Frei Betto
Há muitos modos de orar.
Sedutora incompletude, orar é sempre insatisfação, algo além do mais íntimo de
mim mesmo. Um gosto de sal arde por baixo da língua. Um gosto de Sol aquece o
peito e deixa saudade, profunda saudade daquele ser que não sou. E, no entanto,
somente sou sendo Aquele que não sou e se fez humano, e se torna em meu
espírito o ser que sou e devo ser.
Orar é arar, sulcar o
mais profundo de meus sentimentos e pensamentos, deixar que as sombras se
esvaneçam para dar lugar à luz.
A oração é prenúncio e
caminho de plenitude. Todos os orantes são ciganos em busca do Inacessível.
Deus se encontra onde menos se espera. Vaga mundo. Está lá no mais ínfimo e no
mais pleno. Aqui e agora.
Orar é tornar-se
presente. Saudade é sempre ausência. Futuro, busca do que não se possui. Espera
do que se sonha. Presente é ser o que se é sendo o que não se é, e sim o que se
é naquele que É.
Jamais deve o orante
projetar que transpira ou aspira santidade. Nem almejar galgar os píncaros das
virtudes. Basta acolher o Transcendente como a terra se deixa fecundar pelas
sementes.
Deus dorme à soleira da
porta, como cão que vigia e aguarda. Fiel, jamais abandona a casa que o abriga.
A oração não pode ser
medida pela extensão das palavras. Nem pela beleza litúrgica. Tampouco pela
harmonia dos cânticos ou ausência de conflitos. Porém, quando comunitária, deve
ser alegre e festiva.
Já no século IV
recomendava-se que os coros infantis fossem acompanhados por instrumentos
musicais, danças e guizos. Aos olhos da comunidade, coros dançantes evocavam
bailados angélicos. No século III, Clemente de Alexandria descrevia, em
sua Carta aos Gentios, uma cerimônia de iniciação cristã na
qual havia tochas, cantos e danças de roda, "juntamente com os
anjos". Eusébio de Cesareia (+ 339) narra como os cristãos comemoraram a
vitória de Constantino dançando diante de Deus: "Com danças e hinos nas
cidades e no campo, eles davam a honra primeiro ao Deus do Universo... e depois
ao piedoso imperador".
Hoje, temos vergonha do
corpo e dos movimentos do corpo. A racionalidade moderna transformou-nos em
anjos barrocos: enormes cabeças sobre corpos disformes. Louvamos a Deus com
discursos articulados. No entanto, na relação de amor entre um homem e uma
mulher as palavras contam menos do que os gestos. Por que já não sabemos ser
alegres na relação amorosa com Deus? Como os sisudos monges de Umberto Eco,
em O Nome da Rosa, consideramos o riso um atributo demoníaco?
Segundo Dante, no inferno não há esperança nem riso; no purgatório não há riso,
mas resta a esperança; e no céu, a esperança já não é necessária, tudo é
riso.
Felizmente, há quem ouse
quebrar os limites cartesianos que nos prendem à confinada área de uma liturgia
ortofônica, repetitiva, recitativa (por isso os protestantes não usam o verbo
rezar, derivado de recitar, e sim orar) para alçar voo ao amplo espaço da
gratuidade amorosa.
Ao deixar a prisão
política, em fins de 1973, as monjas beneditinas de Belo Horizonte acolheram-me
com um espetáculo de dança animado por uma noviça que viera do balé da Bahia.
Elas entendiam de liturgia.
Oração é ação, inalação,
respiração, conspiração, sublimação, encarnação, conversão, revolução e,
sobretudo, paixão.
Oro não somente quando
medito, peço, falo ou usufruo do silêncio que acarinha meu espírito. Oro não
apenas no silêncio que me absorve, como vigília permanente, sono desperto,
morte gestando vida. Oro, sobretudo, quando o Espírito vem em socorro de
minha fraqueza, como escreveu São Paulo. “Pois não sabemos o que pedir nem como
pedir; é o próprio Espírito que intercede em nosso favor, com gemidos
inefáveis” (Romanos 8, 26).
Frei Betto é escritor, autor de “Fome de Deus” (Paralela/Companhia das
Letras), entre outros livros.
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