Por Marcelo
Barros
Esse ano
começa com notícias negativas sobre medidas governamentais que restringem
direitos dos trabalhadores e diminuem as possibilidades de aposentadoria para a
maioria do povo. As estatísticas revelam aumento do desemprego e, como se ainda
fosse possível, um aumento desproporcional da concentração de rendas. Isso
significa, é claro, agravamento da pobreza da maior parte dos brasileiros. Tudo
isso contribui para uma insegurança maior nas cidades. Principalmente, nas
periferias urbanas, a violência e o tráfico de droga se tornam rotina.
Ao olhar
essa situação tão grave, poucos brasileiros, além dos especialistas em História,
se recordarão de que, no dia 06 de janeiro de 1835, explodiu no Brasil a Cabanagem,
a maior rebelião popular dos tempos do Império. No começo do século XIX, o Grão
Pará compreendia os atuais estados do norte do Brasil. Era a maior província
brasileira, a mais pobre e isolada. Era a região brasileira mais ligada a
Portugal, tanto que até muitos a chamavam de "Terra da bela
Lusitânia". Apesar de que Dom Pedro I proclamou a independência do Brasil
em setembro de 1822, a província do Grão Pará só a reconheceu por imposição do
governo de Belém, em agosto de 1823. Mesmo assim com muitas tensões e divisões
internas. Todos os cargos públicos e recursos econômicos eram ocupados por portugueses
e seus familiares. A imensa parte da população da região era formada por gente
muito pobre. Eram índios aldeados e outros já destribalizados, chamados tapuios. A população negra era de escravos
e mestiços que, embora livres, tinham uma vida mais sofrida do que a dos
escravos. Toda essa população em situação de miséria era vivia amontoada nas
beiras dos igarapés, dispersa pelos campos em torno da cidade e cada vez mais
em cabanas infectas que faziam parte da imensa cidade de palafitas que era
Belém. Os "cabanos", como eram chamados esses pobres, trabalhavam
como semiescravos na exploração das plantas (como cravo, pimenta, plantas
medicinais, e baunilha), na extração de madeira e na pesca.
Desde que
se falou em independência, o povo exigia a formação de um governo popular. Os
cabanos se uniram a fazendeiros locais e comerciantes para formar um governo
provisório. A tropa de mercenários enviada pelo império brasileiro reprimiu o
movimento. Conseguiu fazer 300 prisioneiros e os sufocou com cal a bordo do
navio Palhaço. Isso provocou ainda mais revolta. Os cabanos conseguiram a
adesão de alguns intelectuais e um ou outro eclesiástico. E no dia 6 de janeiro
de 1835 uma multidão de índios, negros, mestiços e alguns de classe média
irromperam armados na cidade. Apoderaram-se da cidade de Belém, mataram o
governo local e colocaram um governo independente. A partir daquele 6 de
janeiro, tropas fieis ao império com apoio de Portugal e da Inglaterra atacaram
violentamente o Pará. Foram cinco anos de uma guerra violenta, até que o
governo central conseguiu reprimir o movimento e matar todos os identificados
com a revolta. Mais de um terço da população foi massacrado. Povos indígenas como
os Murá e os Mauê que participaram da revolta, foram exterminados.
Pode
parecer sem importância lembrar uma rebelião popular ocorrida há 183 anos e em
uma região tão peculiar como é o norte do Brasil. No entanto, a situação dos
mais pobres que, naquele contexto do século XIX se chamavam cabanos, agora se
estende pelas periferias de todas as cidades brasileiras. De norte a sul do
Brasil, quem passa pelas ruas se espanta com a multidão de pessoas em condições
de extrema vulnerabilidade, como que jogadas à própria sorte, acampadas nas
ruas e praças. Nesses tempos do governo Temer, a população de rua se
multiplicou. Do mesmo modo, as estatísticas revelam que, diariamente, nas
periferias urbanas, o número de pessoas assassinadas, principalmente de jovens pobres,
a maioria negros, já configura uma realidade de guerra social. Como esclarece o
papa Francisco: "uma guerra em pedaços e realizada de pouco em
pouco". Essa situação de extrema desigualdade e injustiça social só pode
gerar violência e explosão social. Há 50 anos, em Medellín, os bispos católicos
da América Latina denominaram a situação do continente como uma "violência
estrutural".
A revolta
dos cabanos tinha como objetivo libertar o Grão Pará do império brasileiro.
Entretanto, o único objetivo que unia a todos era conquistar o governo. Os
revoltosos não conseguiram formular nenhum projeto social para essa província
que, durante cinco anos, governaram. Faltou um programa que organizasse a sociedade
de modo diferente. Atualmente, no Brasil, existem duas frentes de movimentos
sociais que reúnem, cada uma, dezenas de organizações, partidos e entidades da
sociedade civil. Esse ano de 2018 será um tempo de diálogo com todas as categorias
de trabalhadores para que surja daí um projeto alternativo para o conjunto da
sociedade brasileira. Para as eleições desse ano, devemos exigir dos candidatos
um claro programa de governo. Não basta cada um provar que é melhor do que os
adversários. O mais importante é um programa partidário que contenha as
reformas estruturais e pensadas a partir do povo e não do interesse da elite e
das multinacionais.
As pessoas
que procuram viver uma espiritualidade libertadora sabem que, mesmo quando o
povo pobre parece um ramo ressequido e sem vida, uma chuva repentina pode
provocar um renascimento libertador. Nesse tempo de Natal, por todo o Brasil, muitas
comunidades cristãs cantaram: "Da cepa, brotou a rama, da rama nasceu a
flor, da flor nasceu Maria, de Maria, o Salvador".
Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.br
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