Maria Clara Lucchetti Bingemer
Como em todos os anos, a Igreja Católica no Brasil lança a Campanha da
Fraternidade por ocasião da Quaresma. Nesse tempo em que os cristãos são
convocados a converter-se e preparar-se para celebrar o mistério pascal de
Jesus, centro da sua fé, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil lança um
alerta, um apelo. Escolhe um tema candente e desafiante para os
quarenta dias que precedem a Páscoa.
Este ano o tema é a fome. A fome que rói as entranhas. Aquela que
impede de pensar e de viver. A fome que atormenta famílias inteiras, cujas
crianças sofrem o flagelo da desnutrição. E por que a fome? Porque
o Brasil voltou a seu macabro mapa. Mais de 30 milhões de brasileiros não têm o
que comer. Ainda que surpreenda, ainda que estarreça em um país com
tantos recursos naturais, com uma agricultura pujante, essa é a realidade.
Muitos brasileiros passam fome. E entre esses, não poucos são vitimados e
morrem de desnutrição e insegurança alimentar.
Perguntarão alguns: mas por que a Igreja tem que se ocupar com este problema,
que é econômico, social? Não é uma questão religiosa. Isso deveria
ser pauta dos governos em todos os níveis, inclusive das universidades.
Por que a Igreja situa em seu centro de atenções no tempo litúrgico mais
importante do ano esse problema tão material? Não deveria propor algo que toque
mais de perto o espírito, a vida de oração, o crescimento devocional de seus
fiéis?
Acontece que a fome é, sim, um problema espiritual. E dos mais
importantes. Porque está diretamente conectado à vida. Sem comer,
não se vive. E o Deus que Jesus de Nazaré veio anunciar e chamou de Pai é
o Deus da vida. Tudo que deseja é que seus filhos amados tenham vida em
abundância. A fome portanto é uma agressão das mais violentas ao
projeto de Deus, o Reino da justiça, da paz e do amor. Por isso, a CNBB convoca
todos os cristãos a se responsabilizarem diante deste flagelo que voltou
a crescer no país.
Os bispos do Brasil, portanto, com a Campanha da Fraternidade 2023 são claros
em sua proposta: a fome não é um problema alheio a Deus, à fé e à
religião. Pelo contrário, está no centro da vida e do projeto de Jesus e
de todos aqueles e aquelas que nele creem. Como diz o grande pensador
ortodoxo Nikolai Berdiaev: “Se eu tenho fome é um problema biológico. Se
o meu irmão tem fome, é um problema espiritual” .
A Igreja deseja despertar os sentidos, a cabeça e o coração de todos para uma
situação que não pode ser tratada com indiferença e considerada normal. O
fato de uma pessoa, criatura de Deus, passar fome e não ter o que comer; ter
que ir para os fundos dos açougues esperando encontrar algum osso para dar a
sua família; ter que revirar latas de lixo como os ratos para encontrar sobras
das mesas fartas, não pode ser tratado com um dar de ombros indiferente, como
se não fosse problema meu.
O grande escritor brasileiro Fernando Sabino escreveu uma memorável crônica
- Notícia de jornal - sobre um homem que passava fome na
rua e ali acabou morrendo sem receber o socorro de ninguém.
“ Nada se sabe dele, senão que morreu de fome.
Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem
caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um
pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa – não é homem. E os
outros homens cumprem seu destino de passantes, que é o de passar. Durante
setenta e duas horas todos passam ao lado do homem que morre de fome, com um
olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum, e
o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens,
sem socorro e sem perdão. Não é de alçada do comissário,
nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada?
O que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.“
A
Igreja do Brasil não quer que isso aconteça. E mais: deseja dizer aos
cristãos que isso não pode acontecer. Nunca. A fome do outro é
problema meu, nosso. Por isso, como lema da Campanha da Fraternidade
temos a bela frase do Evangelho de Marcos que narra a multiplicação dos pães:
“Dai-lhes vós mesmos de comer”.
Jesus
viu a multidão faminta e compadeceu-se dela. Os discípulos argumentavam
que era melhor mandar todos embora, que não tinham dinheiro para comprar
comida. O Mestre disse, então, que o que tinham pusessem em comum.
E afirma o evangelho que todos comeram e ficaram saciados.
Não
há que delegar, terceirizar, responsabilizar os outros. Dizer que isso é
problema da prefeitura, do governo do estado, da presidência da
República. “Dai-lhes vós mesmos de comer”. A fome do outro é um problema
espiritual e ao mesmo tempo um mandato. Quem tem fome não pode
esperar. Precisa ser alimentado. E se eu me deparei com alguém com fome,
sou eu que devo dar-lhe de comer, repartindo o que é meu para que todos sejam
saciados.
Maria Clara Bingemer,
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Experiência
de Deus na Contemporaneidade: entre o viver e o contar” (Editora Paulinas),
entre outros livros.
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Maria Helena Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
mhgpal@gmail.com
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