Por Maria Clara Lucchetti
Bingemer
Termômetro
da crise de indiferentismo que assola nossa sociedade, a questão migratória
continua a mostrar-se um sintoma terrível e de alta negatividade. O barco
Aquarius, que transporta mais de 600 migrantes – entre eles sete mulheres
grávidas e mais de cem menores desacompanhados – resgatados da costa líbia,
permaneceu por vários dias parado no meio do mar. Esperava poder atracar em
algum porto italiano ou na ilha mediterrânea de Malta. Porém, ambos
os países recusaram-se a abrir seus portos para acolhê-lo.
O
ministro do interior da Itália, Matteo Salvini, tuitou uma declaração seca e
cortante: "Salvar vidas é um dever. Transformar a Itália em um enorme
campo de refugiados, não. A Itália não vai mais ceder e obedecer. Desta vez, HÁ
ALGUÉM QUE DIZ NÃO". Enquanto isso, os migrantes aguardavam, o sol
queimava e as provisões escasseavam. E o ministro seguia convicto de
que naquela situação, acolher os migrantes do Aquarius não equivalia a salvar
vidas.
O
exército de Malta não abriu os portos para o Aquarius, mas levou a bordo
provisões para 24 horas. Foi quando brilhou, como luz de esperança,
a decisão do recém-eleito presidente da Espanha, Pedro Sánchez. A
Espanha acolheria o barco para “evitar uma tragédia humanitária” e abriria o
porto de Valencia.
Acompanhando
a decisão de Pedro Sánchez, várias cidades e regiões do país se comprometeram a
receber um determinado número de passageiros do Aquarius: o país basco, a
cidade de Madrid, a região de Baleares, entre outras. Barcelona havia oferecido
seu porto antes do pronunciamento do presidente, que acabou por escolher
Valencia para o desembarque dos refugiados.
Diante
de uma Europa que parece criar um crescente bloqueio antimigrantes e uma
mentalidade cada vez mais hostil ao acolhimento deles, a Espanha aparece como
exceção de solidariedade e humanidade. Mesmo nos tempos mais agudos
da crise migratória, a política espanhola evitou voltar as costas aos
refugiados e transformá-los em bodes expiatórios. E o recém
empossado presidente marca sem dúvida um ponto político e diplomático adotando
uma posição de acolhimento diante do fechamento de seus dois vizinhos.
Apesar
dos insistentes apelos do Papa Francisco em favor dos migrantes, nem mesmo os
católicos parecem sensibilizar-se para a grande tragédia que representa a
rejeição dessa imensa massa de pessoas que fogem da violência, da fome, da
morte, enfim em seus países de origem.
Na
França, recente pesquisa feita pela revista L´Express mostrou que,
entre os católicos ouvidos, menos da metade se declarou aberta à acolhida dos
migrantes. E mesmo os que são mais lúcidos e positivos sobre essa questão
revelam um alto nível de pessimismo em relação ao sucesso da integração dos estrangeiros
que batem às portas de seu país. A maioria crê que eles não
conseguirão integrar-se.
Trata-se
realmente de uma tragédia, mas de dupla dimensão. Por um lado, a
tragédia real dos migrantes que atravessam longuíssimas distâncias, enfrentam
um sem número de dificuldades e perigos em busca de uma vida com um mínimo de
decência para si e suas famílias. Tantos encontraram a morte
enquanto buscavam a vida.
Não menos grave, porém, é
outra tragédia, de igual senão maior peso. Trata-se da incapacidade crescente
que se percebe nas sociedades ocidentais de abrir espaço para a hospitalidade e
o acolhimento do outro que precisa de ajuda. Rejeitar e mandar de
volta pessoas que saíram de suas pátrias porque não têm outra opção para
continuarem vivas é algo muito grave.
Parece que o migrante é
alguém que, por não ser cidadão do lugar onde procura a chance de uma nova
vida, não é plenamente humano. A ética, os direitos humanos e todas as
instâncias que regem o funcionamento de uma sociedade reconhecem ao estrangeiro
e ao migrante os mesmos direitos permitidos a todo ser humano. No
entanto, por interesses econômicos e uma malsucedida política de
fronteiras, os refugiados são cada vez mais considerados por muitos uma ameaça
aos interesses dos países onde desejam se instalar.
O “sintoma” do estrangeiro
sublinha os limites dos estados-nação e a consciência política que os
configura. Interiorizamos essas limitações e tendemos a reagir com a
convicção de que estrangeiros e migrantes não gozam dos mesmos direitos que
nós. Porém, urge tomar consciência de que a dignidade humana pertence aos seres
humanos, quaisquer que eles sejam, independentemente de seu reconhecimento pela
lei, ou da posse de papéis que atestam sua cidadania.
Enquanto o Aquarius e seus
passageiros distribuídos em embarcações auxiliares singram rumo à Espanha, esta
grave questão se levanta sempre com mais força. Está em jogo não a
nossa cidadania, mas a nossa identidade de seres humanos.
Maria Clara Bingemer é
teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora deTestemunho:
profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial,
entre outros livros.
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