Por Maria Clara Bingemer
Matar, assassinar, pôr fim a vidas
alheias com motivos políticos, religiosos, ideológicos é algo que a humanidade
tem perpetrado frequente e abundantemente ao longo de sua história milenar. As
motivações para isso são várias: assalto, autodefesa, paixão não correspondida,
ciúmes. Porém, existe uma motivação que se destaca de todas as
outras por sua extensão e crueldade: eliminar, exterminar.
Quem mata elimina o outro da existência e de tudo
que a constitui: convívio, troca, relação, participação, liberdade. E com essa
eliminação, persegue um objetivo mais radical: exterminá-lo,
aniquilá-lo. Quando essa eliminação e consequente extermínio tomou,
ao longo da história, proporções volumosas e se revelou não como um assassinato
pontual com motivações individuais, mas como um projeto coletivo e orquestrado
com um fim mais abrangente, foi chamada genocídio.
Muitos
genocídios aconteceram na história da humanidade. O que nos é mais
próximo foi certamente o holocausto, o extermínio de judeus na segunda guerra
mundial, que em sua fase mais aguda chamou-se “solução
final”. Tratava-se de limpar a Europa e posteriormente o mundo
de todos os judeus. Ao lado destes entravam na lista exterminatória
ciganos, homossexuais, comunistas, enfim, todos aqueles que apareciam como
incômoda diferença dentro do projeto ariano e nazista que perseguia um mundo
formado apenas pela “raça pura”.
Eliminar quem é diferente, quem pensa diferente,
quem crê diferente e assim obstaculiza os projetos de determinado grupo é algo
que aconteceu e acontece desde que o mundo é mundo. Quando essa
eliminação toma proporções coletivas e aumentadas, é considerada crime contra
humanidade e, como tal, não prescreve, devendo ser sua memória para sempre
execrada e banida da história humana.
O país foi surpreendido
recentemente pelas revelações de um documento da CIA tornado público pelo
pesquisador de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas Matias
Spektor. Nele, o personagem destacado é o general Ernesto Geisel, considerado
pelos que acompanham a recente história brasileira, como o homem que iniciou o
processo de abertura para a redemocratização do Brasil. A figura de homem
honrado, de princípios, que começou a distender os chamados anos de chumbo,
emerge do documento secreto como alguém que, ao contrário, apoiava e respaldava
as execuções dos guerrilheiros e ativistas de esquerda como algo necessário
para o bem do país. Ressaltava, no entanto, que apenas os “subversivos
perigosos” deveriam ser executados e que a aprovação prévia do general
João Figueiredo – sucessor de Geisel – seria necessária.
O
documento comprova, sem deixar lugar a dúvidas, o que já havia aparecido nos
registros de diálogos que constam do livro do jornalista Elio Gaspari no
terceiro volume da coleção “Ditadura”. Ali é registrada conversa do
então presidente Geisel com o então chefe do Centro de Informações do Exército,
Vicente Dale Coutinho, onde é avaliado que o crescimento econômico que o país
então experimentava só se deu quando se começou a matar. Comenta
Geisel que “...esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que
ser.”
Aos
104 executados da lista apresentada por Coutinho, Geisel, com uma frase banal,
acabava de abrir uma possibilidade de crescimento exponencial. Os assassinatos
continuaram a acontecer, agora com a bênção presidencial. A mesma
política teve continuidade quando o general Figueiredo subiu ao poder.
É
impressionante perceber os pontos de contato que têm essas declarações do
ex-presidente Geisel com outras do ex-presidente argentino Jorge Rafael Videla,
entrevistado na prisão pouco antes de sua morte, em 2013. A
entrevista feita pelo jornalista Ceferino Reato chocou o continente e o mundo
quando o ex-ditador argentino confessa ter usado uma metodologia sistemática de
“desaparecimento “ de vários milhares de militantes de esquerda (30 mil,
segundo informações de associações de direitos humanos no país).
Tal
como Geisel, o general Videla explica que era necessário matar esses
subversivos para organizar a sociedade argentina e fazê-la caminhar rumo ao
modelo do liberalismo econômico. Mas como não era conveniente que a
sociedade se desse conta do massacre genocida, escolheram métodos discretos,
quais sejam: os voos da morte, quando os corpos das vítimas eram atirados no
Rio da Prata para não serem encontrados; a não existência de listas
de nomes que pudessem posteriormente ser encontrados. Em
suma: apagar qualquer rastro dos crimes.
A
esse projeto genocida o general Videla – um católico de missa diária – chama de
“Disposição Final”. Impossível ignorar a analogia com a terminologia
nazista “solução final” dos últimos anos da guerra, quando milhões de judeus
passavam pelas câmaras de gás e os fornos crematórios.
Pelo
visto, “...esse troço de matar”, segundo o General Geisel, é um vírus do qual a
humanidade não está livre. Continua ferindo de morte o ethos humano e
carcomendo como verme imundo as entranhas da identidade dos povos que lutam por
liberdade. Não data apenas de seis décadas, mas foi reproduzido há
três. E continua vivo e solto hoje, se voltarmos as costas ao que a
memória, com seu poder subversivo e libertador, insiste em desvelar sobre nosso
passado recente.
Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
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