Eduardo Hoornaert.
Celebrou-se a vitória eleitoral de
Lula, no dia 30 de outubro passado. Mas, todos e todas sabemos que ele ganhou
por um triz e que a ameaça bolsonarista perdura. Não poucos analistas se
limitam a qualificar o bolsonarismo de fascismo e autoritarismo. Será
suficiente? Isso toca na raiz da questão? Não há de se cavar mais fundo? Neste
texto, apresento alguns pontos para a reflexão. E, como sempre, recorro a
observações de ordem histórica.
O dia 20 de fevereiro de 1933 na
Chancelaria do Reich alemão.
O dia 20/02/1933, na Alemanha,
especificamente em Berlim, é uma memória raramente evocada. Contudo, trata-se
de um dia de grande significado para quem quer ir mais fundo em problemas que
nos afligem hoje.
Naquele dia, 24 senhores entram no
edifício da Chancelaria alemã em Berlim, a convite de German Goering, ministro
do Chanceler Adolf Hitler. Alguns nomes nos são conhecidos: Carl von Siemens (conglomerado
industrial que abrange diversos setores), Wilhelm von Opel (marca de um automóvel
de grande qualidade), Gustav Krupp (aço, armas, munições), Albert Vögler (munições).
Esses senhores, com seus pares, representam, pois, as mais poderosas empresas
industriais e comerciais do país: BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens,
Allianz, Telefunken. Goering toma a palavra e explica que a proposta de
‘redenção da Alemanha’ necessita de dinheiro, muito dinheiro. Se não, fracassa.
E vai direto ao que interessa: os 24 senhores são convidados a fazer doações.
Depois, Hitler fala e diz mais ou menos o mesmo. Por fim, os industriais formam
um fila, se aproximam do guichê e fazem suas doações (Éric Vuillard, L’ ordre du jour, Actes Sud, 2017).
Eis um daqueles raros momentos em que
a história expõe suas vísceras. Fica claro: Hitler, sem o apoio financeiro
desses exatos 24 senhores, e do que eles representam, não pode prosperar.
Deu no que deu. Hitler fracassa. O
estranho é que, após o clarão de veracidade que se abriu em 20/02/1933, a
pesada cortina de mentira, circunlocução e ocultamento baixa de novo sobre a
evidência da colaboração fundamental das grandes empresas alemães, que entre
1933-1945 não hesitaram em recorrer a mão de obra escrava (presos dos campos de
concentração) para aumentar seus lucros. Em 1945, enquanto Hitler desce aos
infernos, seus financistas sobem aos céus. Não são cobrados. Pelo contrário, no
após-guerra, no período de reconstrução da Alemanha, ganham aplausos de todo
canto e experimentam um crescimento sensacional. A empresa Volkswagen, por
exemplo, criada no reboque do combinado em 20/02/1933, faz rodar seus carros pelas
estradas do mundo.
Um ataque à inteligência.
O exemplo que acabo de evocar tem
muito a ver com a atualidade. O projeto Hitler 1933 e o projeto Bolsonaro 2018-22
têm, pelo menos, um ponto em comum: a aliança com o grande capital, com o
anseio irresponsável por lucro acima de tudo. E, digamos logo a palavra: com capitalismo.
O que precisa compreender, pois, é que o capitalismo constitui um ataque à
inteligência humana.
Os 24 senhores alemães, de
20/02/1933, no íntimo, desprezam Hitler, mas enxergam nele uma oportunidade
para aumentar seus negócios e ganhar mais dinheiro. O mesmo se diga dos mega-empresários
brasileiros. Eles desprezam Bolsonaro, mas não hesitam em apoiá-lo politicamente.
Por uma razão óbvia: com ele há como ganhar mais dinheiro que com Lula. Acontece
que esses grandes empresários esquecem uma coisa: o capitalismo se vinga deles,
tirando-lhes a lucidez e levando-os a um labirinto donde não conseguem mais
sair.
Para esclarecer esse ponto, recorro
ao pensador sul-coreano Byung-Chul Han, que nasceu em Seul, Coreia do Sul, em
1959, e foi para a Alemanha, onde ganha hoje uma audiência e uma visibilidade crescentes.
A tese de Byung-Chul Han,
bastante inovadora, é que o capitalismo ataca nossa capacidade de refletir.
Cito aqui um texto seu, tirado de seu livro Capitalism and the Death Drive (Capitalismo e pulsão de morte).
O que costumamos chamar ‘progresso’ é na realidade um crescimento
tumoral, uma proliferação cancerosa no organismo social. Esses tumores passam
por metástases sem fim e crescem com uma inexplicável energia mortífera. Num
determinado ponto, o crescimento capitalista não é mais produtivo, mas antes
destrutivo. O capitalismo, desde bastante tempo, ultrapassou esse ponto. Suas
forças destrutivas não só causam catástrofes ecológicas e sociais, mas provocam
igualmente colapso mental. A compulsão destrutiva causa, ao mesmo tempo,
afirmação de si e destruição de si. Nós nos aperfeiçoamos para a morte. Pois, competição
brutal termina em destruição. Ela produz uma frieza emocional e indiferença,
tanto diante de outros quanto diante de si mesmo. As
consequências devastadoras do
capitalismo fazem pensar que, aqui, uma ‘pulsão de morte’ esteja atuando.
Inicialmente, Freud hesitou em introduzir ‘pulsão de morte’ em suas análises,
mas, com o tempo, ele admitiu que ‘não podia deixar de considerá-la’, e ela se
tornou gradativamente central em seu pensamento. Hoje fica impossível pensar
sobre capitalismo sem tomar em consideração a pulsão de morte.
Eu mesmo abordei brevemente esse tema
num texto recentemente publicado pelo Blogger, intitulado ‘Pulsão de vida e
pulsão de morte no Brasil de hoje’. O
capitalismo provoca doença no sistema mental humano. Uma doença que pode levar
à morte (de outros e de si mesmo). Os textos de Byung-Chul Han são um chamado à
resistência frente a fenômenos como a produtividade sem limites e a servidão
consentida, realidades contemporâneas que estão nos deixando doentes.
Embora a obra de Byung-Chul Han já seja aclamada
em ambientes intelectuais, ainda não se popularizou o suficiente.
Cito mais um trecho de sua autoria: Quem
fracassa na sociedade capitalista do rendimento, se acha responsável por isso e
se envergonha, em vez de questionar a sociedade ou o sistema. É nisso que
consiste a especial inteligência do regime em que vivemos: na auto-exploração.
A pessoa direciona a agressão a si mesma. Essa auto-agressividade não
transforma o explorado em revolucionário, mas em depressivo. Depressivo e potencialmente agressivo.
Por que os
caminhoneiros, que, logo depois das eleições do dia 30 de outubro pp.,
provocaram uma parada ao longo de grandes estradas brasileiras, falam com tanto
aprumo que ‘não podemos aceitar o resultado das urnas, porque tudo foi
manipulado’, ‘lutamos pela democracia’, ‘lutamos por nossas famílias’, ‘combatemos
a imoralidade’, ‘não apoiamos um condenado pela justiça’, ‘somos democratas’,
‘somos de Jesus’, ‘somos contra a imoralidade’, ‘defendemos nossas crianças’,
‘os esquerdistas são bandidos’? Frases que podem ser questionadas, uma por uma,
mas que passam por ‘verdades eternas’, na defesa de ‘Deus, família, liberdade e
propriedade’.
A máscara do
progresso.
O que os
caminhoneiros em greve parecem não perceber, é que o capitalismo costuma andar
mascarado. E que uma de suas máscaras mais usadas e a do ‘progresso’. Aqui vou
de novo para a história.
Em 1949, no primeiro discurso oficial
da história transmitido pela televisão, acompanhado por milhões de pessoas ao
mesmo tempo, o Presidente americano Harry Truman (1945-1953) passa da clássica
narrativa de um Ocidente que tem a missão de civilizar e evangelizar (leia:
colonizar) o Sul Global, para um discurso novo. Ele diz que, doravante, os
Estados Unidos e a Europa Ocidental (os países ricos) recebem a missão de se
tornar modelos para o resto do mundo em termos de ajuda humanitária, caridade,
altruísmo e generosidade. É, em germe, a narrativa progressista, desenvolvimentista.
Truman distancia-se do discurso colonialista, mas de maneira nenhuma fala em
justiça entre os países do Norte e suas antigas colônias. Não toca no nexo
causal entre a riqueza do Norte e a pobreza do Sul. Ele fala de uma nova missão
‘divina’, a substituir o domínio colonial de séculos. Uma missão de
generosidade e abertura. O Norte tem de ‘impregnar’ o mundo de ajuda
humanitária e de democracia. O discurso corresponde ao estado dos espíritos
após da Segunda Guerra Mundial. Apresenta-se como moderno e atrativo. Ganha
corações e mentes. Todo mundo fala em desenvolvimento e progresso. Expressões
que, até hoje, não desapareceram do vocabulário.
Um resultado concreto da fala de
Truman é a criação da Organização Mundial do Comércio (WTO em inglês), baseada
numa distinção entre ‘países desenvolvidos’ e ‘países subdesenvolvidos’ (ou, de
modo mais elegante: ‘em desenvolvimento’). Os Estados Unidos constituem o país
‘desenvolvido’ por excelência. Representando hoje apenas 4,2 % da população
mundial, pode tomar a dianteira, pois é ‘desenvolvido’. O mesmo se diga dos G7,
os sete países mais ‘desenvolvidos’ do mundo: EEUU, Inglaterra, Canadá,
Alemanha, França, Itália, Japão, embora só representem 7 % da população
mundial. Subdesenvolvidos (ou ‘em processo de desenvolvimento, portanto afastados
de organismos decisórios) são os BRICs (China, Índia, Rússia, África do Sul,
Brasil), que representam 40 % da população do mundo. Ninguém percebe o absurdo
da classificação, feita por Truman, pois logo se justifica: se o Sul Global não
se ‘desenvolve’, é porque lida com má administração de recursos públicos, corrupção, organização insuficiente e
influência de ideologias perversas (leia: comunismo). Criam-se termos que circulam
pelo mundo: ‘primeiro mundo’, ‘terceiro mundo’, ‘mundo desenvolvido’, ‘mundo
subdesenvolvido’. Evidências
estatísticas a demonstrar que o esquema de Truman não corresponde à realidade, como
a que apresentei acima, são contornadas ou camufladas.
Essa camuflagem, por si só, já denota
distúrbios mentais inquietantes. Não se
mostra que países ricos se distanciam sempre mais de países pobres; que um
minúsculo grupo de riquíssimos controla a economia, a política e a religião;
que a maioria da população fica sem voz e
sem vez. O tema da igualdade de direito entre todos os seres humanos é
cuidadosamente afastado dos debates. Pois o mundo é desigual ‘por natureza’
(uma tese já defendida pelo velho Aristóteles) e, portanto, falar em igualdade
entre países é algo subversivo. Pois a pobreza é um dado da natureza (o ‘servus
ex natura’ da doutrina aristotélica). O discurso se baseia numa interpretação
social e política do evolucionismo de Darwin: na ‘struggle for life’ vencem os
mais fortes, desfalecem os mais fracos.
Nas mesas de negociação volta,
invariavelmente, a mesma recomendação: que os países ‘desenvolvidos’ deem as
mãos aos ‘países em desenvolvimento’. Uma recomendação que, concretamente,
resulta em contribuições monetárias. Propõe-se que os países ‘desenvolvidos’
reservem uma porcentagem dos impostos para organizações oficiais que se ocupem
em fazer chegar o dinheiro ao seu devido destino e encontrem a melhor
aplicação. Isso significa, numa mentalidade desenvolvimentista: mais estradas,
mais automóveis, mais viadutos, mais aviões, mais aeroportos. Dinheiro tem de
rolar. Milton Friedman, o papa do desenvolvimentismo, diz em 1970: temos de combater o subdesenvolvimento por
meio do mercado. Outro ícone da época, Robert McNamara, faz eco: a agenda dos pobres postula transferências
monetárias. Em que direção? Estudos mostram que, em troca de cada dólar
doado ‘para o desenvolvimento’, 24 dólares vão para os países ricos.
Não somos
imunes.
Ninguém
está imunizado contra o ‘vírus’ capitalista. Pois ele atua nos interstícios da
vida política, social e cultural. Todos e todas corremos o perigo de não
enxergar o outro, a outra. E isso é sinal de doença mental.
O ‘outro’ é um conceito em crise. Quanto mais iguais somos, mais a produção
capitalista aumenta: ‘Agro é top!’. O único lema: ‘igualar’. Quando uma
notícia ‘viraliza’ e enche os celulares, aumenta o poder dos ‘influenciadores’.
O vírus se espalha por meio do desejo de pertencer a um coletivo que marche
em uníssono. Pois a ‘diferença’
é contrária aos objetivos do capitalismo. Todos e todas com seus smartphones.
Sem isso, o mercado é prejudicado. Isso leva a um conformismo radical, uma enorme
passividade, que reduz o ser humano à condição de cliente ou de produtor. Eis
uma realidade que atinge a todos e todas, que sejamos bolsonaristas ou
lulistas. Ninguém está imune.
Uma luz que nos vem do passado: Bandung
1955.
Uma luz, num passado bastante
distante, brilha no horizonte. Refiro-me ao ‘Encontro Internacional sobre Desenvolvimento’, realizado em Bandung,
Indonésia, entre 18 e 24 abril 1955, do qual participaram representantes de 29
países da Ásia e da África (A América Latina não participou). Bandung 1955 é um
sopro de pensamento saudável em meio de um mundo gradativamente entregue a
doenças mentais. Após 67 anos, Bandung continua na frente, pois – pelo que me
consta – não se realizaram outras iniciativas internacionais com a mesma
clareza nos posicionamentos.
A
originalidade desse encontro consiste numa inversão total de perspectiva em
relação a conflitos mundiais, expressa nas seguintes palavras: o problema do mundo não consiste na oposição
entre o Ocidente e o Oriente, mas entre o Norte e o Sul. A contradição do mundo
não se origina na oposição política entre um Oeste capitalista e um Leste
socialista (como divulga a grande imprensa ao lançar o tema da ‘guerra fria’),
mas da exploração econômica do Sul negro ou mestiço, moreno e pobre, pelo Norte
branco, rico e poderoso.
A linguagem
do Encontro na Indonésia é um sinal de inteligência saudável em meio a um
universo de meias-verdades, circunlocuções, diplomacias e hipocrisias. Enfim,
em meio a sinais claros de distúrbios mentais.
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