Frei Betto
Em
março de 1985, Mikhail Gorbachev assumiu a direção da União Soviética e
introduziu reformas que a levariam a se desintegrar, abandonar o socialismo
e ingressar na órbita do capitalismo.
Em maio de 1986 visitei o Kremlin, mas não estive com o líder soviético. Só fui
encontrá-lo no ano seguinte, quando participei, em Moscou, do Fórum por um
Mundo sem Armas Nucleares e pela Sobrevivência da Humanidade.
Em
torno de Gorbachev já não havia o mesmo consenso do ano anterior. Muitos o
aplaudiam por erradicar a gerontocracia e levar aos cárceres, como corruptos,
autoridades durante décadas tidas como intocáveis. Outros, contudo, o
criticavam por permitir que dissidentes de ontem caminhassem, hoje, livremente
pelas ruas de Moscou.
O Fórum reuniu cerca de mil participantes, oriundos de 80 países. Gente das
mais diferentes tendências políticas e atividades profissionais, de banqueiros
a generais, de escritores a religiosos, de cientistas a artistas de cinema.
Óbvio que a atenção da mídia e do público se centrava em figuras como Yoko Ono,
Gregory Peck, Michel Legrand, Paul Newman e Shirley MacLaine. Do Brasil,
participaram também o maestro Cláudio Santoro, o compositor Marlos Nobre e o
professor Cândido Mendes.
Ao chegar ao Kremlin para o encerramento do Fórum, entramos pela porta da
antiga biblioteca de Lenin e ingressamos no Palácio dos Congressos. Gorbachev
tomou assento sob a grande estátua de Lenin.
Mereceu mais aplausos do que o anfitrião o escritor inglês Graham Greene que,
com bom humor, falou de improviso em nome de homens e mulheres da
cultura:
— Marx previra um mundo melhor, quando já não tivessem igrejas e mosteiros. Mas
vivi anos na América Latina e posso assegurar que ali há cooperação entre
católicos e comunistas. Juntos, lutam contra os esquadrões da morte Portanto,
antes de morrer espero ver um embaixador da União Soviética no Vaticano.
Gorbachev riu e aplaudiu, talvez sem dar importância à premonição que ele
próprio haveria de cumprir, pois em janeiro de 1989 a URSS e o Vaticano
estabeleceram relações diplomáticas.
Em seu discurso de uma hora e três minutos, o autor da perestroika recordou
Hiroshima e Nagasaki para advertir:
— Agora, um único submarino estratégico contém mais poder de destruição que
todas as armas da Segunda Guerra Mundial. Do dilúvio nuclear não poderá se
salvar uma nova Arca de Noé.
Em
seguida, ridicularizou o presidente Reagan por ter lhe proposto, num encontro,
uma ação conjunta URSS-EUA, caso o nosso planeta fosse atacado por seres
extraterrestres! Caímos na risada. Gorbachev defendeu a destruição imediata de
todas as armas capazes de provocar genocídio; a inspeção das bases usamericanas
no exterior; e o retorno de suas tropas aos EUA. Assegurou que a União
Soviética estava retirando seus soldados da Mongólia e do Afeganistão, e concluiu:
— É preciso salvar na Terra o dom sagrado da vida, possivelmente único no
Universo. Para isso, é preciso acabar de vez com as armas nucleares, esse ídolo
que exige sempre novos sacrifícios. Nem a União Soviética nem os Estados Unidos
tem o direito de decretar pena de morte à humanidade. É preciso pôr um fim à
separação entre política e moral. Queremos traduzir nossa filosofia moral na
linguagem da práxis política.
Não se ateve apenas às questões de política externa; abordou também a perestroika:
— Vocês chegaram aqui quando realizamos reformas revolucionárias. Só
compreendendo a essência delas é possível entender nossa política interna. É
ela que determina nossa política externa. E o seu objetivo é o pleno e livre funcionamento
de todas as formas de organização da sociedade. Queremos democratizar toda a
vida social. Almejamos mais socialismo e, portanto, mais democracia.
Encerrou sem citar nenhum clássico do marxismo. Findo os discursos, passamos
todos ao salão de recepção, dividido em diversos patamares. Logo, os
alto-falantes anunciaram que, dentro em pouco, "o presidente Mikhail
Serguêievitch Gorbachev ingressará no salão e todos devem permanecer em suas
mesas, pois ele passará cumprimentando um por um", advertiu o locutor.
Comentei com Emílio Monte, pastor evangélico argentino sentado ao meu lado, que
aquilo não daria certo. Bem fazia Fidel ao postar-se à entrada do salão,
estender a mão a cada convidado e, em seguida, desaparecer.
— Quando Gorbachev aparecer ali embaixo, ninguém segura essa boiada - adverti
ao pastor. — Se quisermos cumprimentá-lo, teremos de descer.
— Descer como? Os seguranças não nos deixarão passar.
— Vamos descer - insisti. — Duvido que nos barrem. Devem pensar que todos aqui
são muito importantes.
Puxado por mim, o pastor se animou. Passamos pelos seguranças sem ser
molestados. Logo, instalou-se um forte movimento centrífugo abaixo. Gorbachev
havia entrado e, conforme eu previra, as personalidades vips súbito trocaram a
etiqueta pela tietagem.
— Avistei ali Marcello Mastroianni - comentei com o pastor.
— Onde? Onde?
O homem perdeu a compostura. Não queria mais nada com Gorbachev. Suplicou para
ajudá-lo a descobrir o ator italiano. Entramos num impasse: eu queria ir na
direção de Gorbachev e, ele, na de Mastroianni. Os alto-falantes rogavam, em
vão, que as pessoas retornassem às mesas. Previ que Gorbachev não daria mais
nenhum passo para dentro do salão e, o quanto antes, trataria de fugir daquela
turba. Minha intuição sugeriu que ele faria uma curva antes de alcançar a porta
de saída. Postei-me no local da curva, em companhia do pastor, que prosseguia
de pescoço esticado à cata de Marcello Mastroianni. Logo, Gorbachev veio em
nossa direção, acompanhado pelo empresário estadunidense Armand Hammer, que
fora amigo de Lenin e, na Guerra Fria, servira de vínculo confiável entre a
Casa Branca e o Kremlin.
Antes de nos movermos ao seu encontro, o dirigente soviético veio em
nossa direção. Mas logo se viu de novo cercado por outros
ansiosos por cumprimentá-lo. Estampando seu sorriso tímido, Gorbachev tratou de
apressar o passo e desapareceu atrás da porta que lhe prometia tranquilidade.
Anos mais tarde, reencontrei-o no norte da Itália em um evento cultural. Já não
atraía a atenção, talvez por ter deixado como legado um país imerso no mais
visceral capitalismo, governado por um caudilho e impregnado das mesmas
ambições expansionistas do antigo Império Russo e da União Soviética.
Frei Betto é escritor,
autor de “Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco), entre outros
livros. Livraria virtual: freibetto.org
Frei Betto é autor de 73
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