Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Já dizia a compositora e cantora – mais que isso, pensadora Rita Lee – que mulher é bicho esquisito porque tem um sexto sentido maior que a razão. Não, não se trata da velha historinha machista de que o homem é a razão e a mulher, a sensibilidade; o homem é o espírito, a mulher é o corpo. E por aí vai. Séculos de enganos e embustes com essas sandices.
No entanto, há que reconhecer que – graças a Deus! – a mulher é diferente do homem. E aí me parece perfeita a canção de Rita Lee. Mulher sente de outro modo e isso faz com que pense de outro modo. Tem um sexto sentido maior que a razão. E este dom que a faz ser o que é permite que traga para o meio do mundo contribuições preciosas que sem ela não existiriam.
Há mulheres que pensam. E muito! E bem! Com rigor, com profundidade, refletindo sobre coisas sérias, ou fazendo pesquisas de ponta que vão salvar vidas. Mas enquanto o homem tem necessidade de estar mergulhado cem por cento nas coisas sérias que faz e pensa, a mulher consegue o milagre de fazer e pensar tudo isso e também amamentar uma criança, cozinhar, enfeitar ambientes com flores. Plural, múltipla, a atenção da mulher se dirige a mais de uma coisa ao mesmo tempo, sem que isso prejudique a qualidade com que assimila e trata uma e outra.
Para uma mulher, viver momentos de absoluta transcendência e elevada contemplação jamais foi incompatível com estar com os pés bem fincados no cotidiano, beijando os filhos, arrumando a casa e cuidando de quem precisa. É Adélia Prado, a grande poeta, quem diz: “aos domingos bato o osso no prato chamando o cachorro. E atiro os restos”. A mesma Adélia, católica praticante, que nesse mesmo domingo certamente foi à missa e escreveu: «a missa é como um poema, não suporta enfeite nenhum». E que, contemplando Jesus Crucificado na festa do Corpo de Deus, exclama em transe poético: “Eu te adoro, ó Salvador meu, que apaixonadamente me revelas a inocência da carne”.
A transcendência arrancada de sua inacessibilidade é trazida para o chão da vida e para o cotidiano mais simples e despojado. A mulher, bicho esquisito, com seu sexto sentido maior que a razão, consegue fazer isso. Passa das coisas mais transcendentais às mais concretas sem se sentir por isso dividida, fragmentada ou diminuída. A sublime capacidade de integrar diferentes níveis da existência realizando harmoniosa síntese, este é o dom maior da mulher em meio à vida.
Que nos confirme Santa Teresa de Ávila, a grande, a mística que viveu graças inenarráveis generosamente prodigalizadas a ela pelo Deus a quem amou e que a amou infinitamente. Ela encontrava o esposo sempre amado nos êxtases aos quais era amorosamente conduzida, mas não menos entre as panelas, cuidando das irmãs doentes, ou viajando em lombo de burro pela Espanha afora. Essa intimidade com o divino através e por meio do humano é própria não só das santas, mas de todas as mulheres em diferentes situações de vida.
Senão como entender os sentimentos e as atitudes de tantas mulheres que enfrentaram na sua fragilidade os poderes mais autoritários e cruéis da história da humanidade apenas para salvar vidas vulneráveis e ameaçadas? A história do nazismo está cheia de exemplos. Como entender que quando todos já deram por perdida a vida do jovem envolvido com o tráfico, a mãe continue a enfrentar os traficantes ao risco da própria vida para requisitar o corpo do filho, a fim de enterrá-lo dignamente? Essas mulheres, como todas as outras, não acreditam na morte, têm uma aliança profunda com a vida e sua fonte inexaurível. E seu sexto sentido lhes diz que a vida acaba triunfando...desde que alguém faça sua parte, inclusive elas.
A Escritura está cheia de exemplos de mulheres que mudaram o rumo da história do povo de Deus. Desde as parteiras egípcias que mentiram descaradamente ao faraó, desobedecendo sua ordem de matar os bebês das mulheres hebreias e salvando assim todo um povo; passando por Sara, mulher de Abraão, que depois de haver rido incrédula acreditou na promessa de Deus de engravidar na velhice e foi mãe de Isaac; chegando em Maria de Nazaré, que viveu uma gravidez sem pai, enfrentando a sociedade patriarcal de seu tempo; chegando às mulheres, que ao terceiro dia foram ao túmulo para ungir o corpo do crucificado, se depararam com a boa nova da ressurreição e a espalharam pelo mundo afora.
Sexo frágil não foge à luta, dirá ainda Rita Lee. O Dia Internacional da Mulher celebra aquela que permite ao mundo continuar em movimento, pois traz em seu corpo o segredo da vida. Aquela que, em comunhão com os ciclos da mãe terra, inscreve uma e outra vez no livro da vida novas letras, caracteres, narrativas e histórias. Aquela que suspira de gozo, geme de dor, chora de tristeza ou de alegria e mantém sempre as antenas ligadas no canal do sexto sentido, para que o perfume possa ser derramado por toda parte; para que o vinho que alegra a festa não falte; para que o Infinito possa caber no finito; para que o Espírito possa fecundar a argila; para que o Criador caiba todinho em seu ventre.
A elas, a nós, um muito feliz Dia Internacional da Mulher. Em tempos de denúncias de abusos, assédios, servidões e explorações as mais diversas; quando o Brasil é quase campeão da violência contra a mulher, é bom sentir que temos um sexto sentido maior que a razão; que nossa fragilidade é nossa força; e que o drama da Gata Borralheira terá final feliz não por causa do príncipe e do sapatinho de cristal, mas devido à capacidade de amar que caracteriza a verdadeira nobreza, perceptível no fogão ou nos salões.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
É autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros.
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