Leonardo Boff
A história de ser humano na
Terra, em grande parte,se resume num permanente conflito contra o ambiente.
Esse processo foi levado tão longe que o ser humano moderno moveu uma
verdadeira guerra contra a Terra em todos as suas frentes: no solo, no
subsolo, no ar e no mar, sempre na perspectiva de saquear e extrair mais e mais
vantagens.Fala-se em círculos científicos que a ação humano sobre a Terra
como um todo fundou uma nova era geológica, o antropoceno. Significa: os
danos à natureza não vêm de fora, mas da própria ação pensada e orquestrada do
ser humano no seu afã de extrair mais e mais benesses para a sua vida. Tal fato
teve como consequência o desequilíbrio do planeta que reage enviando-nos mais
calor, eventos extremos como enchentes, tufões e secas além de uma gama
crescente de vírus, muitos deles letais como o Coronavírus.
O fato é que perdeu-se a
perspectiva do Todo. Ficou-se somente com a parte. Ocorreu uma verdadeira
fragmentação e atomização da realidade e dos respectivos saberes. Sabe-se
cada vez mais sobre cada vez menos.Tal fato possui suas vantagens mas também
seus limites. As vantagens, especialmente, na medicina que conseguiu
identificar os vários tipos de enfermidades e como tratá-las. Mas importa
recordar que a realidade não é fragmentada. Por isso os saberes sobre ela
também não podem ser fragmentados.
Dito figurativamente: a
atenção se concentrou nas árvores, consideradas em si mesmas, perdendo-se a
visão global da floresta. Pior ainda, deixou-se de considerar as relações de
interdependência que todas coisas guardam entre si. Elas não estão jogadas
ai ao esmo, uma ao lado da outra sem as necessárias conexões entre elas que
lhes permitem, solidariamente viver, se auto-ajuda e juntas co-evoluir.
Vejamos as árvores: elas
possuem uma linguagem própria, diversa da nossa, fundada na emissão de
sons. Elas falam mediante odores que emitem e a produção de toxinas que enviam
para as outras. Entre as iguais estabelecem relações de reciprocidade e
colaboração. Com outras diversas, não raro, fazem verdadeiras batalhas
químicas, no afã de cada uma ter mais acesso à luz do sol ou a nutrientes do
solo. Mas sempre é feito sem excesso, numa medida justa de tal
forma que o conjunto das árvores formam uma rica e diversa floresta.
No caso humano, perdemos
estes equilíbrio e justa medida: erodiu-se aquela corrente que relaciona
todos com todos, chamada de Matriz Relacional. Desconsiderou-se
a vastíssima rede de relações e de interconexões que envolvem o próprio
universo e todos os seres existentes. Nada existe fora da relação. Tudo está
relacionado com tudo em todas as circunstâncias. Essa é a realidade de todas as
coisas existentes, no universo e na Terra, das galáxias mais distantes à nossa
Lua, até às ervas silvestres. Elas têm seu lugar e sua função
no Todo.
Numa elegante formulação do
Papa Francisco em sua encíclica Laudato si: sobre o cuidado da Casa Comum
(2015) se afirma:
“Tudo está
relacionado e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos, como irmãos e irmãs,
numa peregrinação maravilhosa que nos une com terna afeição,ao irmão Sol, à
irmã Lua, ao irmão rio e à irmã e Mãe Terra…o Sol e Lua, o cedro e a
florizinha, a águia e o pardal só coexistem na dependência uma das outras para
se completarem mutuamente no serviço uma das outras”(n.92;86).
Se realmente todos estamos
entrelaçados, então devemos concluir que o modo de produção capitalista,
individualista, visando o maior lucro possível à custa da exploração da força
de trabalho e da inteligência humana e especialmente das riquezas naturais sem
se dar conta das relações existentes entre todas as realidades, poluindo
o ar, contaminando as águas e envenenando os solos com pesticidas, está
na contramão da lógica da natureza e do próprio universo que ligam e religam
tudo com tudo, constituindo o esplendoroso grande Todo.
A Terra nos criou um lugar
amigável para viver mas nós não estamos nos mostrando amigáveis para com ela.
Ao contrário, a agredimos sem parar a ponto de ela não aguentar mais e começar
a reagir, numa espécie de contra-ataque. Este é o significado maior da intrusão
de toda uma gama dos vírus, especialmente o Covid-19. De cuidadores da natureza
(Gênesis 2,15) nos fizemos em seu Satã ameaçador.
Ate o advento da
modernidade entre os séculos XVII-XVIII, a humanidade se entendia normalmente
com parte da Mãe Terra e de um cosmos vivente e cheio de propósito. Percebia-se
ligado ao Todo. Agora a Mãe Terra foi transformada num armazém de recursos
e num baú cheio de bens naturais a serem explorados. Nessa compreensão que
acabou por se impôr, as coisas e os seres humanos estão desconectados entre si,
cada qual seguindo um curso individual.
A ausência do sentimento de
pertença a um Todo maior, o descaso das teias de relações que ligam todos os
seres, tornou-nos desenraizados e mergulhados numa profunda solidão. Somos
possuídos por um sentimento de que estamos sós no universo e perdidos, coisa
que uma visão integradora do mundo, que existia anteriormente, o impedia. Hoje
nos damos conta de que devemos estabelecer um laço de afetividade para com a
natureza e para com os seus diversos seres vivos e inerte, pois possuímos a
mesmo código genético de base, portanto, somos irmãos e irmãs, (árvores,
animais mas também montanhas, lagos e rios). Sem não colocarmos coração em
nossa relação – daí a razão cordial – dificilmente salvaremos a diversidade da
vida e a própria vitalidade da Mãe Terra.
Por que fizemos esta
inversão de rumo? Não será uma única causa, mas um complexo delas. Mas a mais
importante e danosa foi ter abandonado da assim chamada Matriz Relacional. Vale
dizer, a percepção da teia de relações que entrelaçam todos os seres. Ela nos
conferia a sensação de sermos parte de um Todo maior, de que estávamos
inseridos na natureza como parte dela e não simplesmente como seus
usuários e com interesses meramente utilitaristas. Perdemos a capacidade de
encantamento pela grandeza da criação, de reverência face ao céu estrelado e de
respeito por todo tipo de vida. Caso não mudarmos, poderá se realizar o que o
Papa Francisco advertiu na encíclica Fratelli tutti:”estamos no mesmo
barco:ou nos salvamos todos ou ninguém se salva (n.32).”Não somos chamados
a ser os agentes de nossa própria destruição mas a ser a melhor floração do
processo cosmogênico.
Leonardo Boff escreveu com
o cosmólogo Mark Hathaway, O Tao da libertação:explorando a ecologia de
transformação, Vozes 2010/ Orbis Books, N.York 2010 prefácio de F. Capra.
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