Eduardo
Hoornaert
Nas
Cartas Circulares de Helder Câmara se inserem, de modo irregular, curtos textos
rimados e ritmados, em que se revela um poeta. Um poeta que se esconde por trás
da imagem de um tal de ‘Padre José’, nome que parece provir do fato que a mãe
de Helder pensou em chamar seu filho de José. Com o correr do tempo, o Padre
José se torna a mais criativa e persistente transpersonalização de Helder
Câmara, ao mesmo tempo heterônimo, interlocutor de toda hora e anjo da guarda.
Ele visita Helder principalmente à noite, nas Vigílias. Nas Cartas se percebe
que o bispo é bastante reticente, quando se trata de explicitar o que o Padre
José significa para ele. Repetidamente, ele demonstra um certo pudor em
relatar, nas Cartas, as intervenções do Padre José e confessa que só se resolve
a fazê-lo por ter confiança na Família Messejanense, ou seja, no grupo de
mulheres – seja no Rio de Janeiro, seja em Recife - às quais endereça suas
Cartas Circulares. Pois o Padre José diz coisas e emite opiniões que nem sempre
combinam com o que se espera e um bispo. Além disso, revela sentimentos que não
raramente expressam um estado de ânimo que beira o desespero.
A
desproporção
Entre
o imenso que sondas
E o
quase-nada
Que
logras realizar.
O
desnível
Entre
o que imaginas
E os
frutos grotescos
Que
dás à luz.
A
incompreensão quase geral
E, em
certos momentos, geral.
Os
voos cegos
Com
visibilidade zero
Sem
bússola e sem radar.
A
necessidade imperiosa
De ser
otimista,
De
fazer crer,
Esperar
E
amar.
Eis,
Pai,
O
balanço
Das
Vigílias sempre mais longas
E em
que se acaba escutando
- com
a alma, com os ouvidos? -
O
grito constante
Que
tanto conheces:
‘Meu
Pai, meu Pai,
Por
que me abandonaste?’ (Carta 2-3/3/1966, III, I,
pp. 171-172).
Após
assistir ao filme ‘Zorba o Grego’, Helder comenta a dança ‘desesperada’ de
Anthony Quinn (depois da ruína de um projeto longamente acalentado) do modo
seguinte:
Ou já
é dança,
A tua
dança inconfundível e única,
Cujo
sentido último
Aos
próprios anjos escapa
E só é
entendida por Deus? (ibidem, p. 171).
Ou, no
mesmo sentido:
Qual o
limite máximo
Da
declividade?
A
partir de que grau
A
estrada se torna impossível? (Carta
30-31/3/1966, III, I, p. 225).
Na
Carta de 20-21/2/1966 (III, I, p. 149), Helder pensa em rasgar as
confidências do Padre José. Uns dias mais tarde, em 2-3/3/1966 (III, I, p.
171), o mesmo pensamento: quem sabe, é melhor não prosseguir (com
os poemas do Padre José), deixar fora da série o que aí está
escrito (na mesma noite, veja p. 172).
Mesmo
assim, há períodos de intenso fluxo de poemas, por exemplo entre final de
fevereiro e início de abril de 1966. Neste trabalho me limito a comentar as
dezenas de poemas produzidos nesse curto período. Muitos dos poemas são
redigidos no tempo de Carnaval, quando Helder tem mais tempo para mergulhar na
contemplação da vida.
O
olhar privilegiado
De
quem recebeu de Deus
O
tesouro e a tortura
Da
imaginação criadora (Carta Circular 23/03/1966,
III, I, p. 154).
Entre
os lados todos
Fáceis
de descobrir
Existe,
oh! Existe
A
região misteriosa
Em que
Te escondes
Em que
Te apagas em mim (ibidem, p. 155)
O
Padre José, é verdade, ilumina. desvela, abre horizontes. Mas ele inquieta
também, revela acessos de pessimismo, revela um Helder que mal aparece nas
partes mais informativas de suas Cartas, que costumam ir impregnadas do mais
persistente entusiasmo. Em outras palavras: é pela mediação do Padre José que
Helder expressa o que ele, na qualidade de bispo católico, mal consegue
verbalizar. Assim, os poemas se apresentam como um jogo sutil entre a pessoa do
bispo e seu disfarce, sua imagem fantasiosa, o Padre José.
Antenas
sensibilíssimas.
As
meditações (os poemas) do Padre José são antenas sensibilíssimas,
captam as mais leves ondas emitidas pela cabeça e pelo coração do Padre
José (Carta 2-3/3/1966, III, I., p. 172).
Olho
de micro-analista
Olho
de astrônomo
Olho
de mergulhador submarino
Olho
de cosmonauta
-
todos vos fundis
E
outros tantos mais
No
olhar privilegiado
De
quem recebeu de Deus
O
tesouro e a tortura
Da
imaginação criadora (Carta 22-23/3/1966, III,
I, p. 154).
Ah!
Como são tristes meus dedos,
Arrancarão,
instintivamente, do violão,
Canções
magoadas.
Modelarão
na argila
Bonecos
severinos
De
olhares angustiados
E
sorrisos tristes (ibidem, p. 155).
Às
vezes, o Padre José ‘concursa’ com poetas brasileiros da época, como João
Cabral de Melo, Thiago de Mello, Octávio Mora, Fernando Ferreira de Loanda,
Ledo Ivo e principalmente Cecília Meireles. Outras vezes, ele se deixa
impressionar por um filme, como o já citado ‘Zorba o Grego’ ou ‘Mary Hopkins’.
A dor
do mundo.
Nos
poemas que apresento aqui, referentes ao curto período de pouco mais de um mês,
O Padre José expressa a dor do mundo, que tanto se configura como a dor do
pobre, por discriminação, marginalização, opressão e violência, como a dor de
pessoas que pertencem a classes privilegiadas. Um dor talvez mais angustiante,
pois marcada pelo selo da solidão. O que diferencia as meditações de Helder
acerca da dor do mundo é que ele não diz que apenas o pobre sofre, enquanto o
rico goza. Sendo ele mesmo de origem burguesa, Helder sente a dor da classe
burguesa, que ele expressa pela imagem de quem anda por ruas
intransitáveis, em que ninguém se encontra, ninguém se vê, ninguém
se ama. Isso em vivo contraste com quem caminha por humildes
ruinhas, gostosas toda vida, nos bairros pobres (veja
abaixo o poema em extenso). Eis um aspecto fundamental, frequentemente omitido
nas análises das ‘conjunturas’ em que vivemos. Quem conhece os bairros de
classe média nas cidades latino-americanas, sabe como são ‘isolacionistas’ os
portões elétricos, as senhas de acesso, os radares, as câmaras de controle.
A dor
do pobre.
O
filho de mãe solteira
Três
vezes filho.
Primeiro,
Como
todos os filhos.
Depois,
Porque
sem coragem,
Sem
amor,
Não
chegaria a nascer.
Por
fim,
Porque
além de mãe,
A mãe
Tem de
ser pai (ibidem, 153).
Saber
trabalhar,
Querer
trabalhar
E não
achar
Nem
biscate.
Ter de
esmolar,
Ser
inoportuno,
Impertinente.
Parecer
viciado e cínico,
Com o
recurso único
De
chegar à casa
Com um
pouco de pão.
Chegar
humilhado,
Ser
recebido a insultos.
Perder
moral,
Junto
à mulher e filhos.
Tudo
isso percebi, Manuel,
Ao ver
o brilho de teus olhos
Quando,
Ao
invés da esmola triste
Te dei
trabalho
Tudo
adivinhei
Quando
minha Irmã (a Irmã Chuva)
Fez
chover
Na
terra estorricada de tua alma (Carta
2-3/3/1966, III, I, p. 170)
Chuva,
dá um jeito
De
abrir goteiras
Em
todo o meu corpo,
De
gelar meus ossos,
De
alagar a minha alma.
Mas
deixe em paz
Os
mocambos de minha gente
Que
precisa descansar
Da
realidade triste
E
esquecer no sono
A fome
impertinente (Carta 20-21/3/1966, III, I, p. 204).
A dor
das classes privilegiadas.
Tanto
rosto
E
nenhum olhar.
Tantos
lábios
E
nenhum sorriso
Tanta
aparente presença
Tanta
ausência real (Carta Circular 21-22/02/1966, III,
I, p. 151).
Há
ruas intransitáveis
Em que
ninguém se encontra,
Ninguém
se vê,
Ninguém
se ama.
E há
ruas,
Humildes
ruinhas (neologismo helderiano),
Gostosas
toda vida,
Onde
pode até sair briga,
Mas
briga de faz-de-conta,
Pois
todo mundo é irmão (ibidem).
Quando
encontro
Criaturas
errantes
No
país do ódio,
-
cheias de travos,
De
amargura,
Ou, o
que é mais triste,
De
gelo,
De
frieza,
E
indiferença –
Sinto
uma vontade imensa
De
levá-las nos braços
Ao
condado do amor (ibidem).
Por
que me afligem tanto
Vidros
embaciados?
Não
deixam de ser
Imagem
angustiante
Do
pecado contra a luz (Carta Circular
20-21/03/1966, III, I, p. 203).
Se eu
pudesse,
À
noite
Nenhuma
casa
Se
fecharia de todo...
Casa
nenhuma deixaria de ter
Uma
luz amiga
Inspirando
confiança à distância...
Quando
os portões e as portas se fecham
E a luz
se apaga,
De um
certo modo
Cada
família
Se
tranca no seu egoísmo (Carta Circular
02-03/4/1966. III, I, p. 234).
A
solidão.
Helder,
que não é sociólogo, mas observador arguto da realidade, aponta a solidão como
a grande dor das classes privilegiadas. Uma solidão que cria um mal-estar mal
definido. Em seu livro ‘O Mal-Estar de uma Civilização’, o psicólogo Sigismundo
Freud (1856-1939), já no início do século XX, descreve a troca de liberdade por
segurança, a regulação do prazer em nome do progresso e o recurso sempre maior
à repressão. Nisso insinua, a seu modo, a perspectiva da solidão. E o filósofo
polonês Zygmunt Bauman, em seu primeiro livro, intitulado ‘O Mal-Estar da
Pós-Modernidade’ (um título alusivo ao trabalho de Freud) recorre ao mesmo
pensamento, acrescentando que a tensão entre a liberdade e a estabilidade do
estado, da família, do emprego se agrava exponencialmente nos tempos que
vivenciamos. Tudo se torna ‘líquido’ (termo preferido por Bauman), os sinais se
tornam confusos, propensos de mudar com rapidez de forma imprevisível. Zygmunt
Bauman descreve como ninguém a crescente ansiedade, o sentimento de
desconforto, a insegurança, que toma conta do mundo e afeta principalmente a
classe média. O que Helder intui no ano 1966, Bauman explicita em 2010, mais de
quarenta anos depois: mais muros, mais portões eletrônicos, adesivos ‘fumê’
(Helder escreve vidros embaciados) em vidros de carros, janelas de
casa, varandas, sacadas, cozinhas, mais senhas de acesso, câmaras de
vigilância, entradas reservadas, comunicação só por telefone celular ou por
Whatsapp, etc. Cria-se um mundo separado do mundo, um mundo enxuto, sem
pedintes, sem vendedores ambulantes, sem caminhonetes convertidas em balcões de
comércio. Um mundo de solidão em meio à multidão, um universo de telefones
celulares que criam um mundo ‘nas nuvens’, sem compromisso com a pessoa ao
lado, sem pé no chão.
Esse
mundo se impõe com tanta evidência que as pessoas ficam convencidas que não há
como reagir, que não se consegue mudar as coisas, que somos impotentes. Uma
situação de certo modo explosiva, pois pode criar o ódio contra tudo e contra
todos (‘me deixe em paz’) e abre a porta para um cego descontrole político.
Junte-se a perspectiva de empregos precários e instáveis para a juventude
emergente, o medo dos robôs a roubar postos de emprego, a galopante insegurança
social, o medo de sinais confusos, propensos a mudar com rapidez de uma hora
para outra.
Impressionante
com Helder já capta, no ano 1966, sinais desse mundo emergente, em rápida
mutação para horizontes de isolamento progressivo.
O
valor perene das meditações do Padre José.
Não
sei o que admirar mais nos poemas do Padre José, se é a sensibilidade e a
capacidade de penetrar em sentimentos nem sempre confessadas, apenas sugeridas,
ou a coragem de aguentar situações de extrema brutalidade (ainda há rios
onde afogar mendigos? [Carta 30-31/3/1966, III, I, p. 229]) e de expor
sua própria vida. Alguns poemas são quase impenetráveis de tão crípticos,
outros aludem a fatos irrecuperáveis e situações desde muito passadas. Mesmo
assim, os curtos poemas helderianos conservam um valor humano perene. Não podem
cair no esquecimento. Merecem comentários.
(Observação: cito as Cartas de Helder Câmara pela Edição Cepe (Recife) do Governo do Estado de Pernambuco, Brasil. III, I significa: volume 3, tomo 1).
Eduardo Hoornaert foi professor
catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da
História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a
formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros
séculos.
NOTA DE O PORTA VOZ: As cartas conciliares,
reunidas nas OBRAS COMPLETAS, encontram-se à venda no IDHeC – Instituto Dom
Helder Camara
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