Desde 1964 a Igreja do Brasil promove durante a quaresma uma Campanha da
Fraternidade. A quaresma é um tempo marcado pelo chamado à conversão: mudança
de vida (mentalidade, sentimento, atitude), volta ao Senhor, adesão ao seu
Evangelho. Essa conversão é tanto pessoal (conversão do coração), quanto social
(transformação da sociedade). Para ajudar na vivência do espírito quaresmal, a
Igreja convida a intensificar a prática da oração, do jejum e da caridade. E
para que a caridade não se reduza a uma ação meramente assistencial, a Igreja
do Brasil, retomando a doutrina social da Igreja, promove uma Campanha da Fraternidade
que trata de algum problema grave da sociedade que exige mudança e que
compromete todas as pessoas e instituições.
Pela terceira vez a Companha da Fraternidade trata do problema da fome,
chamando atenção para um dos pecados mais graves de nossa sociedade e
convidando os cristãos e o conjunto da sociedade a se empenharem na superação
dessa injustiça e desse crime que é um verdadeiro pecado que clama ao Céu:
“Repartir o pão” (1975); “Pão para quem tem fome” (1985); “Dai-lhes vós mesmos
de comer” (2023).
A fome não é um dado natural. Não é fruto do acaso ou do destino. Não é
mera consequência de preguiça ou comodismo pessoal. Nem muito menos é vontade
ou castigo de Deus. Ela é um produto social. É resultado das tremendas
injustiças e desigualdades que caracterizam nossa sociedade e fazem com que uns
tenham tanto e outros tenham tão pouco ou quase nada. A situação atual do Povo
Yanomami em Roraima é o exemplo mais vivo e dramático da injustiça e
desigualdade de nossa sociedade: Fruto do egoísmo e da cobiça de garimpeiros,
madeireiros e empresários; fruto de um modelo econômico que sacrifica vidas
humanas e toda natureza no altar do deus-mercado/lucro; fruto da indiferença
social, da cultura do consumismo e da busca de enriquecimento a qualquer preço;
fruto da cumplicidade de políticos e governos genocidas que fecham os olhos
diante desses crimes ou até mesmo estimulam essas práticas criminosas.
Mas a situação do povo Yanomami não é um fato isolado. O drama da fome
está presente ao longo da história do Brasil. E é a expressão mais cruel e
perversa do modelo capitalista de sociedade que implantou aqui ao logo de mais
de 500 anos. Uma série de políticas públicas desenvolvidas na primeira década
do século reduziu bastante o drama da fome no Brasil, fazendo com que o país
saísse do mapa da fome em 2014. Mas o desmonte progressivo dessas políticas a
partir de 2016, agravado com a pandemia da Covid-19, fez com que o Brasil
voltasse ao mapa da fome.
Os dados são alarmantes: 33 milhões de pessoas passando fome (15,5% de
toda população ou o equivalente à população das cidades de São Paulo, Rio de
Janeiro, Brasília, Salvador, Fortaleza, Belo Horizonte e Manaus); mais de 125
milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar (58,1% de toda
população). Isso é bem mais grave nas regiões Nordeste (21%) e Norte (27%) e na
zona rural (18,6%). E atinge sobretudo pessoas pretas ou pardas e famílias
chefiadas por mulheres. Em março de 2020 estimava-se cerca de 222 mil pessoas
em situação de rua e esse número cresceu assustadoramente na pandemia, como se
pode ver em qualquer grande cidade.
Essa situação é muito mais escandalosa e criminosa se considerarmos que
não falta alimento no Brasil. Aliás, o país bate recordes anuais na produção
para exportação de milho, soja, trigo, carne etc. A fome no Brasil, vale
repetir, é fruto da injustiça e da desigualdade social. É um pecado mortal que
clama ao céu! E pode ser eliminada com a solidariedade de todos e com vontade e
decisão políticas. Como tantas vezes repetiu o presidente Lula “é preciso
colocar o rico no imposto de renda e o pobre no orçamento”. Precisamos lutar
para que isso se torne realidade.
A ordem de Jesus aos discípulos diante da multidão “Dai-lhes vós
mesmos de comer” (Mt 14, 16) ecoa com muita força entre nós, sobretudo nesse
tempo quaresmal em que somos chamados à conversão. Certamente, nenhuma pessoa
ou comunidade pode resolver o problema. Mas cada um pode compartilhar um pouco
do que tem e cada comunidade, grupo, pastoral ou movimento pode se organizar
para ajudar a superar essa situação: doando cesta básica; ajudando pessoas a
desenvolverem alguma atividade produtiva; promovendo feiras da agricultura
familiar e economia solidária; exigindo dos governos a compra dos produtos da
agricultura familiar; defendendo os programas de transferência de renda como
“bolsa família” e “bolsa catador”, a reforma agrária e políticas públicas de
saúde (SUS), educação, moradia…
Isso é questão de humanidade e justiça social!
Isso é questão de fé e critério de salvação ou de condenação!
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