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quarta-feira, 25 de abril de 2018

BEM VINDO AO TEMPO QUE SE CHAMA HOJE


por Ivone Gebara

Estamos hoje habituadas a ler e a ouvir que vivemos em tempos obscuros, que perdemos o rumo da verdade e da justiça e estamos imersos numa longa noite escura. Tudo isso talvez seja verdadeiro, mas se absolutizado, corre o risco de atrapalhar a percepção das coisas boas que também estão acontecendo. Coisas boas não são apenas coisas agradáveis no imediato, mas são passos na direção de valores que foram objeto de longas ou pequenas lutas de muitas pessoas. Coisas boas são coisas difíceis que apesar do sofrimento que nos causam indicam que estamos num caminho de purificação de nossas relações.

É, nesse sentido, que busco louvar este tempo, tempo que é nosso, um hoje único que nos é oferecido. Em meio às muitas ambiguidades e contradições temos que reconhecer as revelações, as denúncias e exigências de respeito que soam bem alto como realidades positivas. Elas quebram a ordem estabelecida da injustiça sobre muitos corpos, quebram a hegemonia dos poderes e dos deuses. Revelam o nefasto escondido, a opressão consentida. Refiro-me especialmente a algo que vem acontecendo nos lugares de dominação masculina religiosa. Quantas denúncias acolhemos em relação à pedofilia do clero! Quantos pedidos de inquérito em relação às contas das igrejas! Quantas noticias de assédio, de violência e responsabilidades não assumidas! As novas vozes que gritam abrem as portas das sacristias, dos conventos e igrejas como abriram dos escritórios de empresários famosos, de artistas, de cineastas, de políticos. Vão mostrando à luz do dia as cenas de exploração antes ocultas nas alcovas e confessionários.

Ah! Que belos tempos os nossos onde até no Vaticano as freiras, religiosas de diferentes congregações que trabalham lá ousam revelar o regime de trabalho injusto a que são submetidas. Exploração de sua mão de obra a serviço de prelados e de muitos clérigos sem mesmo receber o devido pagamento. Os jornais europeus e norte-americanos da última semana como Euronews, e outros como o britânico ‘The Guardian’ nos deixarem estarrecidas. A notícia de fato saiu numa revista distribuída pelo L‘Osservatore Romano’ embora possa parecer contraditório que um jornal ligado a ‘Santa Sé’ fale da exploração das freiras que lá trabalham. Uma casa falando mal da própria casa! 

As freiras não têm o hábito de reivindicar direitos para si mesmas, mas dessa vez a exploração estendida por muitos e muitos anos chegou a seu limite. As religiosas denunciam o peso e a enorme quantidade de trabalho servil doméstico que fazem e a pouca retribuição que recebem pelo trabalho realizado. Além disso, dizem sentir-se exploradas “pelos homens da hierarquia da Igreja” que elas servem diariamente sem nenhum reconhecimento de seu trabalho. São mulheres simples vindas de muitos lugares do mundo e obedientes ao chamado que lhes foi feito. Nessa linha sugiro a leitura de uma série de artigos sobre o trabalho doméstico e especialmente o trabalho das religiosas no Vaticano escrito por várias intelectuais. A religião é também empresa exploradora da mão de obra feminina! 

Sem nomear diretamente os beneficiários desses serviços femininos desde muito tempo, sabemos bem que os homens da Igreja desenvolveram a ideologia de que os sacerdotes representam a Cristo na terra. Mesmo os mais sinceros são atingidos indiretamente por ela. As mulheres que se consagraram a Cristo muitas vezes se sentiram obrigadas a se consagrarem também aos homens da religião acolhendo acriticamente essa falsa representação. Homens, obedientes às suas necessidades não hesitaram em incentivar a fundação de congregações dedicadas aos Seminários, à ajuda ao clero, ao cuidado com os bispos, cardeais e papas. Os prelados e seus jovens alunos continuam proclamando-se celibatários por causa do Cristo, mas não abriram mão dos benefícios de ter mulheres para cuidar da limpeza de sua casa, da roupa e da cozinha. Reproduzem o mesmo sistema vigente em muitos lugares do mundo. Continuam a ter casa e comida cuidada e preparada pelas especialistas do mundo doméstico, aquelas cujo corpo lhes serve idealizado como o a da Virgem Maria e, ao mesmo tempo usado para os cuidados da vida cotidiana.

O tom crítico e até meio irônico dessa crônica é também marcado pela alegria diante da coragem de muitas religiosas que estão abrindo a boca em relação a sua condição subalterna exaltada pelos clérigos como serviço gratuito ao Senhor. Fariam bem de usar aqui o plural e falar de serviço e submissão aos senhores!

Não sei se somos nós, as feministas espalhadas pelo mundo todo, se são as atrizes de Hollywood ou as intelectuais que lutam pelo direito das minorias que estamos enfim ajudando tantas mulheres a ouvir os clamores coletivos de seus corpos no lugar em que vivem sua consagração. Não sei se é a internet e seu acesso em alguns conventos inclusive no Vaticano que têm aberto as mentes, os corações e as bocas de muitas que estão ousando fazer a denúncia dos senhores representantes do Senhor. O fato é que tempos novos estão sendo anunciados! E isso é maravilhoso!

Minha ira e minha alegria misturadas são enormes porque estamos acordando para a farsa em que vivemos. Estamos percebendo o ópio misturado ao Evangelho de Jesus. Mesmo com boa fé, mesmo acreditando no bem que estávamos fazendo, estávamos e estamos reforçando um sistema que nos exclui e explora. De repente nossos olhos estão se abrindo e percebemos a falsidade no interior dos belos discursos nos quais acreditávamos terem vindo dos céus através das bocas clericais. É claro que a vida é uma mistura mais complexa do que um texto de denúncia, mas quando a gente percebe que ingredientes inadequados nos fazem mal então é preciso fazer de tudo para eliminá-los.

Na mesma linha embora de forma diferente, entristeceu a muitas de nós ver através dos meios de comunicação o Encontro do Papa Francisco com 500 monjas contemplativas no Perú. Que humor mais sem graça o do Papa Francisco qualificando a ‘fofoca’ como o maior pecado das religiosas contemplativas. E não só isso falando que essa ‘fofoca’ (bisbilhotice) era mais perigosa que as antigas ações do grupo Guerrilheiro Sendero Luminoso. E muitas das religiosas entre as presentes, por vício de educação riram com ele embora não tivessem gostado de seu discurso! Por favor, Papa Francisco! Há formas de humor que são aviltantes! Há formas de humor que destilam desrespeito, ignorância e injustiça. E a sua foi uma. Perdoe-me a ousadia de deixar pública a minha ira, mesmo sabendo de sua atuação brilhante em outras áreas da vida dos cristãos. Um deslize sem dúvida, mas um grave deslize que confirma as formas de tratamento que os sacerdotes e bispos dedicam às mulheres.

O Papa Francisco seguindo um raciocínio que convidava as religiosas a construírem a unidade em seus conventos afirmou: “O diabo é mentiroso, e também bisbilhoteiro: gosta de levar e trazer, procura dividir, deseja que, nas comunidades, falem mal umas das outras. Já disse isto muitas vezes, repetindo-me: Sabeis o que é uma religiosa bisbilhoteira (fofoqueira)? É uma "terrorista". Pior que aqueles terroristas de Ayacucho, alguns anos atrás. Pior, porque o mexerico é como uma bomba: ela vai e "bss... bss... bss...", como o diabo, atira a bomba, destrói e parte tranquila. Nada de irmãs "terroristas", sem bisbilhotices. Já sabeis que o melhor remédio para não bisbilhotar é morder-se a língua. A enfermeira terá um pouco que fazer, porque a vossa língua se inflamará, mas pelo menos não atirastes a bomba. Por conseguinte, que não haja bisbilhotices no convento, porque isto é inspirado pelo diabo. Ele, por natureza, é bisbilhoteiro e mentiroso. E recordai-vos dos terroristas de Ayacucho, quando vos vier vontade de bisbilhotar. 

Bisbilhotice, terrorismo, coisas do demônio, convite a morder a própria língua... Que linguagem inadequada para falar para as monjas, para mulheres que tiveram e têm uma história de dedicação ímpar na Igreja!

A forma de comportamento com que as religiosas são tratadas pelos clérigos em todas as escalas da hierarquia sugere que elas sejam umas ignorantes e ingênuas. Fico simplesmente irada com a palavra “irmãzinha” que muitas vezes usam para dirigir-se a nós. Longe do afeto fraterno e sororal que podemos dedicar uns aos outros o tom é de superioridade melosa, de uma artificialidade impar e de uma falsidade que provoca náuseas.

Se nós mulheres temos hoje que reconhecer nossa submissão ao clero que identificamos erroneamente à Igreja, os homens têm que reconhecer como se aproveitaram da ingenuidade e do bom coração de muitas para fazer valer a realização de suas necessidades domésticas.

Perdoem-me os leitores e leitoras! Mas a experiência na frequentação desses ambientes ensinou-me muitas vezes a avaliar o alcance da inconsistência da educação que o clero dá a si mesmo para manter as aparências de um poder mentiroso, de uma caridade falsa e de uma doutrina que eles pregam, mas na qual não creem. Apesar das exceções, há um excesso de palavras bonitas endereçadas a umas e outras. Mas essas palavras não colam mais a realidade. São falsas e produtoras dos mais diferentes tipos de violência e alienação.

Bendito esse tempo que é o nosso! Tempo do acordar da consciência das mulheres religiosas! Tempo em que não ficará mais pedra sobre pedra, que já vê caírem templos e palácios episcopais e se ouvem os gritos e os lamentos dos falsos profetas. Em cumplicidade com os políticos roubam os pobres e iludem os ignorantes. Não ficará pedra sobre pedra. Estamos ainda no começo da destruição da mentira que impomos uns aos outros em nome de nossa astúcia e egoísmo ‘religiosos’.

Mas há bem mais do que esse fatos acima narrados. Lembrei-me da Comissão Teológica para estudar a ordenação diaconal das mulheres estabelecida pelo Papa Francisco. Em que deu? Em nada. Provavelmente daqui a alguns meses teremos um documento dizendo que após longos estudos a Comissão chegou à conclusão de que tradição da Igreja Católica Una, Santa, Masculina e Vaticana não autoriza a essa Comissão a se desfazer de uma sólida Tradição. Só não dirão que foi a tradição que eles mesmos criaram e querem manter. Afirmarão convictos que a escolha dos 12 apóstolos, apenas homens, não é deles, mas herança de Jesus e, portanto desígnio divino. É simplesmente triste! Só ouvem a sua voz e só se apegam aos dogmas que os mantêm ainda por um tempo no poder. Mas daqui a um tempo cairão para que novos tempos possam de fato aparecer!

Sei que estes problemas que abordo nesse momento são menores frente aos dramas de populações inteiras destruídas pelas paixões humanas como é o caso atual da Síria e do crescente número de emigrantes forçados, desempregados e famintos do mundo. Mas acredito que o pequeno tem a ver com o grande assim como o grande se manifesta no pequeno. Tudo o que fazemos de bom a um pequeno fazemos indiretamente a todo o mundo.

Por isso, as mulheres religiosas do Vaticano fazem o bem ao mundo ao dizer: Basta! E com elas muitas mulheres e homens fazem eco a esse profético BASTA!

Não queremos ser um tribunal uns dos outros. Nem atirar pedras. Não é essa a ética dos Evangelhos. Mas queremos sim nos alertar mutuamente para as paixões que nos atraem, cegam e levam-nos a negar o respeito devido à vida de todas as pessoas. Por isso continuamos dizendo: BASTA!

Ivone Gebara é filósofa, religiosa e teóloga. Ela lecionou durante quase 17 anos no Instituto Teológico do Recife – ITER. Dedica-se a escrever e a ministrar cursos e palestras, em diversos países do mundo, sobre hermenêuticas feministas, novas referências éticas e antropológicas e os fundamentos filosóficos e teológicos do discurso religioso. Entre suas obras publicadas estão Compartilhar os pães e os peixes, O cristianismo, a teologia e teologia feminista (2008), O que é Cristianismo (2008), O que é Teologia Feminista (2007), As águas do meu poço. Reflexões sobre experiências de liberdade (2005), entre outras.

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