Frei Betto
Com a exposição de
um coração atribuído a D. Pedro I, importação cara e necrófila feita pelos
atuais ocupantes do Planalto, o Brasil comemora 200 anos de independência de
Portugal. Deixamos Portugal para cair nos braços da Inglaterra, da União Europeia
e, sobretudo, dos EUA.
As narrativas sobre
o episódio “às margens do Ipiranga” são quase todas elitistas. Afonso Taunay
(1876-1958), ao encomendar pinturas para o Museu Paulista, fez questão de
excluir as lutas populares pela Independência e favorecer uma versão
oligárquica e pacifista.
A participação dos
indígenas em nossa Independência é ignorada ainda hoje. Na estátua de D.
Pedro I na Praça Tiradentes, no Rio, o pedestal retrata indígenas e
animais de nossas selvas. Ao ser inaugurada, em 1862, o historiador Mello
Morais chegou a indagar: “Que parte tiveram esses índios e aqueles jacarés na
Independência do Brasil?”
Quase
todas as narrativas sobre nossos povos originários anterior a
1980 soam como “crônicas de morte anunciada”, como se estivessem
condenados ao extermínio ou a serem assimilados pela população em geral. Só em
1988 a Constituição assegurou a eles direito à terra e às suas tradições e
culturas. Pela primeira vez, o Estado brasileiro se reconheceu multiétnico.
Criou-se o mito de
que a Independência assegurou a unidade territorial do Brasil. Ora, D. Pedro I
se interessava apenas por Rio de Janeiro, São Paulo e Minas. Não dava ouvidos
às outras províncias. Por isso, teve que enfrentar várias revoltas regionais
contra o governo imperial, como Farroupilha (1835-1845), no Rio Grande do Sul;
Cabanagem (1835-1840), no Pará; e a Sabinada (1837-1838), na Bahia. Maranhão e
Pará eram províncias apartadas do Brasil até 1820. O Acre pertencia ao Peru e à
Bolívia, e só foi anexado ao Brasil em 1903.
D. Pedro I chegou a
contratar o lorde inglês Thomas Cochrane (1775-1860) para reprimir rebeliões
populares. No Pará, o cônego Batista Campos (1782-1834), que se opunha ao
trabalho escravo, sofreu tortura em praça pública, enquanto 256 aliados dele
eram asfixiados no porão de um navio. É considerado o autor intelectual da
Cabanagem, que teve importante participação indígena. Na versão da elite,
“cabano” significa aquele que vivia em cabanas à beira dos rios. Na versão dos
ribeirinhos, o termo é associado aos brancos repressores que se vangloriavam da
sanha repressora: “Acabamos com tudo”.
Se D. Pedro I tinha
pouco interesse pelo resto do Brasil, por que o nosso país, então integrado por
18 províncias, não se fragmentou, como ocorreu em tantas regiões da América
Latina? Entre várias hipóteses fico com a mais vergonhosa: a unidade
territorial se manteve por força do projeto escravagista voltado à exploração
mineral. O regime escravocrata uniu as elites provincianas e alicerçou a formação
do Estado brasileiro.
Outro fator que
influiu em nossa coesão territorial foi a vinda da Corte portuguesa para o
Brasil em 1808. A frase atribuída ao governador de Minas, Antônio Carlos de
Andrada, em 1930 – “façamos a revolução antes que o povo a faça” -, poderia ter
sido dita no período colonial. D. Pedro I, filho de D. João VI, proclamou a
Independência antes que as rebeliões populares, como a Conjuração Mineira,
lograssem devolver a Corte a Portugal.
Não eram só as
revoltas populares, pipocando Brasil afora e agravadas pelos quilombos,
habitados por escravos libertos, que tiravam o sono do imperador. Ele sabia que
os nossos vizinhos na América do Sul se independentizavam da Coroa espanhola:
Bolívar comandou as independências de Colômbia (1810); Venezuela (1811);
Equador (maio de 1822); e, em 1825, Bolívia. San Martin liderou as da Argentina
(1816) e Peru (1821), e deu apoio à libertação do Chile (1818).
“Façamos a
Independência antes que o povo a faça.” Aqui ela foi consumada “por cima”, a
ponto de adotar uma bandeira que não traz o azul dos nossos céus, como aprendi
na escola, e sim a cor símbolo da nobreza (“sangue azul”); o amarelo do ouro; e
o verde que não retrata as nossas matas, e sim a cor da Casa Real de Bragança.
Já a iconografia das bandeiras dos países hispânicos alude a movimentos de
libertação e processos revolucionários.
O senso de
brasilidade é tardio. Até final do século 18 os habitantes daqui se
consideravam “portugueses da América” e muitos reivindicavam igualdade de
direitos com os portugueses de Portugal. Isso incomodava a elite de Lisboa, que
se arvorava em centro do Império. D. Pedro então foi pressionado a estabelecer
uma Assembleia Legislativa no Brasil que adotasse leis próprias. Só então se
popularizou a ideia de ser brasileiro.
Concordo com Caio
Prado Junior e Florestan Fernandes: ao lograr a emancipação política do Brasil,
a Independência criou um Estado capaz de preservar as estruturas econômicas e
sociais do período colonial.
Ainda resta muito a
conquistar. E as eleições estão à porta. Votemos pela independência do povo
brasileiro!
Frei Betto é escritor, autor de “Tom vermelho do
verde” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org
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