Frei Betto
A política antiindigenista
adotada pelo atual governo federal se baseia no tripé desconstitucionalização
dos direitos; desterritorialização; e tentativa de integração dos indígenas à
sociedade majoritária.
Essa antipolítica inviabiliza
os procedimentos de regularização fundiária dos territórios indígenas; não
coíbe invasões, exploração ilegal dos recursos naturais, desmatamento (que, em
2021, ultrapassou 8 mil km2 na Amazônia), queimadas, grilagem,
loteamentos e arrendamentos de terras.
De acordo com o CIMI, houve
263 casos de invasões, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio,
registrados em 2020. Isso representa um número maior do que o de 2019, primeiro
ano do governo Bolsonaro, quando houve 256 registros.
Há, por parte do governo
federal, uma premeditada ação de extermínio. Enquanto isso, o STF faz vista
grossa ao protelar a votação sobre o Marco Temporal, que asseguraria aos povos
indígenas a defesa e os direitos previstos na Constituição de 1988, sem subterfúgios
jurídicos que visam a restringir o alcance dos preceitos constitucionais.
Ruralistas, madeireiros,
mineradoras e garimpeiros se unem para legitimar a especulação criminosa dos
recursos ambientais e legalizar o ecocídio e o genocídio que afetam as
florestas e as nações indígenas.
Enquanto isso, o presidente
mente descaradamente. Afirmou, em Dubai, que a floresta amazônica está
“exatamente igual quando o Brasil foi descoberto em 1500”. E que “mais de 90%
daquela área estão preservados”.
Indígenas de três aldeias
Munduruku no Pará estão sendo intoxicados por mercúrio que contamina os
rios, devido ao garimpo. Segundo pesquisa da Fiocruz, mais de 200
indígenas têm mercúrio no organismo acima dos níveis tolerados pela OMS.
Crianças Munduruku de 12 a 14 anos, que comiam peixes três vezes por semana,
apresentam problemas de visão, tremores e perda de memória.
O corpo humano não consegue
eliminar o mercúrio quando o ingere através de animais e água contaminados. O
metal tóxico causa malformação de bebês e doenças neurológicas, como demência,
tonturas, tremores, problemas de audição e visão. O peixe deixou de ser uma
alimentação segura na Amazônia.
Naquela vasta região, as
maiores áreas de garimpo estão em terras Munduruku e Kayapó, no Pará, e
Yanomami, no Amazonas e em Roraima. Entre 2010 e 2020, segundo o InfoAmazônia,
a atividade garimpeira cresceu 495% em terras indígenas e 301% em parques
nacionais e outras unidades de conservação da maior floresta tropical do
mundo.
Segundo Rômulo Batista,
porta-voz do Greenpeace Brasil, “infelizmente, em relação aos alertas de
desmatamento, o novo ano (2022) começa como foram os últimos três. A
destruição da Amazônia e outros ecossistemas naturais não só não é
combatida pelo governo, como impulsionada por atos, omissões e conluios
com os setores mais retrógrados da nossa sociedade, que priorizam o lucro e a
economia da destruição, agravando cada vez mais a crise climática em que
vivemos na atualidade.”
Os movimentos sociais, os
partidos progressistas e os candidatos de 2022 não podem ignorar a devastação
de nossas florestas (ecocídio) e o extermínio dos povos indígenas (genocídio).
Eles não representam um número significativo de eleitores, mas são os únicos
capazes de assegurar às gerações futuras um planeta habitável, sustentável, no
qual haja harmonia entre a natureza e os seres humanos, que são também filhos e
filhas da Mãe Terra.
Para o professor José
Ribamar Bessa Freire, coordenador, na UERJ, do Programa de Estudos dos Povos
Indígenas, precisamos extirpar de nossas cabeças cinco equívocos em relação aos
povos originários:
“Primeiro equívoco: o indígena
genérico. Hoje, vivem no Brasil, mais de 200 etnias, falando 188 línguas
diferentes. Cada povo tem sua língua, sua religião, sua arte, sua ciência, sua
dinâmica histórica própria, diferentes de um povo para outro. Por essa razão, o
padre Antônio Vieira denominou o rio Amazonas de “rio Babel”.
“Segundo equívoco: considerar
as culturas indígenas atrasadas e primitivas. Elas produzem saberes, ciências,
arte refinada, literatura, poesia, música, religião. Suas culturas não são
atrasadas, como durante muito tempo pensaram os colonizadores e ainda pensa
muita gente ignorante. As línguas indígenas, por exemplo, foram consideradas
pelo colonizador, equivocadamente, “inferiores”, “pobres”, “atrasadas”.
Ora, os linguistas sustentam que qualquer língua é capaz de expressar qualquer
ideia, pensamento, sentimento e, portanto, não existe uma língua melhor que a outra,
nem língua inferior ou mais pobre que outra.”
“As religiões indígenas também
foram consideradas, no passado, pelo catolicismo colonizador um conjunto de
superstições, o que é uma estupidez. Basta entrar em contato com as formas de
expressão religiosa de qualquer grupo indígena, para verificar que essa visão é
etnocêntrica e preconceituosa. Os Guarani foram classificados, por alguns
estudiosos, como “os teólogos da América”, devido à sua profunda religiosidade
desta nação indígena, que se manifesta em todo momento, no cotidiano,
penetrando nas diversas esferas da vida. Em qualquer aldeia Guarani, a maior
construção é sempre a Opy - a Casa de Reza. Nas atuais aldeias do Rio de
Janeiro, a reza ou porahêi é feita diariamente, todas as noites, durante os 365
dias do ano, de forma comunitária, contando com a participação de quase toda a
aldeia. Começa por volta das 19 horas e vai até meia-noite, podendo algumas
vezes estender-se até de manhã. O cacique toca maracá e dirige as rezas,
acompanhadas de cantos e danças. Não conheço nenhum grupo da população
brasileira que reze mais do que os Guarani. Acho que eles rezam mais do que
todos os bispos reunidos numa assembleia geral da CNBB.”
“Um desses erros foi percebido
no início de 1985, durante o sério acidente sofrido pela usina nuclear de Angra
dos Reis, construída num lugar que os índios Tupinambá haviam denominado de
Itaorna e que, até hoje, é conhecido por este nome. Nesta área, na década de
1970, a ditadura militar começou a construir a Central Nuclear Almirante Álvaro
Alberto. Os engenheiros responsáveis pela construção não sabiam que o nome dado
pelos indígenas podia conter informação sobre a estrutura do solo, minado por águas
pluviais, que provocavam deslizamentos de terra das encostas da Serra do Mar.
Só descobriram que Itaorna quer dizer “pedra podre”, em fevereiro de 1985,
quando fortes chuvas destruíram o Laboratório de Radioecologia que mede a
contaminação do ar na região. O prejuízo, calculado na época em bilhões, talvez
pudesse ter sido evitado se não fôssemos tão burros e preconceituosos.”
“O terceiro equívoco é o
congelamento das culturas indígenas. Enfiaram na cabeça da maioria dos
brasileiros uma imagem de como deve ser o indígena: nu ou de tanga, no meio da
floresta, de arco e flecha, tal como foi descrito por Pero Vaz de Caminha. E
essa imagem foi congelada. Qualquer mudança nela provoca estranhamento. Quando
o indígena não se enquadra nessa imagem, vem logo a reação: “Ah! Não é
mais índio”. Na cabeça dessas pessoas, o “índio autêntico” é o do papel da
carta do Caminha, não o de carne e osso que convive conosco, que está hoje no
meio de nós. O governador Gilberto Mestrinho, por exemplo, para impedir a demarcação
das terras indígenas, veio com esse papo mole, que reforça preconceitos. Ele
disse: “esses aí não são mais índios, já estão de calça e camisa, já estão
usando óculos e relógios, já estão falando português, não são mais índios”. Ele
criou uma nova categoria, desconhecida pela etnologia: os ex-índios. Se essa
lógica funciona, fico me perguntando se o Mestrinho não é, então, um
ex-brasileiro, porque o cotidiano dele está marcado por elementos tomados
emprestados de outras culturas. Aliás, isso acontece com todos nós. Você, por
exemplo, está vestido com jeans, e muita gente usa um tipo de roupa que não foi
inventada por nenhum brasileiro. O computador não é brasileiro, o telefone não
é brasileiro, enfim toda essa parafernália que a gente usa – milhares de itens
culturais presentes no nosso cotidiano - não tem suas raízes em solo
brasileiro. Então, o brasileiro pode usar coisas produzidas por outros povos -
computador, telefone, televisão, relógio, rádio, aparelho de som, luz elétrica,
água encanada - e nem por isso deixa de ser brasileiro. Mas o índio, se desejar
fazer o mesmo, deixa de ser índio?”
“O quarto equívoco consiste em
achar que os indígenas fazem parte apenas do passado do Brasil. Num texto de
1997 sobre a biodiversidade, vista do ponto de vista de um indígena, Jorge
Terena escreveu que uma das consequências mais graves do colonialismo foi
justamente taxar de “primitivas” as culturas indígenas, considerando-as como
obstáculo à modernidade e ao progresso.”
“Por último, o quinto equívoco
é o brasileiro não considerar a existência do índio na formação de sua
identidade. Há 500 anos não existia no planeta Terra um povo com o nome de povo
brasileiro. Esse povo é novo, foi formado nos últimos cinco séculos com a
contribuição, entre outras, de três grandes matrizes: 1. As europeias, assim no
plural, representadas basicamente pelos portugueses, mas também pelos
espanhóis, italianos, alemães, poloneses etc.; 2. As africanas, também no
plural, da qual participaram diferentes povos como os sudaneses, yorubás,
nagôs, gegês, ewes, haussá, bantos e tantos outros; 3. Finalmente, as
indígenas, formadas por povos de variadas famílias linguísticas como o tupi, o
karib, o aruak, o jê, o tukano e muitos outros. Depois, as migrações de outros
povos como os japoneses, os sírio-libaneses, os turcos, vieram diversificar e
engrandecer ainda mais a nossa cultura. No entanto, como os europeus dominaram
política e militarmente os demais povos, a tendência do brasileiro, hoje, é se
identificar apenas com o vencedor – a matriz europeia –, ignorando as culturas
africanas e indígenas. O indígena, no entanto, não foi “’eliminado” nem
“assimilado”. Suas culturas se modificaram da mesma forma que a brasileira, a
portuguesa ou qualquer outra cultura. No entanto, hoje, além de mais de 220
povos viverem falando suas línguas, mantendo organizações sociopolíticas
próprias, o indígena permanece vivo dentro de cada um de nós, mesmo que a
gente não saiba disso.”
Frei Betto é escritor, autor de “Uala, o amor” (infantojuvenil sobre
indígenas e meio ambiente), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org
Frei Betto é autor de 70 livros, editados no Brasil e no
exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org Ali os
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