Por Ivone Gebara
Em tempos de desesperança
e tendência a se calar na multidão postamos um artigo de 2016 para reacender a
chama da esperança.
“Não chore ainda não
Que eu tenho um violão
E nós vamos cantar
Felicidade aqui
Pode passar e ou vir
E se ela for de samba
Há de querer ficar"
Não chore presidenta Dilma porque
tem muita gente no bom samba da dignidade que se recusa a calar sua voz, se
recusa a parar de gingar, se recusa a parar de pensar, de escrever, de analisar
o momento presente e de cantar, e cantar... Liberdade, liberdade, liberdade. A
vida brasileira está confusa e atirar pedras ou lamentar o leite derramado não
resolve a situação! Convencer os outros de que há uma única culpada de nossos
atuais problemas é no mínimo assustador e incompreensível. O ser humano habituou-se
a encontrar ‘bodes expiatórios’ que levam a culpa sem coletivizá-la e sem
tornar a responsabilidade social e política uma responsabilidade comum
assumida.
Não chore ainda não
presidenta, não vale chorar porque os que se julgam vencedores e creem em sua
vitória estão alegremente atribulados e acuados. Mas qual é mesmo essa vitória
tão grande? Uma lei expressa em palavra inglesa, ‘impeachment’ pareceu mudar os rumos da vida de muitos e a
sua? É ela que os tornou vitoriosos? É ela que nos tornou vencidos com você?
Depois de nosso orgulho de
ter você como primeira presidenta, de saber de suas lutas e fraquezas como as
de todas nós, com você estamos ouvindo novos impropérios sobre a incapacidade
das mulheres de fazer política original e eficaz. Não nos deram muito tempo e
nem muitos espaços...
Não chore presidenta...
Tem muita gente sentindo a mesma raiva que você deve estar sentindo, mas
reunindo forças de vida por que “tanto menino novo nasceu” nessa semana, tanto
“jovem se apaixonou pela vida”, “tanto velho dançou nas praças”, “tantas
andorinhas estão cantando”, tanta “flor nasceu no campo”,... Embora, o som do
violão esteja fraco...
Não chore ainda não
Que eu tenho a impressão
Que o samba vem aí
E um samba tão imenso
Que eu às vezes penso
Que o próprio tempo
Vai parar pra ouvir
Olé, Olé, Olá..
.
Depois de uma noite de
quase insônia na qual pedaços da fala da presidenta Dilma explicando e se
defendendo em meio à fala acusatória de alguns senadores povoavam
involuntariamente meus pensamentos, decidi levantar-me para não aumentar mais
minha angústia. A música do Chico Buarque “Olé, Olé, Olá”
estranhamente fazia um fundo musical insistente na minha tristeza. Passei do
quarto para meu pequeno escritório e, não sei bem porque olhando minha estante
de livros tomei em minhas mãos um velho livro sobre ‘a oração de Jesus' escrito
em 1973, pleno período de governo militar, pelo saudoso amigo Padre José
Comblin. Folheei o livro e algumas palavras que faziam as vezes de pequenos
subtítulos começaram a desfilar sob meus olhos... Solidão, abandono, derrota,
vencedores, vencidos, reconhecimento... Li um e outro parágrafo como se
quisesse buscar neles a calma necessária para começar o dia. Sentia-me
atravessada pelo dia e noite de julgamento de nossa presidenta e depois pelo
dia do veredito final. Mal conseguia imaginar as noites que ela passou
depois das perguntas ardilosas e armadilhas que os juízes senadores lhe
estendiam. Parecia-me aviltante que ela tivesse que repetir várias vezes a
mesma informação porque as excelências presentes só tinham em vista a pergunta
que queriam lhe fazer em público. Mal ouviam o que ela dizia atentos aos seus
celulares, às câmaras de televisão e a buscar um ou outro olhar de cumplicidade
entre os seus pares. Sob o pretexto de julgar seus atos políticos se mostravam
ao público como justos e justiceiros defendendo o pobre povo brasileiro contra
a primeira mulher presidenta de nossa história!
Minha tribulação aumentou
com essas lembranças e por isso resolvi escrever convencida que cantar,
escrever, cozinhar 'parecem com não morrer' sobretudo diante da confusão do
momento político e das trevas que sem querer invadem a alma.
Espontaneamente pensei que
apenas fazer de novo críticas aos opositores de Dilma, à sua
superficialidade democrática e humanista não aliviariam meu coração. Da mesma
forma, cantar as glórias da presidenta não me parecia o melhor caminho.
Provavelmente muitas amigas e amigos estariam fazendo as mesmas constatações e
não tinha mais vontade de beber de novo da mesma massacrante situação vivida
que parecia não me levar a nenhuma saída. Também fazer análises políticas a
partir da conjuntura nacional e internacional não era o meu forte...
Lembrei-me então do que
havia lido no livro de José Comblin e me voltou a ideia de que nem
sempre os vitoriosos, os que têm o êxito imediato são de fato os construtores
da história da dignidade humana. O êxito talvez gere a boa consciência do dever
cumprido, da vitória aparente da legalidade, do bom resultado obtido pelo
desempenho social, da vitória sobre os adversários... Entretanto, o êxito ou a
vitória não levam à reflexão, a interiorização e análise de nossos
comportamentos e sentimentos. Que insensatos /as somos! Inebriamo-nos
facilmente com nossa própria imagem acreditando ser o centro do mundo.
Esquecemos que a vitória de Pilatos, do Império Romano, dos doutores da lei e
até do povo acusador na realidade foi o golpe mortal à liberdade. E por isso
foi um golpetambém contra os acusadores. Condenar Jesus à crucifixão e à
morte foi uma vitória daqueles a quem a integridade das ações de Jesus
molestava no imediato. A História tem nos ensinado embora não tenhamos
aprendido que não há uma relação lógica de coerência entre os atos humanos
realizados e os resultados obtidos e, sobretudo os considerados vitoriosos ou
exitosos. Provavelmente Hitler e seus aliados mais próximos
sentiram-se vitoriosos quando as câmaras de gás e os fornos crematórios
conseguiram eliminar milhares de seres humanos...
Estupenda vitória! Limpeza
étnica realizada! Missão cumprida! Também os ditadores sanguinários da América
Latina vibraram de alegria quando torturaram e mataram milhares dos
chamados 'inimigos da pátria'... Afinal conseguiram o que esperavam, ou seja,
eliminar os 'vermes' que buscavam a liberdade do povo. E quantas guerras
vitoriosas foram glorificadas apenas porque as armas que mataram vidas
significaram o sucesso das empresas produtoras de artefatos bélicos? A história
humana é de fato eivada de uma mistura imensa de sentimentos, palavras, ações
salvíficas e cruéis que levam à vida e à morte num movimento sem fim.
Quase sempre pensamos que
a vitória é o resultado do sucesso provisório de nossa ideologia, de nossa
empresa, de nossa competência ou de nosso sonho por mais extravagante que seja
ele. Mas a história também acaba por desmentir a vitoria dos vencedores... Só
que não a história imediata cheia de conflitos passionais, tecida de mentiras
vestidas de verdade, de encobrimentos e acusações mútuas, de golpes de luva de
pelica sob a qual se escondem alfinetes envenenados. Também não a história
oficial dos Impérios que se sucedem e escrevem suas vitórias ensinadas e
aprendidas nas escolas. Mas a história que desmente as grandes vitórias das
guerras de uns contra os outros é a pequena história dos pequenos amores e das
pequenas ações de justiça e solidariedade que sustentam a dignidade da vida.
Essas pequenas histórias irrompem cada dia de diferentes maneiras...
Num campo de concentração
um decide dar a vida no lugar de outro, a outra dá a sua porção de alimento à
colega grávida, a lavadeira entrega seu salário para comprar o remédio para a
filha da vizinha, um homem ajuda um marginal que matou seu filho, mulheres
denunciam a violência infantil...
Estas e outras tantas
pequenas histórias são as narrativas muitas vezes desconhecidas das pequenas
vitórias da vida. Histórias ocultas, de personagens desconhecidos e
insignificantes mantêm a chama da dignidade humana!
Para além das polarizações da
história imediata na qual cada indivíduo espera convencer o outro ou atirá-lo
num covil de leões famintos, para além do reducionismo da realidade limitada e
perspectivista que apenas meus olhos são capazes de ver, há um tênue fio de
contradição que se instaura em todas as posições. É ele que nos fará pensar e
buscar a de novo a liberdade... É ele que convidará as novas gerações a
analisar os fatos passados e perceber que é esse fio obscuro e incômodo, talvez
enredado a muitos outros o portador da novidade que nos fará reviver com
dignidade. É a contradição e o paradoxo de nossos atos que nos convida ao
pensamento e a novas ações. É ele que revela a fragilidade de nossos
pensamentos e de nossos atos e nos remete à limitada condição humana. É a
suspeita em relação as nossas próprias verdades e interpretações, aos poderes
que utilizamos aos abusos que deles fazemos que conduzem a História para
frente. São esses incômodos no pensamento e nas emoções, na consciência e no
coração que emergem sem querer e que persistem apesar dos pesares... São eles
que desmentem a vitória dos vencedores imediatos e a tragédia vivida pelos
vencidos que não são apenas os “outros” partidos, mas o povo vivendo em
condições sub-humanas. São eles que restauram de novo a história da dignidade
humana e nos fazem esperar de novo apesar dos medos que nos acompanham sempre.
No presente, os vencidos
parecem cabisbaixos mesmo quando gritam sua dor e decepção nas praças
públicas. Sentem-se feridos e abandonados até por quem antes parecia estar de
seu lado...
Os vencidos são deixados
aos seus próprios problemas e os que eram próximos deles até negam conhecê-los,
os que antes os aconselhavam para serem ‘ganhadores’ desviam-se de seus
caminhos, orgulhosos de serem também indiretamente vitoriosos, pois afirmam que
seus sábios conselhos não foram seguidos. Facilmente, em meio à derrota,
desenvolvem outras vitórias, alinham-se aos moralmente corretos, fazem teoria
‘clara e distinta’, explicam as razões dos vencidos, querem ser bons e justos
sem perder a aura de sua moralidade. Escondem-se usando mil e um pretextos e
não aderem mais à causa que os movia e os fazia brilhar no provisório palco da
história. Hipócritas! Sepulcros caiados!
Os vencidos parecem
desamparados... Nem suas velhas esperanças os sustentam visto que os vencedores
parecem ter se apropriado delas... Apropriaram-se de seus feitos, de sua
linguagem, de suas vestes, de seus amigos e de suas leis. Desnudaram os
vencidos de suas crenças, roubaram a ‘bandeira nacional’ de todos e fizeram
dela a veste de alguns privilegiados sedentos de glória e poder.
Porém, os vencidos por
incrível que pareça não são apenas os que perderam uma partida de futebol, ou
perderam as eleições, ou um trabalho, ou um lugar ao sol... Somos todos nós
como humanidade buscando o sentido de sua vida embora só saibamos considerar a
nossa individualidade.
Em tudo isso, ainda resta
a contradição, o paradoxo, aquela experiência que nos mostra que no fundo todos
nós somos menores que nossas vitórias e bem maiores que nossas derrotas. Todos
nós somos de alguma maneira, vencidos e vencedores. Todos nós temos que
recomeçar nossa busca comum de dignidade para além dos fracassos
experimentados. Nosso futuro se chama hoje...
Por isso, querida
presidenta Dilma, “não chore ainda não”, não choremos porque temos razões
para não chorar... Olé, Olé, Olá...
Ivone Gebara é filósofa, religiosa e teóloga. Ela lecionou durante quase 17 anos no Instituto Teológico do Recife – ITER. Dedica-se a escrever e a ministrar cursos e palestras, em diversos países do mundo, sobre hermenêuticas feministas, novas referências éticas e antropológicas e os fundamentos filosóficos e teológicos do discurso religioso. Entre suas obras publicadas estão Compartilhar os pães e os peixes, O cristianismo, a teologia e teologia feminista (2008), O que é Cristianismo (2008), O que é Teologia Feminista (2007), As águas do meu poço. Reflexões sobre experiências de liberdade (2005), entre outras.
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