Por Maria Clara Lucchetti
Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
Lembro do rapaz
que amarrou a noiva loura e linda debaixo do chassis do carro para não ser
vista pelos soldados ao passar a terrível fronteira do muro de Berlim. As
fotos, publicadas em revista brasileira, mostravam seus cabelos louros que se
soltaram do coque e arrastavam-se no chão, quase beijando as botas do soldado
que pedia documento ao assustado noivo.
Lembro das
fotos de pessoas que escalavam o arame farpado com risco da própria vida para
passar ao outro lado. Eram muitas e o “muro da vergonha” representava para elas o obstáculo que as
separava da liberdade.
Recordo com
respeito e solenidade o suicídio do grande escritor húngaro Sandor Marai, autor
de obras-primas literárias, tais como “O legado de
Ester” e “Confissões de um burguês”, entre tantos outros. Meses antes da queda do muro,
em fevereiro de 1989, o escritor suicidou-se sem deixar explicações. Talvez seu gesto possa ser compreendido se se levar em
conta todos os anos de esquecimento a que foi submetido pelo regime que oprimia
seu povo e seu país, e pela falta de liberdade que tanto criticou a vida toda.
Lembro de
tantas e tantas coisas. Até que todas essas lembranças desaguam nas
lágrimas de emoção de meu marido alemão, diante de um aparelho de TV, no dia 9
de novembro de 1989, contemplando a festa que as crianças e os jovens
realizavam sobre o muro - antes fronteira e prisão - agora porta aberta para
uma ansiada liberdade. Desaguam como num rio manso que por sua vez desaguará em
um mar profundo e belo.
O mundo inteiro
pôde saborear a visão de um povo que experimentava, pela primeira vez em muitos
anos, o gosto da liberdade e o fim da carga de pesados grilhões. A queda do Muro não simbolizou apenas a reunificação da
Alemanha, mas também a dissolução dos regimes comunistas do Leste Europeu.
Também o triunfo do capitalismo que, desfeita a balança de poder que o segundo
mundo socialista representava, passou a flutuar sozinho nos céus da economia
mundial, assumindo uma nova face rapidamente chamada de neoliberal.
Agora,
25 anos após esses eventos, pode-se lançar um olhar mais sereno e equilibrado
sobre os fatos. À época, muitos setores da sociedade e das igrejas comemoraram.
Era a derrota do materialismo ateu que tanto parecia ameaçar a estabilidade e a
fé de povos e nações. No entanto, rapidamente revelou-se igualmente a
face sombria desta destruição. As nações confinadas por trás da chamada “cortina de ferro” caíram inteiras no
capitalismo e suas seduções. Nem a católica Polônia escapou a esta
conduta, deixando triste e desapontado seu carismático filho Karol Wojtyla, o
Papa João Paulo II, que certamente desempenhou um importante papel na derrocada
do socialismo real.
Duas
décadas depois, em 2009, o capitalismo triunfante em 1989 vivia talvez a maior
crise de sua história. E o regime que se vangloriava da derrota comunista
entrava em recesso de entusiasmo e se via desafiado a repensar-se.
No
Brasil, além da queda do muro, a militância progressista sofria outra queda: a
primeira derrota de Luiz Inácio Lula da Silva às eleições presidenciais. A
militância sofria dois golpes ao mesmo tempo e, perdida e desorientada, ora
entrava em depressão; ora buscava novas religiões compatíveis com a Nova Era,
para encontrar novo sentido para a vida; ora entrava pelo caminho da ecologia,
a fim de encontrar novos paradigmas para organizar o pensamento.
Vinte
e cinco anos depois, agora em 2014, quem viveu viu. Viu Lula ganhar as
eleições em 2002 e seu partido caminhar já para 12 anos no poder. Viu a
Rússia de Putin dar ao mundo um espetáculo mimético, com outra roupagem, do
tempo dos czares ou uma faceta repaginada do stalinismo. Viu os Estados
Unidos elegerem um presidente negro, elegante e democrata, que acaba de sofrer
dura derrota no Senado, agora com maioria republicana.
No
entanto, vimos, vemos e se Deus quiser veremos ainda nos próximos anos, para
além desses 25, a humanidade lutar e clamar por liberdade e democracia, mesmo
pagando duro preço para isso. A figura do Papa Francisco, que traz
de volta o Concílio e a opção pelos pobres; o inconformismo da juventude, que
em muitos lugares do mundo protesta e exige melhores condições e qualidade de
vida para seus povos; o Prêmio Nobel da Paz outorgado a uma menina paquistanesa
que guerreia sem medo e sem trégua pelo direito da mulher e de todos à
educação, são penhores da esperança que nos habita na celebração destas bodas
de prata com a liberdade.
Que
celebrar o fim do muro equivalha a lutar pelo fim de todos os muros que separam
o ser humano de seu glorioso destino: ser imagem do Deus vivo, livre e guardião
da liberdade; humano sempre mais porque sempre mais refletindo a glória de
Deus, que brilhou no rosto de seu Cristo. Que venham mais 25. Mais
50. Mais um século, dois, três. E que as crianças dancem e os jovens se
beijem e os pedaços da vergonha da ditadura e da opressão caiam destroçados
sobre a terra, que é mãe de povos dignos que desejam vida e vida em plenitude.
A
teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão (Edusc) Copyright 2014 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
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