por Maria Clara Bingemer


Corria o ano de 1993 e eu trabalhava dividindo meu tempo entre a PUC-Rio e o Centro de Investigação
e Ação Social (CIAS), também chamado Centro João XXIII, da Companhia de
Jesus, na Rua Bambina 115. Lá, coordenava o projeto chamado Diálogo
entre fé e cultura.
Um
dia veio ver-me um senhor judeu de nacionalidade argentina, que morava
em São Paulo. Perguntou-me se não íamos fazer nada para comemorar a
data tão significativa que acontecia aquele ano. Delicadamente
mostrei-lhe que não sabia do que falava e perguntei-lhe de que se
tratava. Ele esclareceu: fazia 30 anos da morte de João XXIII.
Entre
envergonhada e animada, dispus-me a organizar junto com ele o que fosse
preciso a fim de preparar uma bela comemoração pelo trigésimo aniversário da morte do Papa João. Assim fizemos.
O evento reuniu umas 100 pessoas no auditório da Rua Bambina. Estavam
presentes judeus, cristãos e pessoas não ligadas a nenhuma instituição
religiosa. A conferência de abertura foi dada pelo co-organizador que -
surpreendendo toda a audiência ao colocar como fundo musical a Ave
Maria de Gounod – narrou sua experiência com o Papa João, que chamou
durante todo o tempo de “Juan el Bueno”.
Contou o que foi sua infância de menino judeu na Argentina, em uma
comunidade forte e numerosa, mas em um país maciçamente católico.
Sentia a discriminação, a rejeição, muitas vezes pesar sobre seus ombros
e sua vida. Sofria quando, em alguma cerimônia católica da qual devia
participar, ouvia a expressão “pérfidos judeus” ser proclamada no templo
e receber o Amém da assembleia. Até que apareceu o Papa João, “Juan el
Bueno”.
O orador seguia, cada vez mais emocionado, narrando os feitos
pró-judaicos do Papa bom. Durante a Segunda Guerra Mundial, sediado na
Turquia neutra, conseguiu salvar muitos judeus perseguidos pelo nazismo
com a distribuição gratuita de permissões de trânsito fornecidas pela
Delegação Apostólica, certificados de batismo temporários e documentos
de imigração para a Palestina, arranjados por organizações judaicas.
O que mais edificava o orador era o respeito de “Juan el Bueno” pelos
judeus. Não cogitou convertê-los à força. Diante da ameaça de
extermínio, sentiu-se obrigado a defender suas vidas, ainda que isso
implicasse uma interpretação não tão usual do Direito Canônico.
Ao mencionar que o Papa João retirou da liturgia da Sexta-feira Santa
as duras expressões relativas aos judeus e inaugurou uma nova era de
relacionamento e diálogo judaico-católico, o orador mostrava-se
emocionado. “Juan el Bueno” influenciou a composição da declaração Nostra Aetate, do Concílio Vaticano II, aprovada apenas após sua morte e que é peça chave no diálogo com os
judeus. Neste documento, a Igreja rejeita definitivamente as acusações
de deicídio ao povo judaico e condena o antissemitismo.
Quando terminou sua fala, o orador estava em lágrimas e boa parte da
audiência também. Alguns de nós - católicos - conheciam um pouco ou
talvez apenas parte deste lado do Bom Papa João. Mas certamente nunca
havíamos escutado um depoimento como esse de um judeu que viu
transformada sua visão e concepção do Cristianismo e da Igreja Católica
por uma figura como a do papa João.
Ele terminou recitando uma poesia de sua autoria, que compôs ainda menino adolescente em Buenos
Aires, quando chegou a notícia da morte de João XXIII. Na singeleza da
linguagem infantil e na autêntica emoção que ela transmitia, cada vez
que repetia o refrão: “Murió Juan el Bueno”. A tristeza do menino judeu
argentino era igualmente a de milhões que se sentiram órfãos de alguém
que se comportou para com eles como um pai. Um homem bom, que os tratou
com amor e caridade, não se importando que sua cultura e sua religião
fossem outras, no respeito à diferença e na integração da mesma.
Hoje, a Igreja Católica vive a alegria de contar “Juan el Bueno” entre
seus santos canonizados. Para todos os católicos isso implica, além de
uma honra, um compromisso: edificar uma comunidade eclesial aberta às
diferenças, sem discriminações ou preconceitos, onde todo ser humano
possa encontrar a acolhida de uma casa e a presença de irmãos, além de
uma instancia de diálogo. A perene paternidade do bom Papa João será
sempre inspiradora nesse sentido.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
Copyright 2014 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
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