LEONARDO BOFF
Os fatos são sempre feitos. São feitos a partir de virtualidades
presentes na realidade que surpreendentemente ou por causas previsíveis,
acabam vindo à existência.
Nas eleições presidenciais deste ano o improvável aconteceu. Alguém que
as Escrituras chamam de o “inimicus homo”, o
homem do mal, no afã de se perpetuar no poder usou todos os meios legítimos e
principalmente os ilegítimos para conseguir seu objetivo. Ele possui as
características do “anti-cristo” que para o Novo Testamento o
“anti-cristo” é mais um espírito do que uma pessoa concreta. Pode ganhar corpo
num movimento e no seu líder, mas é, fundamentalmente, uma realidade inimiga de
tudo que é vida e de tudo o que é sagrado.
A característica do “anti-cristo” é arrogar-se o lugar de Deus. É
sentir-se para além do bem e do mal. E então usa a ambos,mas
principalmente o mal: promove a mentira, difunde fake news, estimula a calúnia,
incentiva a violência real, assassinando, ou simbólica, propalando difamações:
tudo o que provém do transfundo mais ancestral de nossas sombras irrompe com
toda a desfaçatez.
O nosso país viveu durante todo um governo sob o espírito do
“anti-cristo”.Nunca se viu em nossa história tanta maldade, tanta mentira
estabelecida como método de governo, tanta insensibilidade exaltada como
virtude, tanta proclamação da maledicência como forma de comunicação oficial. E
com disse São Paulo em sua Epístola aos Romanos, “aprisionaram a verdade sob a
injustiça”(1,18).
É próprio do espírito do “anti-cristo” ocultar-se no mundo do obscuro,
das zonas inimigas da luz e destroçar todos os traços de transparência. É
próprio também deste tipo de espírito arrebanhar pessoas que se deixam fascinar
pela brutalidade dos comportamentos, pela insensatez das decisões e pela
violência infligida aos mais fracos, aos covardemente postos à margem como os
pobres, as mulheres, os negros, os indígenas e aqueles que, por si só,não
conseguem se defender. Dizem exultantes: “é isso mesmo;, tem que se usar de
violência; é bom ser grosso e grotesco”; “é isso que tem que ser”. E proclamam
aquele com quem se sentem representados como “mito” ou o “nosso herói”.
Mas a experiência secular humana tem mostrado que a noite nunca perdura
por todo o tempo, que não há tempestade que, num dado momento, não cesse e dê
lugar a alegria do brilho do sol. Pois assim ocorreu em nosso país. Quem tinha
a absoluta certeza de triunfar, até por pretensa promessa divina, se viu, no
último momento, derrotado. O “mito” se desfez com a rapidez de um pequeno
bloco de gelo, simplesmente se sentiu um morto-vivo, como que escondido em sua
própria sepultura. As palavras morreram-lhe na garganta. As lágrimas nunca
antes choradas, quando era digno chorá-las, não paravam de escorrer pelo rosto
entumecido.
Comprova-se o que história irreversivelmente tem revelado: o
improvável acontece. Por isso temos que contar com o improvável e com o
inconcebível. Eles pertencem à história. Quem usou de tudo, mas de tudo mesmo,
até do mais sagrado que é o espaço do Religioso, não impediu que o improvável
irrompesse e o derrotasse surpreendentemente.
Demos uns exemplos. O mais improvável dos USA era que um negro chegasse,
um dia, à presidência da república. E Obama chegou. Que um
prisioneiro político, com anos de prisão sob trabalhos forçados, também negro,
chegasse a ser o presidente da África do Sul, Mandela. Seria totalmente
improvável que alguém vindo “do fim do mundo” praticamente desconhecido, fosse
eleito ao supremo pontificado, como o Papa Francisco. Era absolutamente
improvável que uma jovem camponesa de 17 anos chefiasse um exército, como Joana
d’Arc, vencendo parte do exército inglês na guerra dos cem anos.
Portanto,o improvável existe e pode acontecer. Nenhum fato realiza todas
as possibilidades escondidas dentro dele.Inúmeras virtualidades estão lá dentro
e quando a história madura ou o mal chegou ao seu paroxismo e tem que ser
vencido. Então o improvável irrompe vitorioso. Contra todas as expectativas o “inimicus homo” perdeu. O improvável o derrotou.
A Brasil voltou a respirar um pouco de ar menos contaminado pelo veneno
da injustiça, da covardia e da mentira.
O improvável realizado nos leva a sonhar com os olhos acordados.Quem tem
fome pode ter a certeza que vai comer, quem está desempregado sabe que vai poder
trabalhar. Quem suportou todo tipo de injúria e de humilhação se sente
protegido pela lei que vai valer para todos. E a esperança
esperante,finalmente, voltou para nos possibilitar um destino mais auspicioso
que nos propicie viver com a paz possível, concedida aos filhos e filhas dos
bíblicos Adão e Eva.
Leonardo Boff escreveu A busca da justa medida: o
pescador ambicioso e o peixe encantado, Vozes 2022.
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