Em
agosto serão completados sessenta anos que um homem, em Washington, capital dos
Estados Unidos, país mais poderoso do mundo, fez um discurso. O homem era
negro. E tinha um sonho. Liderava um grupo de homens e mulheres que aumentava a
cada dia e se convertia em multidão. Organizava eventos e marchava silenciosa e
pacificamente em protesto contra a violência racial e o desrespeito aos
direitos humanos em seu país. Chamava-se Martin Luther King Jr.
Quando esse pastor batista e doutor em Teologia começou sua
caminhada em prol da igualdade racial e da paz, o racismo em seu país era lei e
não crime. Uma lei que cavava uma fenda profunda na sociedade estadunidense,
mantendo os negros separados dos brancos nos transportes públicos, nas
instituições de ensino, nos restaurantes, nos banheiros. O sonho do pastor
negro era que essa discriminação tivesse um fim de forma pacífica e não
violenta.
Na origem desse sonho de paz e liberdade está o gesto de uma
mulher: Rosa Parks, aquela que um dia, ao voltar do trabalho em um ônibus,
sentada na parte do veículo proibida aos negros, recusou-se a ceder seu lugar a
um homem branco. Foi presa e penalizada, mas seu gesto de desobediência fez com
que cinquenta líderes da comunidade afro-americana, chefiados pelo então quase
desconhecido pastor Martin Luther King Jr., reagissem à violência contra ela
cometida.
O movimento organizou e deflagrou um boicote de 381 dias ao
sistema segregacionista de ônibus do Alabama. A partir daí seguiu-se a luta dos
negros norte-americanos contra a segregação e pelo respeito aos direitos, do
qual a estrela foi o Pastor King., que se tornou um ícone da luta pelos
direitos civis nos Estados Unidos e ganhou o Prêmio Nobel da Paz anos depois.
Sempre reconhecido àquela que havia sido a agente detonadora de seu movimento,
Martin Luther King Jr. dizia: "Na verdade, ninguém pode compreender a ação
da Sra. Parks, a menos que realize que, eventualmente, a taça da capacidade de
suportar transborda e a personalidade humana grita: "Eu não posso mais aguentar".
Em 1963, o pastor negro continuava seu movimento, reivindicando a
igualdade de direitos de todos, o fim da discriminação racial e a paz. Suas
marchas eram cada vez maiores em volume e em consistência. Naquele ano a marcha
sobre Washington, a capital do país, convocava 250 mil pessoas.
Ali Luther King falou de seu sonho. O sonho da igualdade e da
liberdade. Disse sonhar que um dia os filhos dos descendentes de escravos e dos
descendentes de donos de escravos pudessem sentar-se juntos à mesa da fraternidade.
O pastor vivia um momento difícil, com ameaças, frustrações. Sentia o
conflito que se armava ao redor dele. Mas sonhava para as gerações futuras.
Sonhava com a possibilidade de que seus quatro filhos pudessem viver em uma
nação onde seriam julgados pelo caráter e não pela cor da pele. O sonho de
Luther King era recheado de liberdade e comunhão. Sonhava em fazer chegar mais
rápido “o dia em que todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e
gentios, protestantes e católicos, poderão dar-se as mãos e cantar...” Sonhava
o sonho que sonhou também Jesus de Nazaré e tantos profetas antes dele e tantas
testemunhas depois dele.
King entrou para a história não apenas pelo que fez, mas também e talvez
principalmente pelo que sonhou: um mundo onde ninguém seja discriminado por sua
raça ou pela cor da pele; onde todos tenham direito de voto e acesso a empregos
e serviços públicos; onde todos possam dizer livremente aquilo em que crêem e
praticar o que acreditam. Um mundo onde a paz não seja apenas a ausência de
guerras, mas situação vital e dinâmica construída no diálogo e na interação
franca e transparente. O sonho do Dr. King continua, mais vivo que nunca.
Continua nos grupos afro-americanos que seguem lutando por igualdade e
enfrentando as discriminações de que são objeto. Faz-se visível nos jovens
migrantes, chamados sintomaticamente de “dreamers”, que reivindicam seu direito
de sonhar com a cidadania no país que escolheram para viver uma vida melhor.
Vive em todo homem e mulher que em qualquer continente ou latitude deseja a
justiça, a igualdade e a liberdade, e luta para que aconteçam.
Como dizia, no Brasil, o poeta Zé Vicente: “Sonho que se sonha só
é só um sonho que se sonha só. Sonho que se sonha junto é realidade.“
Sonhemos, pois, para que se faça realidade o sonho belo ainda que tão difícil
da igualdade.
--
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
e autora de Santidade: chamado à humanidade (Paulinas), entre outras
obras.
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