Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
O ano já começou com as habituais ameaças entre
nações. Por um lado, Kim Jong-um, o temível líder norte-coreano, saudou o
novo ano declarando que o botão nuclear está sempre ao seu lado, em sua mesa de
trabalho. A ameaça dirigia-se claramente aos Estados Unidos e a resposta do
presidente Donald Trump não se fez esperar: "O líder norte-coreano Kim Jong-un disse que o botão nuclear está
na mesa dele todo tempo. Alguém... pode avisá-lo que eu também tenho um botão
nuclear, mas é muito maior e mais poderoso que o dele. E o meu botão
funciona!”.
Não! Não são – como poderia parecer - dois meninos disputando vantagem em uma
brincadeira de soldados e guerra. São dois líderes mundiais que avisam à
humanidade ter ao alcance de suas mãos a destruição ou a sobrevivência do
planeta. Se dependêssemos apenas deles, estaríamos agora amedrontados, vivendo
talvez os últimos dias de uma humanidade estéril e sem futuro.
Graças a Deus existem outras vozes dirigindo-se a essa humanidade amedrontada
que hoje somos. Entre elas destaca-se a do Papa Francisco. Em sua
mensagem de Ano Novo, o pontífice não quis enviar ao mundo uma saudação apenas
calcada na linguagem e nos símbolos católicos. Dirigiu-se ao mundo
inteiro e para isso escolheu uma imagem impressionante: um menino de uns nove,
dez anos carregando às costas o cadáver do irmão menor. A foto foi tomada pelo
fotógrafo Joseph Roger O´Donnell, após o bombardeio atômico em Nagasaki.
O menino maior está na fila do crematório em
Nagasaki esperando sua vez para entregar o pequeno corpo do irmãozinho, vítima
fatal da bomba nuclear despejada sobre a cidade. Ereto, de uma seriedade
impressionante, o rostinho do menino tem uma dignidade impenetrável. Sua
dor só se deixa perceber pelos lábios fortemente apertados e os olhos secos
muito abertos.
A legenda da imagem: Os frutos da guerra completa a mensagem.
A morte das crianças, a destruição do futuro, esses são os frutos da guerra. Na
imagem há duas crianças, uma viva e outra morta. Esta teve sua vida
ceifada antes mesmo de começar a desenvolver-se. A maior continua
vivendo, mas teve sua infância roubada da maneira mais dolorosa, quando a
violência levou seu irmão pequeno. E sabe-se lá que outros membros da
família também teriam sido assassinados pela crueldade da bomba.
A imagem não registra adultos. Por que o menino ainda tão pequeno foi
encarregado da tristíssima tarefa de levar o cadáver do irmãozinho à
cremação? Isso permite suspeitar talvez que os pais não estivessem já
presentes, vitimados igualmente pela força destruidora do cogumelo atômico.
Parece amarga ironia que hajam sido batizadas de “meninos” (Little Boy e Fat
Boy) as duas bombas atômicas que há mais de sete décadas caíram sobre Hiroshima
e Nagasaki, no Japão, lançadas por aviões norte-americanos. No dia 6 de agosto,
o avião Enola Gay deixava cair seu fardo destruidor sobre Hiroshima. Três dias
depois era a vez de Fat Boy ser lançada sobre a cidade de Nagasaki. As duas
bombas mataram cerca de 140 mil pessoas em Hiroshima e 74 mil em Nagasaki. Este
número aumentou expressivamente nos anos seguintes devido às sequelas causadas
pela radiação.
Vinicius de Moraes, em sua poesia musicada por
Gerardo Rocha e imortalizada na interpretação de Ney Matogrosso, “Rosa de
Hiroshima”, alertou a humanidade de memória curta que somos. “Pensem nas
crianças mudas, telepáticas. ...Porém não se esqueçam da rosa da rosa.... A
rosa de Hiroshima, a rosa hereditária. A rosa radioativa, estúpida inválida. A
rosa com cirrose, a antirrosa atômica. Sem cor, sem perfume, sem rosa, sem
nada.”
Isso parece querer dizer-nos o Papa. Os frutos da guerra são... a
ausência de frutos. A guerra é estéril por natureza. Não existe
nela o mínimo de fecundidade. Seus frutos são já natimortos e desconhecem
o movimento e a beleza da vida. As crianças mudas, telepáticas não estão
vivas. Vagam sem esperança ou alegria, carregando a morte às costas como
o menino japonês em sua dolorosa dignidade e em seu silêncio mais eloquente que
um milhão de palavras. Mortas antes de viver.
As armas – cujos fabricantes foram acusados por Francisco de não poderem ser
chamados de cristãos – acabam com a fecundidade do mundo. Só produzem
rosas radioativas, estúpidas e inválidas. Só partejam crianças
natimortas, assassinadas externa e interiormente. Os frutos da guerra são
não frutos. Só a paz é fecunda e dá frutos. Não se preocupa em
gerar mais poder, mas vida.
Essas brincadeiras de “meninos” apostando quem tem o arsenal mais poderoso ou o
botão que melhor funciona assustam. Sobretudo depois do estrago que os
dois “meninos” atômicos fizeram em 1945. Contra isso a voz de Francisco convoca
a paz. Não a dos cemitérios ou a da passividade. Mas a paz dinâmica
e geradora de vida em abundância, que faz as flores desabrocharem, os frutos
serem saboreados e as crianças brincarem livres de correr, saltar, nadar,
aprender, ouvir e contar historias. Um 2018 cheio de paz para todos nós.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da
PUC-Rio, teóloga, é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por
Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
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