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segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

A ESTERILIDADE DA VIOLÊNCIA


 Por Maria Clara Lucchetti Bingemer

            O ano já começou com as habituais ameaças entre nações.  Por um lado, Kim Jong-um, o temível líder norte-coreano, saudou o novo ano declarando que o botão nuclear está sempre ao seu lado, em sua mesa de trabalho. A ameaça dirigia-se claramente aos Estados Unidos e a resposta do presidente Donald Trump não se fez esperar: "O líder norte-coreano Kim Jong-un disse que o botão nuclear está na mesa dele todo tempo. Alguém... pode avisá-lo que eu também tenho um botão nuclear, mas é  muito maior e mais poderoso que o dele. E o meu botão funciona!”.

                Não! Não são – como poderia parecer - dois meninos disputando vantagem em uma brincadeira de soldados e guerra.  São dois líderes mundiais que avisam à humanidade ter ao alcance de suas mãos a destruição ou a sobrevivência do planeta. Se dependêssemos apenas deles, estaríamos agora amedrontados, vivendo talvez os últimos dias de uma humanidade estéril e sem futuro. 

                Graças a Deus existem outras vozes dirigindo-se a essa humanidade amedrontada que hoje somos.  Entre elas destaca-se a do Papa Francisco.  Em sua mensagem de Ano Novo, o pontífice não quis enviar ao mundo uma saudação apenas calcada na linguagem e nos símbolos católicos.  Dirigiu-se ao mundo inteiro e para isso escolheu uma imagem impressionante: um menino de uns nove, dez anos carregando às costas o cadáver do irmão menor. A foto foi tomada pelo fotógrafo Joseph Roger O´Donnell, após o bombardeio atômico em Nagasaki. 

  O menino maior está na fila do crematório em Nagasaki esperando sua vez para entregar o pequeno corpo do irmãozinho, vítima fatal da bomba nuclear despejada sobre a cidade.  Ereto, de uma seriedade impressionante, o rostinho do menino tem uma dignidade impenetrável.  Sua dor só se deixa perceber pelos lábios fortemente apertados e os olhos secos muito abertos. 

                A legenda da imagem: Os frutos da guerra completa a mensagem. A morte das crianças, a destruição do futuro, esses são os frutos da guerra. Na imagem há duas crianças, uma viva e outra morta.  Esta teve sua vida ceifada antes mesmo de começar a desenvolver-se.  A maior continua vivendo, mas teve sua infância roubada da maneira mais dolorosa, quando a violência levou seu irmão pequeno.  E sabe-se lá que outros membros da família também teriam sido assassinados pela crueldade da bomba. 

                A imagem não registra adultos.  Por que o menino ainda tão pequeno foi encarregado da tristíssima tarefa de levar o cadáver do irmãozinho à cremação?  Isso permite suspeitar talvez que os pais não estivessem já presentes, vitimados igualmente pela força destruidora do cogumelo atômico. Parece amarga ironia que hajam sido batizadas de “meninos” (Little Boy e Fat Boy) as duas bombas atômicas que há mais de sete décadas caíram sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão, lançadas por aviões norte-americanos. No dia 6 de agosto, o avião Enola Gay deixava cair seu fardo destruidor sobre Hiroshima. Três dias depois era a vez de Fat Boy ser lançada sobre a cidade de Nagasaki. As duas bombas mataram cerca de 140 mil pessoas em Hiroshima e 74 mil em Nagasaki. Este número aumentou expressivamente nos anos seguintes devido às sequelas causadas pela radiação. 

             Vinicius de Moraes, em sua poesia musicada por Gerardo Rocha e imortalizada na interpretação de Ney Matogrosso, “Rosa de Hiroshima”, alertou a humanidade de memória curta que somos.  “Pensem nas crianças mudas, telepáticas. ...Porém não se esqueçam da rosa da rosa.... A rosa de Hiroshima, a rosa hereditária. A rosa radioativa, estúpida inválida. A rosa com cirrose, a antirrosa atômica. Sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada.”

            Isso parece querer dizer-nos o Papa.  Os frutos da guerra são... a ausência de frutos.  A guerra é estéril por natureza.  Não existe nela o mínimo de fecundidade.  Seus frutos são já natimortos e desconhecem o movimento e a beleza da vida.  As crianças mudas, telepáticas não estão vivas.  Vagam sem esperança ou alegria, carregando a morte às costas como o menino japonês em sua dolorosa dignidade e em seu silêncio mais eloquente que um milhão de palavras. Mortas antes de viver. 

            As armas – cujos fabricantes foram acusados por Francisco de não poderem ser chamados de cristãos – acabam com a fecundidade do mundo.  Só produzem rosas radioativas, estúpidas e inválidas.  Só partejam crianças natimortas, assassinadas externa e interiormente.  Os frutos da guerra são não frutos.  Só a paz é fecunda e dá frutos.  Não se preocupa em gerar mais poder, mas vida.
            Essas brincadeiras de “meninos” apostando quem tem o arsenal mais poderoso ou o botão que melhor funciona assustam.  Sobretudo depois do estrago que os dois “meninos” atômicos fizeram em 1945. Contra isso a voz de Francisco convoca a paz.  Não a dos cemitérios ou a da passividade.  Mas a paz dinâmica e geradora de vida em abundância, que faz as flores desabrocharem, os frutos serem saboreados e as crianças brincarem livres de correr, saltar, nadar, aprender, ouvir e contar historias. Um 2018 cheio de paz para todos nós. 

Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,  teóloga, é autora de “O  mistério e o mundo – Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.

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