Dom Pedro Casaldáliga
Crer no Deus bíblico, a partir de
Jesus, é necessariamente crer na Santíssima Trindade. O Deus de Jesus, o Deus
cristão, é o Pai e o Filho e o Espírito, a Santíssima Trindade.1
Em Jesus está pessoalmente o Filho do
Pai eterno. Ele é historicamente o Filho unigênito de Deus. E no mistério de
Jesus vive e age historicamente o Espírito eterno do Pai e do Filho.
A unidade comunitária das três pessoas
divinas conflui, se expressa, ama e salva na tensa unidade histórica dessas
duas naturezas que constituem o único Jesus, Cristo Senhor. O Deus de Jesus é,
vive e nos revela, nem é solitário nem é distante; é tanto transcendente como
imanente. É tanto de fé cristã “a história da Trindade como a Trindade na
história”.2 É o Deus-trinamente-consigo-mesmo, que se faz o Deus-conosco. Ele é
Uma comunidade e é a Eternidade-História.
A Santíssima Trindade é a melhor
comunidade, proclamam nossas Comunidades Eclesiais de Base. É fonte, exigência,
e término de toda verdadeira comunidade. A Igreja de Jesus ou é trinitária ou
não é cristã. A espiritualidade cristã é necessariamente trinitária. A
espiritualidade cristã na Igreja e no mundo tem a vocação de tornar presente o
mistério da Trindade dentro dos vaivéns e esperanças da história humana.
A
Trindade é, em si, o princípio e o fim do Reino. O Reino, na terra e no céu, é
a doação efusiva, processual, histórica e trans-histórica da Trindade na
plenificação de vida de seus filhos
e
filhas e da integridade e beleza de sua criação.
A glória da Trindade é a realização do
Reino.
A trinitariedade é nota essencial de
toda verdadeira evangelização, da autêntica Igreja de Jesus e da
espiritualidade que quer ser cristã.
A comunitariedade e a historicidade
dessa Trindade que o Evangelho nos revelou, devem ser anunciadas pela
evangelização, celebradas e “institucionalizadas” na Igreja, e vivenciadas – em
fé, esperança e caridade – por todas as pessoas cristãs e pela comunidade
eclesial inteira.
As atribuições pessoais do Pai, do
Filho e do Espírito devem ser também explicitamente vivenciadas, como tais,
numa verdadeira espiritualidade cristã e com características próprias na
Espiritualidade da Libertação.
Como
o Pai,
que é fonte-mãe da vida, criatividade
inesgotável, acolhida total, origem e regresso de tudo quanto existe...,
os cristãos e cristãs, na América
Latina, devemos desenvolver dentro de nós e em todos os ambientes de nossa
atuação:
- a paixão pela vida e sua promoção,
- a ecologia integral,
- a atitude de compreensão, de
acolhida, de paternidade-maternidade tanto biológica como espiritual, tanto
política como artística,
- a memória de nossas origens e o
sentido da vida e da história.
Como
o Filho,
que é ser humano e ser divino,
o Filho de Deus e um filho de mulher,
a Palavra e o Serviço,
o Eleito e o sem-rosto,
o pobre do presépio e o proclamador das
bem-aventuranças,
o aniquilado e o Nome acima de todo
nome,
a compaixão e a ira de Deus,
Morte e Ressurreição...,
nós devemos integrar harmonicamente,
superando toda dicotomia:
- a filiação divina e a fraternidade
humana universal,
- a contemplação e a militância, a
gratuidade e a práxis, o anúncio e a construção do Reino,
- a dignidade dos filhos/filhas de Deus
e o “opróbrio de Cristo”,
- a infância espiritual e a “perfeita
alegria”,
- a loucura da cruz e a segurança de
saber em quem confiamos,
-
a misericórdia e a profecia, a paz e a revolução,
- o fracasso e a vitória da Páscoa.
Como
o Espírito,
que é o Amor interpessoal do Pai e do
Filho e “o Amor que está em todo amor”;
- a interioridade insondável do próprio
Deus e de todos os que o contemplam, e ao mesmo tempo a dinamização de tudo o
que é criado, vive, cresce, se transforma;
- o “Pai dos pobres”, o Consolador dos
aflitos, o go'el dos marginalizados, o incitador da liberdade e de toda
libertação e o Advogado da justiça do Reino;
- o Óleo da Missão, o Júbilo da Páscoa
e o Vento de Pentecostes;
- o testemunho na boca e no sangue dos
mártires; o que levanta, reveste e congrega os ossos ressequidos e as utopias
sufocadas...
nós,
- em contemplação militante e em
libertação evangélica,
- em conversão permanente e em profecia
diária,
- em ternura, em criatividade e em
parresia,
- levados por esse Espírito que já é
para sempre o Espírito do Ressuscitado,
assumiremos:
- todas as causas da Verdade, da
Justiça e da Paz,
- os direitos humanos pessoais e o
direito dos povos à alteridade, à autonomia e à igualdade,
- os processos da sociedade alternativa
e as fecundas tensões de uma Igreja que sempre há de ser impelida a se
converter,4
- a herança de nossos mártires,
- o diário amanhecer da utopia, acima
de todos os ocasos, e o Final da História, contra o iníquo “fim da história”.
Na América Latina a Espiritualidade da
Libertação faz seu “o lema dos reformadores socialistas ortodoxos da Rússia no
final do século XIX: ‘a Santíssima Trindade é nosso programa social”’,5 sem
deixar de ser o programa total de nossa fé. Porque a Trindade não é só
mistério, é “o programa”, a Trindade é o lar e é o destino: dela viemos, nela
vivemos, para ela vamos.
Um pintor latino-americano poderia
transpor muito bem, em figuras e símbolos nossos, o ícone da Trindade de Andrej
Rublev: os Três são iguais em comunhão de Amor; os Três estão a caminho, com o
báculo na mão, porque entraram na história humana; os Três estão sentados à
mesa partilhando o alimento da Vida; os Três deixam o espaço aberto para
acolher na própria comensalidade a todos os caminhantes dispostos a
compartilhar.
1.
Ver o volume dedicado à Trindade nesta mesma coleção: L. BOFF. A Trindade e a
sociedade. Petrópolis, Vozes, 1987.
2.
Bruno FORTE. La Trinidad como historia. Salamanca, Sígueme, 1988.
3.
Como o irmão Charles de Foucald, os irmãozinhos e irmãzinhas de Jesus e
milhares de sacerdotes, religiosas e religiosos, leigos e leigas na América
Latina uniram maravilhosamente à espiritualidade da libertação essa aspiração
tão humanitária e tão evangélica de ser “Irmãos e irmãs universais”.
4.
A Igreja “semper reformanda”: UR 6; GS 43; LG 7,9,35.
5.
L. BOFF. Trinidad. Em: Mysterium Liberationü, I, p. 516
Pedro
Casaldáliga e José María Vigil, Espiritualidade da Libertação, Pág. 104...
Desenho:
Cerezo Barredo
#Casaldàliga!
#PedroCasaldáligaPresente!
#NãoQueremosGuerraQueremosPaz!
Nenhum comentário:
Postar um comentário