico negreiro e das
misérias da escravidão, que perduram até hoje. Que o diga Jessé Souza, autor do
best-seller ‘A elite do atraso’ (Leya, São Paulo, setembro
2017).
O
império do algodão.
Neste
texto me concentro numa história concreta: a história da produção tecnológica
de tecidos a partir de algodão. Três anos atrás, o escritor americano Sven
Beckert publicou um livro impressionante, que demonstra como a tecnologia do
algodão mudou, nos últimos séculos, a face da terra. O título do livro é Empire
of Cotton (Vintage Books, New York, 2015) e mostra como o ‘império
inglês’, na realidade, é o ‘império do algodão’. Pelo que me consta, o livro
não foi traduzido nem ao castelhano, nem ao português. Nele se pode ler, a
partir do exemplo da tecnologia do algodão, como se deu o surgimento e o
crescimento do capitalismo industrial, a lógica da agricultura industrial e das
multinacionais de alimentos etc.
Ao
longo de milhares de anos, os povos cultivam seu algodão em equilíbrio com
as lavouras de alimentos. Há um equilíbrio. Como se entende então que, a partir
do final do século XVIII, depois de muitos milhares de anos de crescimento
econômico lento em toda a humanidade, algumas partes dessa humanidade
repentinamente se tornam muito ricas, enquanto outras mergulham na pobreza? Eis
o que a história do algodão industrial mostra, pois ela marca o início da
Revolução Industrial. Embora, na atualidade, a indústria de algodão tenha sido
ultrapassada por outras indústrias, o produto continua a ser importante para o
emprego e o comércio mundiais. A produção mundial, em 2013, foi de 123 milhões
de fardos, cada um com cerca de 180 quilos, suficientes para 20 camisetas por
pessoa.
Estima-se
que, já em 1621, a Companhia das Índias Orientais – criada
pelos ingleses em 1600 – importou cerca de 50
mil peças de produtos de algodão para a Grã-Bretanha. No entanto, esse comércio
era marginal em comparação com o que os comerciantes do Oriente Médio e da
Índia negociavam. Esses últimos detinham, durante séculos, o comércio
internacional nas mãos, ou seja, ‘vestiam a humanidade’. Mas, a partir do
momento em que os ingleses começaram a ‘dominar as águas’ (‘rule the waves’),
ou seja, possuíam as frotas marítimas mais poderosas do mundo, as coisas
mudaram. A tese do livro acima citado consiste em mostrar que,
concomitantemente com a presença sempre mais forte do Império Britânico em todo
o planeta, se deu o primeiro processamento de algodão na Inglaterra, exatamente
em 1784.
A
tecnologia do algodão na fábrica de Samuel Greg.
Em
1784, a cidade inglesa de Liverpool se tornou um rico porto de tráfico de
escravos e é com base nessa riqueza negreira que a emergente indústria de
algodão pôde florescer. Membro de uma família negreira bem situada, Samuel Greg
reuniu em 1784, numa pequena fábrica às margens do Rio Bollin, algumas máquinas
de fiação ultramodernas (conhecidas como water frame), movidas a
água (ainda não a vapor). Órfãos e trabalhadores domésticos de aldeias da
região começaram a trabalhar com um estoque de algodão proveniente do Caribe.
Toda novidade de Greg consistia no fato que ele não utilizava mais a força do
músculo humano, mas a queda d’água. Embora modesta, sua fábrica era algo novo.
Ela estava destinada a mudar os destinos do mundo. Pela primeira vez
na história humana, a produção de fios era feita por máquinas não impulsionadas
por mãos humanas.
A
fábrica de Greg provocou mudanças que ele mesmo nunca imaginou. A matéria-prima
que ele precisava para as suas máquinas era fornecida por comerciantes de
Liverpool, os quais a haviam comprado de navios provenientes da Jamaica e do
Brasil. Greg passou a expulsar fiadores e tecelões indianos que até então
dominavam a produção, tanto no mercado doméstico quanto no internacional. Além
disso, ele lutou para que grande parte de sua produção deixasse o Reino Unido e
sustentasse o comércio de escravos na Costa Oeste da África, além de vestir
seus próprios escravos em Santo Domingos, no Caribe. Em cima, ele começou a
atender usuários fora da Inglaterra, na Europa Continental. Assim se formou uma
vasta rede internacional. Partindo de Liverpool, os comerciantes britânicos
dominavam os mares e formavam redes comerciais que se estendiam por todo o
globo.
O
triângulo Europa, África, América.
Desse
modo se formou um triângulo de consequências, que eram positivas para uns,
nefastas para outros. Eis os pontos do triângulo: a. a Inglaterra (Liverpool)
que, naquela época, controlava os mares com sua frota comercial e militar;
b. a África Ocidental, onde os ingleses trocavam seus tecidos por
escravos; c. a América, que comprava escravos em troca de fardos de algodão cru
cultivados por escravos da África. Era a repetição do triângulo feito em torno
da produção de açúcar no Brasil, no Caribe e na América do Norte, mas desta vez
com repercussões mundiais. Os fardos de algodão eram usados como carga de
retorno a Liverpool ou Manchester, onde os tecidos eram fabricados, assim como,
anteriormente, os fardos de tabaco enchiam os navios negreiros, depois de descarregar
os fardos humanos. Desse modo, a carga dos navios estava sempre assegurada.
As
máquinas maravilhosas de Greg, impulsionadas pela força da água (e, mais tarde,
por vapor), impulsionavam outra inovação de grande importância: passaram a ser
operadas por assalariados e se tornaram fonte de riqueza por causa da grande
acumulação de capital. Isso criou um novo tipo de Estado, impulsionador do
‘progresso’, ou seja, criado como principal pilar do novo império do algodão. A
partir de um embrião local, nas redondezas de Liverpool, a Inglaterra acabou
por dominar uma economia global amplamente ramificada e por se apropriar de uma
das principais indústrias da humanidade. Ao ‘vestir a humanidade’, a
Inglaterra estendeu suas asas por todo o globo. Eis como nasceu o mundo como a
conhecemos hoje.
A
monocultura e o estado.
Sob
pressão do império do algodão inglês, os agricultores na Ásia e na África foram
forçados a entrar na monocultura do algodão, o que resultou, às vezes, em
grande escassez de alimentos. Morreram milhões de pessoas em 1877 e, novamente,
na década de 1890, tanto na Índia como no Nordeste do Brasil. A especialização
em algodão – com seus preços voláteis – dominava
o universo do dinheiro. Estamos diante de uma evolução violenta e ao mesmo
tempo silenciosa, que causa a morte de milhões de pessoas, enquanto beneficia a
poucos ricos. O sistema de processamento tecnológico de algodão, desde o início
do século XIX, baseado na monocultura, com vastas plantações e exploradora do
trabalho escravo, é fonte de violência. Durante um longo período, os britânicos
não conseguiram forçar os agricultores indianos a praticar a monocultura do
algodão, não conseguiram controlar os teimosos intermediários indianos, que não
estavam dispostos a enviar algodão não processado para a Europa. Era preciso
apelar para um Estado forte. Para o império de algodão, com seus barões de
algodão, na Inglaterra e, mais tarde, na Europa Continental, era importante ter
um forte poder de Estado, que pudesse forçar os agricultores e os trabalhadores
a fornecimento e produção permanentes. Assim se compreende que não é
coincidência que o século XIX fosse marcado pelo surgimento de poderosos
Estados-nação (o termo ‘nação’, aqui, é um eufemismo, como bem explica Fábio
Konder Comparato), bem como de um proletariado nas centenas de fábricas de
algodão (com fiação e tecelagem mecânicas) na Europa e nas centenas de milhares
de fazendas de cultivo do algodão que exploravam escravos, do outro lado do
Atlântico.
Isso
explica a Guerra Civil Norte-Americana, que teve efeitos globais. O ano 1861,
início dessa guerra, foi uma data-chave na rede mundial do algodão. A guerra
continuou até 1865. O motivo era a abolição da escravidão. As cidades do Norte
da América, onde o algodão era processado, eram a favor da abolição; o Sul
rural, onde os escravos proporcionavam riquezas nas imensas plantações,
defendia a escravidão a ferro e fogo. O conflito entre o Sul conservador dos
EUA e as cidades ao longo da Costa Leste norte-americana tem reflexos até hoje
(é só pensar na vitória eleitoral de Donald Trump). Devido a essa guerra, houve
de repente uma escassez de algodão no mercado mundial, resultando em aumento de
preços. Centenas de fábricas na Europa foram fechadas; centenas de milhares de
trabalhadores ficaram desempregados. Os barões de algodão estavam ansiosamente
à procura de novas regiões produtoras de algodão. Ao se unir ao Império
Britânico, a Índia expulsou os indianos ‘teimosos’ de seus teares e os empurrou
em direção à zona rural. O Estado Indiano serviu para cultivar algodão – não para os seus próprios teares ou para as fábricas de algodão da
Índia (que surgiram por todo canto nesse período) - mas para ‘o mundo’, ou
seja, para a Europa. A história de Gandhi gira em torno dessa realidade. Ao
mesmo tempo, a África foi dividida em colônias e também foi direcionada, tanto
quanto possível, para a monocultura do algodão. Com a crise da Guerra Civil
Norte-Americana, as colônias foram forçadas a produzir algodão para ser processado
na Europa. Indianos e egípcios, brasileiros e mexicanos, todos compravam
máquinas britânicas e desse modo, o império do algodão provocou uma
desindustrialização nos países do Sul. Os fabricantes de tecidos ocidentais
fizeram numerosas tentativas para, por meio de pressão exercida pelo domínio
colonial (portanto, o governo), destruir o processamento de algodão por
fiadores e tecelões locais. Em consequência, fiadores e tecelões tinham de
optar por cultivar algodão como assalariados ou, então, desaparecer no
proletariado urbano ou se refugiar no campo.
O
algodão migra para o Sul.
Mesmo
assim, aos poucos o algodão migrou para o Sul. Na década de 1930 surgiu, na
então colônia britânica do Egito, uma das maiores fábricas de tecido de algodão
do mundo, com 25 mil trabalhadores têxteis. Isso depois de anos de dificuldades
criadas pela importação de algodão britânico. Foi um marco na história, pois
mostrou que a produção de tecidos de algodão estava aos poucos abandonando a
Europa e criando um novo cenário mundial. Em muitos países, a descolonização
foi fortemente apoiada pelos fabricantes de algodão e seus trabalhadores.
Nacionalismo, emancipação e apoio ao processamento nacional de algodão andavam
de mãos dadas. Enquanto a posição dos fabricantes de algodão no Norte
enfraquecia gradualmente, os fabricantes do Sul (no Brasil, por exemplo)
conseguiram criar um Estado (apoiador) de acordo com suas necessidades.
Quebraram aos poucos a hegemonia do algodão do Norte.
No
início do século XX, a indústria de algodão da Ásia era a que crescia mais
rapidamente e desse modo a produção da matéria-prima voltou para onde ela tinha
começado, milênios atrás. Hoje, nossas roupas são fabricadas na China, em
Bangladesh etc. (muitas vezes em péssimas condições de trabalho). Se o império
do algodão primeiramente se serviu de Estados fortes e apoiadores, ele, a
partir da década de 1970, procurou se libertar deles. As multinacionais de
algodão e de têxteis tomaram a dianteira e agora ignoram largamente os Estados
(que elas primeiro utilizaram para a regulamentação e para os subsídios). Sem
obstáculos, elas hoje se instalam onde é mais barato, sem mais nem menos. Pois,
no mundo de hoje, são elas que mandam, sem contestação à altura.
O
império Monsanto.
Até
aqui focalizei a história do algodão. Mas, em se tratar da relação entre
tecnologia e violência, não se pode omitir histórias mais recentes, como a do
‘Império Monsanto’, por exemplo. Um Império novo, vinculado à tecnologia do
algodão, pois 26% de todos os inseticidas usados no mundo são destinados ao
cultivo de algodão. A Monsanto conseguiu impor à Índia seu algodão
geneticamente manipulado (algodão Bt), provocando ondas de suicídio entre os
agricultores. Ela é famosa por dispor de um lobby fortíssimo
junto a governos do mundo inteiro, com uma legião de advogados. Assim conseguiu
que se discriminasse, em muitos países, a produção de tecidos a partir de
fibras de e cânhamo (hemp, hanf, chanvre), que são quatro vezes mais
resistentes do que as fibras de algodão. Depois da Segunda Guerra Mundial, as
grandes companhias usaram a problemática das drogas para lançar suspeitas sobre
a fibra de cânhamo. Acontece que o cânhamo não precisa de agroquímicos (leia:
não precisa de Monsanto) e a planta capta muito CO2, o que é muito
interessante em tempos de mudanças climáticas. Felizmente, nas últimas décadas,
está ocorrendo um retorno da produção e do processamento de cânhamo.
O
império ABCD.
Poderíamos
falar aqui igualmente do ABCD. Nunca ouviu falar? Todo mundo conhece as
‘Unilevers’ e as ‘Nestlés’ da vida, mas quem conhece as invisíveis gigantes de
alimentosADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus?
Assim como o império do algodão, no passado, puxou todo o poder para a Europa,
o comércio mundial de cereais e de substitutos de cereais (como a soja) puxa
hoje o poder para grandes companhias multinacionais. A ADM (Archer Daniel
Midland Company) foi fundada em 1902, a Bunge surgiu em 1818, a Cargill veio em
1865 e a Dreyfus foi criada em 1851. O valor conjunto das vendas das quatro
empresas ABCD é maior do que a de muitos países. Em conjunto, somam cerca de
250 bilhões de euros por ano (dos quais, em 2015, a Cargill levou 106 bilhões).
Se você analisar os dados do lucro dessas empresas nas últimas décadas,
perceberá que os maiores lucros se originam menos da logística do transporte a
granel não processado (trigo, soja, milho, café), que beneficia países como o
Brasil, por exemplo, mas do primeiro processamento (e posterior transporte a
granel) dessa matéria-prima (por exemplo, soja), a serviço da indústria de
alimentos (que desemboca nos Supermercados) e de rações animais, sempre
beneficiando os países centrais do sistema. Essas empresas de comércio
jamais teriam conseguido ser tão grandes sem subsídios por parte de governos
nacionais. Além disso, elas quase não pagam impostos. Porém, sem elas (as
empresas ABCD), não haveria fazendas industriais na Europa e não haveria, do
outro lado do oceano (com o Brasil na liderança), gigantescas lavouras de
monocultura de soja e de milho. Não haveria os supermercados. Assim como o
algodão provocou uma concentração nunca dantes vista de riqueza, as ABCD de
hoje são o motor de uma agricultura industrial imposta mundialmente, que gera
imensas riquezas para poucos. Elas representam, juntamente com as ‘Monsantos’ e
as ‘Syngentas’, uma agricultura intensiva de capital, que marginaliza centenas
de milhões de famílias da agricultura camponesa e que, além disso, esgota os
ecossistemas, pois o transporte global de granel (por navio) é uma das causas
do aquecimento global. Esse modelo agrícola faz parte do problema ecológico que
enfrentamos, enquanto as práticas agrícolas sustentáveis nas mãos dos
agricultores campesinos poderiam ser parte da solução.
Uma
nota positiva.
Termino
com uma nota positiva: ao lado desses absurdos, surgem, no mundo inteiro,
movimentos de resistência, visando devolver às comunidades locais as chamadas
‘comodidades’ (commodities), coisas que são (ou deveriam ser) comuns a toda a
humanidade, patrimônios da humanidade: ar, terra, sementes, água, transporte,
alimentos. Atualmente surgem, em todos os continentes, soluções criativas que
contrariam a fragmentação do planeta pelas ABCD e por outras mãos invisíveis.
(Este
texto é baseado num estudo do Frade norbertino belgo-brasileiro Luc
Vankrunkelsven, militante da Wervel (www.wervel.be), a quem, por este caminho,
agradeço).
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
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