Marcelo Barros
Nesses dias, a
imprensa ávida por qualquer notícia sensacionalista que legitime denúncias
contra movimentos populares e partidos considerados de esquerda, se deleitou
com imagens e narrativas do que chamaram de invasão de uma Igreja em Curitiba.
Autoridades eclesiásticas e civis protestaram contra o desrespeito ao lugar
sagrado e o assunto está sendo debatido na própria câmara de vereadores da
cidade.
O debate se dá sobre
o fato dos manifestantes terem entrado na Igreja depois da Missa e terem
expressado dentro do templo a denúncia contra o assassinato truculento e cruel de
Moise, jovem congolês, barbaramente torturado e assassinado, em um quiosque na
Barra da Tijuca. Nestes mesmos dias, ocorreu também, no Rio de Janeiro, a morte
de outro negro, baleado por vizinho policial, que o confundiu com um ladrão.
Naquele final de semana, em diversas regiões do Brasil, ocorreram manifestações
de protestos contra esses atos extremos de racismo contra negros. Em Curitiba,
no centro histórico da cidade, o ato se reuniu em frente a uma Igreja, que,
historicamente, pertenceu a uma confraria negra. Depois do horário da missa, no
final da tarde, os manifestantes entraram na Igreja e encerraram ali o seu
protesto pacífico.
Sobre o fato,
podem se fazer várias considerações. Antes de tudo, em termos metodológicos e
estratégicos, organizações populares e partidos progressistas tomaram posições
críticas em relação ao ocorrido. De fato, o grupo que fazia a manifestação não
sofreu nenhuma perseguição, não fugia de nenhuma repressão e não precisava ter
ocupado a Igreja, sem permissão dos responsáveis pelo templo.
Do ponto de
vista institucional, todos sabem que a maioria dos eclesiásticos católicos concorda
que Igrejas sejam usadas para missas de posse de governadores ou prefeitos de
direita. No entanto, considera desrespeito ao lugar sagrado qualquer
manifestação de categorias populares que possa ser vista como sendo de
esquerda.
Em Roma, o papa
Francisco pode considerar prioritário dialogar com movimentos populares e
defender a vida de migrantes africanos, mas essa não é ainda a sensibilidade de
muitos ministros e fieis católicos no Brasil. As pastorais sociais da CNBB e
muitos padres e agentes de pastoral participaram dos atos de protesto e de denúncia
contra o racismo. Muitos religiosos gritaram com as organizações populares que
“vidas negras importam”, mas para muitos cristãos, católicos e evangélicos, esse
assunto parece não fazer parte do anúncio da fé e da missão da Igreja.
Na época da
ditadura militar brasileira, em Recife, estudantes que protestavam contra a
repressão ocuparam uma Igreja no centro da cidade. Assim que soube, o próprio
arcebispo Dom Helder Camara foi para a Igreja e se colocou lá ao lado dos
estudantes até conseguir que eles pudessem sair do templo em segurança. O mesmo
ocorreu em Salvador, BA, onde a Igreja ocupada pelos rapazes e moças foi a
basílica do Mosteiro de São Bento. O abade Dom Timóteo Amoroso Anastácio não
somente abriu as portas da Igreja, como declarou o Mosteiro como espaço de
abrigo e santuário de proteção da juventude. Do mesmo modo, em São Bernardo do
Campo, em 1980, a Igreja Matriz foi abrigo para assembleias dos metalúrgicos em
greve perseguidos pela ditadura.
Atualmente,
embora em outro contexto político, a sociedade tem direito de cobrar dos
responsáveis das Igrejas a coerência profética com o evangelho de libertação. Originalmente,
o Cristianismo não tinha templos e sim Igrejas. Enquanto os santuários se
colocam como locais sagrados, Igrejas significam espaços de assembleia. Quando
o apóstolo Paulo chamou as comunidades às quais escrevia de Igrejas, estava
afirmando que eram assembleias de pessoas não reconhecidas como cidadãs pelo
império, mas que nas comunidades cristãs, podiam se reunir e se manifestar como
assembleias de cidadãos e cidadãs do reinado divino no mundo. Ainda hoje,
quando manifestantes ocupam uma Igreja, de alguma forma, interpelam aos
senhores do templo: Qual é o sentido e a missão da Igreja?
Ao mesmo tempo
que desejamos que os movimentos populares sempre se esmerem por respeitar
educadamente a todos os ambientes e deem exemplo de diálogo com todas as
pessoas com as quais se encontram, pedimos a Deus que os discípulos de Jesus aceitem
retomar o caráter profético da fé cristã.
Mesmo se a
postura do arcebispo e da arquidiocese de Curitiba tem sido, em geral, mais
aberta e solidária, sonhamos com tempos nos quais padres e bispos não somente
não se oponham, como fiquem felizes quando suas Igrejas forem ocupadas
pacificamente por grupos populares que defendem a justiça e a vida para todas as
pessoas humanas e na comunhão com todos os seres vivos.
Marcelo Barros, monge beneditino
e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da
Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br
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