Por Eduardo Hoornaert
Dentro de pouco, a liturgia cristã celebra a paixão e morte de Jesus. Uma morte horrenda. Difícil imaginar uma morte mais cruel. Ora, num determinado momento de sua ação junto ao povo, ele deve ter visualizado a perspectiva desse horror, pois não desconhecia que as autoridades judaicas, já resolvidas a eliminá-lo, não hesitariam a apelar às autoridades romanas, que por certo aplicariam a crucifixão, destino comum de dissidentes e opositores ao sistema.
Diante disso é normal que se faça a pergunta: ‘Jesus teve medo de morrer?’. Essa pergunta pode soar estranha e inusitada, para alguns até incômoda ou mesmo repreensível, pois estamos tão acostumados a elevar a figura de Jesus acima da comum condição humana, que mal o imaginamos tendo medo ou sentindo insegurança. Há toda uma cristologia que parte da ideia que Jesus teria assumido a tarefa sobre-humana de enfrentar livremente uma morte violenta para ‘remir’ ou ‘salvar’ a humanidade, ou seja, livrá-la do pecado. Mas vamos ao caso: será mesmo que estava nos planos de Jesus, desde o início, enfrentar uma morte violenta para salvar a humanidade? Eis a pergunta que leva à reflexão histórica que aqui proponho.
1. Consideremos em primeiro lugar as prováveis reações dos discípulos a constatar o fracasso da vida de Jesus, um fracasso em que eles estavam envolvidos. Não precisa se aprofundar muito nos primeiros textos para neles sentir o clima de aversão, misturado a vergonha (na última hora todos os discípulos fugiram), repulsa, medo e indecisão (a cena dos discípulos de Emaús). Não era por menos. Na época, entre os judeus, ninguém olhava para um crucificado, que não só era um condenado, mas também um rejeitado pela sociedade. Morria só, no mais completo abandono. Não se enterrava um crucificado. O corpo ficava dependurado na cruz, às vezes durante dias, até que aves de rapina ou cachorros devoravam as carnes, enquanto ossos e crânio eram finalmente jogados num monte de sujeira chamado ‘golgotha’ (em aramaico: ‘caveira’). Não há palavras que conseguem expressar tanto horror.
No meio da mais profunda aflição, os discípulos procuravam alívio na Bíblia, conforme tinham aprendido nas sinagogas. E encontraram um texto do profeta Isaias:
Desfigurado, irreconhecível,
Não tendo mais nada de humano.
Desprezado, rejeitado pelos homens.
Um homem atormentado, sofredor,
Uma face velada para nós,
Menosprezado, sem valor para nós.
Isaías 52, 13 – 53, 12 evoca a figura misteriosa de um ‘sofredor de Ihwh’, um servo de Deus que vai até as últimas consequências e oferece sua vida. Essa citação de Isaías já deve ter circulado nas comunidades por volta dos anos 70 (ou seja, aproximadamente 40 anos após a morte de Jesus), pois já aparece no Evangelho de Marcos. Ela causou alívio entre os discípulos. As palavras de Isaías mostraram que a morte de Jesus não ocorreu em vão, mas estava nos planos de Deus. Jesus ‘Cordeiro de Deus’, sofredor inocente, morre pelos culpados, doentios, atormentados, criminosos, errantes e rebeldes:
Ora, ele carrega nossas doenças,
Ele leva nossos tormentos.
Ihwh o faz endossar nosso crime comum.
Ele devolve a justiça às multidões
as justifica (retira as ofensas)
pois endossa os crimes da multidão,
É considerado rebelde
Enquanto toma sobre si
Os erros da multidão
E intervém pelos rebeldes (Isaías, ibidem).
Eis os versos que voltam cada ano nas leituras das celebrações da Semana Santa. Será mesmo que eles representam o pensamento do próprio Jesus?
2. Vejamos isso de mais perto. Nos evangelhos só aparecem dois tópicos em que Jesus parece interpretar sua paixão e morte na linha da profecia de Isaías. Em Mateus 8, 16-17 (a cena se passa em Cafarnaúm) se lê: de noite, demoníacos lhe foram apresentados em grande número. Com uma só palavra, ele expulsou os sopros maléficos. Ele cuidou de todos que sofriam. Assim se realizou a palavra do Profeta Isaías: ‘ele tomou sobre si nossas enfermidades e se encarregou de nossos males’. Em Lucas 22, 37 encontramos uma reflexão parecida: pois a seguinte passagem das Escrituras deve se realizar em mim: ‘ele é contado entre os criminosos’. É verdade, o que se diz de mim (no Profeta Isaías) vai se realizar agora. Conforme se lê neste texto, o próprio Jesus teria declarado que as palavras do profeta se realizariam com ele. Mas quando situamos esses dois textos no contexto global das posturas assumidas por Jesus, tais quais aparecem nos evangelhos, fica difícil se imaginar que Jesus tenha dito as palavras que Lucas lhe atribui e que Mateus comenta a seu respeito. Será mesmo que as palavras de Isaías expressam o modo em que Jesus teria encarado sua morte, ou se trata de uma atribuição posterior? Hoje há consenso, entre exegetas, no sentido de qualificar os referidos textos como ‘redacionais’, ou seja, como interpretações a posteriori (Schröter, J. & Christine Jacobi, Chr., Jesus Handbuch, Mohr Siebeck, Tübingen, 2017, 425-431).
2. Como então explicar a recorrência, nos primeiros escritos cristãos, de temas como ‘Jesus ‘sofredor’ e ‘Jesus salvador’? Aqui temos de nos lembrar que esses escritos foram redigidos em sociedades baseadas no escravismo. Em meio aos horrores causados pelo escravismo, que todos conhecemos, apareciam casos excepcionais de desprendimento, no sentido de pessoas importantes na sociedade se identificar com seus escravos, principalmente os mais pobres, por puro interesse humanitário. Uma identificação ‘salvadora’. Trata-se da chamada ‘redenção (salvação) de cativos’ por meio do rebaixamento voluntário de cidadãos livres. É claro que os raríssimos casos de ‘redenção de cativos’ emocionavam as pessoas e eram considerados amor humano no sentido mais alto do termo.
Já nos anos 50, o apóstolo Paulo, certamente inspirado por Jesus, declara que está disposto a se rebaixar até a condição de escravo em amor ‘por todos’:
Sim, livre diante de todos
Eu me fiz escravo de todos (1Cor 9, 19).
Encontramos os mesmos acentos de amor supremo pelos rejeitados na Primeira Carta de Pedro, assim como nas Cartas de Clemente Romano e de Inácio de Antioquia. Nessas Cartas se escreve que o líder humilde é um líder ‘escravizado’. Ele passa a viver em meio aos escravos, está disposto a ‘perder a vida’ para ‘salvar’ a vida de outras pessoas. É um ‘salvador’.
A partir da segunda parte do século II, o tema de ‘Jesus salvador’ ganha corpo e se desenvolve rapidamente, embora nunca fosse dogmaticamente definido. A questão é saber se o próprio Jesus entendeu sua morte desse modo. Se consultamos os evangelhos a esse respeito, topamos com dois textos que parecem confirmar esse pensamento. Em Marcos 10, 45 se lê: Quem quiser ser o primeiro entre vocês, que seja o escravo de todos. Pois o filho do homem não veio para ser servido, mas para servir, dar sua vida e pagar por todos (Mc 10, 45). O que chama a atenção é que, aqui de novo, nas últimas palavras (‘dar sua vida e pagar por todos’), aparece uma citação de Isaías 53, 10. Um segundo texto, que se pode aduzir, tem igualmente a marca de Isaías: então ele tomou um cálice, deu graças e o passou para eles. Todos beberam dele. Ele disse: ‘e esse vinho é meu sangue, o sangue da aliança, derramado por todos’ (Mc 14, 24). As palavras ‘derramado por todos’ são uma citação de Isaías 53, 11. Elas, mais uma vez, sugerem que se trate aqui de uma reflexão feita após a morte de Jesus. Fica difícil pensar que Jesus as tenha pronunciado, pois os próprios evangelhos indicam que Jesus tenha entendido sua morte de modo diferente. Não como a realização de profecias acerca de um ‘servo sofredor’ ou um ‘salvador da humanidade’.
3. Como, então, ele teria reagido quando soube que estava ‘marcado para morrer’? Os evangelhos deixam claro que ele entendeu que, assim como os profetas foram discriminados, rejeitados, ameaçados de morte e por vezes até assassinados, ele teria o mesmo destino. Jesus resolveu seguir o destino dos profetas. No Segundo Livro das Crônicas se lê: sem se cansar, o Deus de seus pais lhes enviou seus mensageiros. Mas eles se riram desses profetas, desprezaram e até ridicularizaram suas palavras (2 Cr 36, 15-16). E Jeremias: é sua própria espada que acaba com seus profetas, como um leão que devora tudo (Jr 2, 30). E ainda Neemias: eles se rebelaram e se revoltaram contra você (Ihwh), jogaram nas costas suas instruções e mataram seus profetas (Ne 9, 26). Jesus é interiormente habitado por uma paixão profética, como Elias: fico agitado por uma paixão violenta por Ihwh, Deus Tseva’ot, pois os israelitas abandonaram a aliança (1Rs 19, 10). De outro lado ele sabe o que o espera quando decide, contra o conselho de Pedro, ir a Jerusalém para a Festa da Páscoa: ‘Jerusalém, Jerusalém, que mata os profetas e apedrejas os que lhe são enviados’ (Lc 13, 34). Na parábola dos vinhateiros, Jesus faz uma alusão à sua própria morte. Os que alugam a vinha, ao ver o filho do patrão chegar, dizem entre si: ‘vamos matá-lo. A nós a herança’. Eles o dominam (o filho do proprietário da vinha), o matam e jogam seu corpo fora da vinha’ (Mc 12, 7-8).
Sim, Jesus tem medo de morrer. Mas não abandona a missão profética, como fica claro num dos textos mais emocionantes de todos os evangelhos, que descreve a cena no Jardim das Oliveiras: ele caiu por terra. Rezou para que, se for possível, a hora passasse longe dele. ‘Aba, Pai, você pode tudo: afaste de mim esse cálice. Mas não, não o que eu quero, mas o que você quer, você’ (Mc 14, 35-36). Impressionante como, ao mesmo tempo em que Jesus confessa ter medo de morrer, ele chama Deus de pai (Aba em aramaico). Um sinal de confiança sem limites.
4. Chamar Deus de pai muda tudo. O realmente novo, em Jesus, consiste em ver em Deus um pai e reagir como um filho pequeno, com confiança total. Nada da imagem ancestral de um pretenso Senhor todo-poderoso, exigente, implacável e justiceiro, que condena ao inferno os que não o respeitam. Muitos teólogos insistem nisso: a relação de Jesus com Deus pai misericordioso constitui o cerne da mensagem evangélica. O biblista alemão Joaquim Jeremias mostrou que, para o stablishment judeu da época, esse tratamento filial em relação a Deus era sacrilégio, abominável falta de respeito pela majestade divina, como se evidenciou no processo contra Jesus, levado a cabo pelo Sinédrio, sob a autoridade do Sumo Sacerdote Caifás. Estar diante de Deus como uma criança, com confiança absoluta no ‘Pai que está nos céus’, isso não passa, aos olhos dos sacerdotes.
Quando se interpreta Jesus como um profeta de Deus pai, qualquer hipótese de que Jesus teria se comportado como redentor da humanidade se esvai. Pois essa hipótese pressupõe um Deus justiceiro, exatamente uma imagem de Deus que Jesus desconhece. Não consigo entender como a narrativa de Jesus Salvador tenha alcançado um sucesso tão duradouro ao longo da história do cristianismo, já que repousa sobre a fé num Deus justiceiro e implacável, que ameaça condenar eternamente os pecadores. Esse não é o Deus de Jesus, nem de Orígenes, nem dos melhores teólogos. Mas é de se entender que os discípulos não tenham captado de vez a dimensão verdadeira da fé de Jesus em Deus pai, como se pode compreender que, até hoje, ainda se fale em ‘Senhor Deus’, ‘Deus todo-poderoso’, ‘Deus Juiz dos vivos e dos mortos’. É que ainda persiste, no imaginário cristão, a narrativa antiquíssima, ancestral, de um Deus Senhor soberano, implacável, justiceiro, ciumento, mandão e onipotente, até cruel e vingativo, que em última análise deriva das religiões do Oriente Médio, que influenciaram poderosamente a redação da Bíblia. Até hoje, o cristianismo ‘patina’ entre o antigo Deus das religiões do Oriente Médio e o Deus pai de Jesus.
5. ‘No momento em que Jesus morre na cruz, ele ressuscita’, escreve o Padre Roger Lenaers em seu livro ‘Jesus, um homem diferente de nós?’ (Paulus, São Paulo, 2018). Não, a humanidade não se engana em preservar, honrar e praticar, já ao longo de dois mil anos, a memória desse homem. É que ele é mesmo diferente de nós. Não há memória, pelo menos na cultura ocidental, de um homem que tenha tomado posicionamentos tão inovadores e ao mesmo tempo tão acertados acerca de nossa vida neste planeta. Posicionamentos que os cristãos não param de investigar, embora nem sempre consigam viver em conformidade com eles. O modo em que Jesus morreu e o motivo pelo qual ele foi julgado culpado de morte, são coisas tão escandalosamente aberrantes que não é possível pensar que Deus tenha concordado com eles. Deus ressuscitou Jesus na hora da morte. Jesus vive.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário