Por Maria Clara Bingemer
A
Igreja do Chile vive tensos momentos. Depois de seguidas denúncias de abusos
sexuais por parte de sacerdotes e o encobrimento das mesmas por membros da
hierarquia católica, o Papa Francisco foi procurado pelas vítimas. Em um
primeiro momento não aceitou as denúncias por considerá-las
falsas. Uma vez convencido por seus emissários que investigaram os
fatos in loco, constatou que havia sido mal informado, pediu perdão
às vítimas e convocou todos os bispos do país a Roma.
A
reunião entre os bispos e o Papa foi dura, dolorosa, mas franca e transparente.
Ao final da mesma, a Igreja e o mundo se surpreenderam ao saber que todos os
bispos se colocaram à disposição do pontífice para que atuasse com toda
liberdade quanto ao futuro deles. Trata-se de algo inusitado em termos
eclesiais. E por isso não se sabe o desfecho que terá.
Quem
permanecerá? Quem sairá? Quem será confirmado na missão que
desempenha agora? Quem deverá deixá-la? Sobre isso nada se
sabe. Sabe-se, porém, que neste tema tão tenebroso da pedofilia na
Igreja pela primeira vez as feridas são expostas sem complacência ou meias
medidas. O processo poderá ser muito difícil, mas existe uma real
oportunidade de sanar o futuro.
Desde
o momento em que constatou claramente que as vítimas diziam a verdade com suas
denúncias, Francisco atuou de forma transparente. Ao reunir-se por três dias
com os bispos chilenos, entregou-lhes um documento de dez
páginas. Nele, não poupava expressões e chamava as coisas pelo nome:
negligência, omissão, erros graves, vergonha. Os bispos refletiram sobre o que
lhes era dito e chegaram conjuntamente à posição de deixar o
Papa decidir e agir com toda liberdade
Não
é de hoje que o fantasma da pedofilia assombra a Igreja Católica. Todos
recordamos o drama que Bento XVI teve que enfrentar logo no início de seu
pontificado. O caso do Chile soma-se a essa lamentável lista de
escândalos que fragiliza o tecido eclesial e a credibilidade da
instituição. Por ser tão grave, não pode ser tratado com medidas
paliativas. Há que reconhecer o erro, pedir perdão e procurar
reconstruir integralmente o que foi destruído.
O
gesto dos bispos é admirável em sua radicalidade. Agradecem às
vítimas por haver, com suas denúncias, permitido que a verdade venha à luz.
Elogiam sua perseverança e coragem ao expor publicamente suas feridas e
persistir em tentar ser ouvidos em meio às incompreensões e ataques inclusive
da comunidade eclesial. Pedem perdão à Igreja como um todo e particularmente à
do seu país. Agradecem ao Papa sua escuta paternal, sua correção fraterna e o
honesto diálogo que com eles manteve.
Admirável
igualmente foi a atitude de Francisco. Se em um primeiro momento não
aceitou as denúncias por considerá-las falsas, não deixou de mandar apurar e
investigar os fatos. E uma vez constatada a pertinência do que
diziam as vítimas, teve a coragem de pedir perdão e mudar sua decisão.
Por
mais chocante que pareça todo o acontecido, na verdade, o decurso de todo o
processo deixa perceber claramente a força do Espírito que conduz à verdade e
é verdade em si mesmo. Já diz a Escritura que o outro
nome do demônio é Pai da mentira. Tudo que é falso, camuflado,
encoberto não vai na direção da justiça, da paz e do amor. Entra,
pois, em rota de colisão com a Boa Nova que o Evangelho traz e não sintoniza com
o projeto do Reino de Deus.
É
preciso, pois, romper. E foi essa ruptura – dura e dolorosa – mas
poderosamente sanadora que aconteceu. Aconteceu no confronto do qual foram
personagens as vítimas dos abusos, os bispos chilenos e o Papa. Aconteceu na percepção
de Francisco de onde estava a verdade que urgia que se corrigissem rumos e
tomassem medidas enérgicas. Aconteceu na abertura sincera dos bispos
que renunciaram a controlar seu destino e o puseram em mãos do Papa.
De
fato, com tudo que tem de sombrio, trata-se de um evento luminoso. Finalmente
está para sempre banida a secreta convicção de que o clericalismo que ainda
habita a Igreja protege os abusadores, confiantes no silêncio das
vítimas. É evidente que estas não mais estão dispostas a calar seu
sofrimento e o dano que lhes foi feito. Isso permite esperar para as novas
gerações um clero mais responsável e adulto. Igualmente um
episcopado mais cuidadoso na formação de seus seminaristas e mais vigilante
sobre o que se passa em suas comunidades.
Fica
claro igualmente que quando se busca com sinceridade o caminho do bem, o medo é
vencido e emerge a honesta disposição de reparar os erros cometidos. Mesmo que
não seja fácil, que isso implique viver momentos de incerteza e de insegurança,
confiando apenas na misericórdia divina.
O
que sucede neste momento com a Igreja do Chile permite esperar tempos melhores
com respeito às relações intra eclesiais. A pedofilia acontece em todos os
setores da sociedade. Não é prerrogativa da Igreja Católica tê-la em
suas fileiras. No entanto, talvez o modo como essa mesma Igreja, sob
a direção do Papa Francisco, está administrando algo tão conflitivo possa ser
um testemunho que ajude a sociedade como um todo ao deparar-se com o mesmo
problema.
Se.
como disse Jesus Cristo, só a verdade liberta, parece que há reais motivos para
celebrar o processo libertador que hoje vive a Igreja do Chile.
Maria Clara Bingemer é teóloga,
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora
PUC-Rio e Reflexão, entre outras obras.
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