Maria Clara Bingemer
Há dez anos o Cardeal
Jorge Mario Bergoglio foi eleito Papa e escolheu para si o nome de
Francisco. Desde então, tem mostrado ao mundo, entre muitas coisas, a
importância primordial do encontro com o outro. Diz e repete que encontramos
pessoas "não apenas vendo, mas olhando, não apenas ouvindo, não apenas
cruzando caminhos com as pessoas, mas ficando com elas, não apenas dizendo
"Que pena! Pobres pessoas", mas deixando-nos comover pela
compaixão. E isso implica aproximar-se, tocar e dizer "não
chores, e dar pelo menos uma gota de vida". Este é, segundo
Francisco, o caminho para criar uma “cultura do encontro”.
A intenção básica da proposta
desta cultura é combater a indiferença que prevalece em nossa sociedade de
descarte, de velocidade, de superficialidade para chegar a um encontro
verdadeiro e profundo com os outros. Mas para consegui-lo, devem ser
estabelecidas certas condições. E é o próprio Papa quem as aponta: "Temos
que ser pacientes se quisermos compreender aqueles que são diferentes de nós: as
pessoas não se expressam plenamente quando são simplesmente toleradas, mas
quando percebem que são verdadeiramente bem-vindas. Se tivermos um desejo
genuíno de ouvir os outros, aprenderemos a olhar para o mundo com olhos
diferentes e a apreciar a experiência humana tal como ela se manifesta em
diferentes culturas e tradições”
As ruas do mundo são o lugar
desta cultura de encontro, o "locus" onde as pessoas vivem, onde elas
são efetiva e afetivamente acessíveis. O testemunho cristão, portanto, não é
oferecido através de um bombardeio de pessoas com mensagens religiosas,
mas por uma vontade de se entregar aos outros através de um desejo de responder
paciente e respeitosamente às suas perguntas e dúvidas sobre o caminho da busca
da verdade e do significado da existência humana.
De Bergoglio a Francisco
encontramos o ponto central de uma mudança no próprio estilo de ser Papa. O
mesmo Bergoglio que no documento de Aparecida influiu para que se valorizasse o
encontro interpessoal com Deus e com o outro, revela-se na pessoa e na
linguagem de Francisco como uma proposta audaciosa e avançada de criar uma "cultura do
encontro". O Papa sabe que não basta converter alguns indivíduos isolados
para que haja uma real transformação na sociedade e na Igreja. Importa,
sim, criar uma cultura, que significa tocar e converter atitudes, valores,
costumes, tradições.
No balcão em frente às multidões
à espera do anúncio do novo Papa, em 13 de Março de 2013, o Papa Francisco
mostrou a sua disponibilidade para viver esse encontro, com palavras e
gestos. Apresentou-se a si próprio como bispo de Roma, enraizado no fim do
mundo, onde repousam suas origens. Pediu também a bênção do povo
antes de abençoá-lo, invertendo a ordem do costume e da tradição.
Desde então, os dez anos do seu
pontificado têm sido cheios de surpresas e novidades. Trata-se de algo
que tem agradado a muitos e desagradado talvez a muitos mais. Francisco
é, sem dúvida, um Papa diferente. E o seu estilo de ser, comover-se,
falar e agir surge certamente como uma surpresa para muitos. Mas encanta e
conquista a outros. E isso talvez o faça mais amado fora da Igreja do que
dentro dela.
A mim – católica e teóloga – é
como uma lufada de ar fresco numa Igreja que parecia deixar para trás a
primavera do Concílio. De repente, nas palavras do Papa, encontrei
novamente a linguagem conciliar, ancorada na antropologia e na história.
A linguagem de uma Igreja que queria ser perita em humanidade, como diz a
Constituição Pastoral Gaudium et Spes.
Ao longo desses 10 anos pude também
redescobrir nos discursos pontifícios muito do que a Igreja latino-americana
havia tentado construir no período pós-conciliar e que parecia haver estado
tristemente sob suspeita em determinado momento: a prioridade dos pobres; a
atenção à cultura popular e a valorização das suas festas, histórias e
criações; a crítica não só aos indivíduos mas também aos sistemas que são
injustos e oprimem pessoas e comunidades inteiras.
A encíclica Laudato Si, de 2015,
inaugura um novo capítulo na história da doutrina social da Igreja. A
transparência do texto, o discurso que tão harmoniosamente combina teologia com
ciência e com poesia e mística, capta a preocupação do momento presente e das
novas gerações por um planeta sob constante ameaça e sob ataque diário. Igualmente
ensina que somos seres criados em meio a uma comunidade de outros seres vivos,
não apenas humanos. Toda vida merece respeito, reverência e
cuidado. O Papa Francisco, em nível pastoral, convocou a uma mudança de
paradigma em toda a Igreja e a sociedade, onde o cuidado deve ser o centro e o
norte da vida. Os seres humanos são chamados a abandonar sua postura
arrogante e predatória e a integrar-se na comunidade de todos os seres vivos, a
fim de a protegerem, uma vez que as primeiras vítimas da desordem ambiental em
que vivemos são os pobres. A ecologia e a justiça andam, portanto,
juntas.
Em 2020 veio à luz outra
encíclica, sintonizada com a Laudato Si. O título fala por si só:
Fratelli Tutti. Reflete sobre a amizade social, refletindo em torno da
parábola do Bom Samaritano, situada no capítulo 10 do Evangelho de Lucas. O
texto pontifício mostra que se a humanidade progrediu na construção da
liberdade e da igualdade, o mesmo não aconteceu em relação à
fraternidade. Passar da lógica do sócio para a do irmão/irmã é o convite
que ressoa neste documento, que reflete muito da experiência e do trabalho
deste argentino, acostumado à companhia dos mais pobres e entusiasta dos
movimentos populares.
Finalmente, como teóloga,
acredito que o Papa abriu novos e esperançosos caminhos para aqueles de nós que
trabalham com a inteligência da fé. E por isso sinto-me muito em sintonia com a
concepção de teologia que ele mostra ser a sua própria. Em carta ao
cardeal Poli, arcebispo de Buenos Aires, por ocasião da celebração do
bicentenário da faculdade de teologia da Universidad Católica Argentina (UCA),
escreve com clareza que "o teólogo deve ser uma pessoa capaz de
construir a humanidade à sua volta, transmitir a verdade cristã divina numa
dimensão verdadeiramente humana, e não um intelectual sem talento, um moralista
sem bondade ou um burocrata do sagrado".
Mais recentemente, em sua
mensagem à Pontifícia Comissão Teológica Internacional, além de destacar os
dois pilares da teologia - vida espiritual e eclesialidade - afirma que "o
teólogo deve ir à frente, deve estudar o que vai além; deve também confrontar
coisas que não são claras e assumir riscos na discussão". Acrescenta ainda
que não se deve trazer questões controversas para o povo, mas sim uma doutrina
sólida. O papel do catequista, portanto, não seria o mesmo do teólogo.
Francisco entende a vocação da teologia ancorada na fé, tendo uma
identidade intelectual, sem medo de fronteiras e da pesquisa sobre os desafios
do mundo e da sociedade.
Ao comemorar esses 10 anos, olho
com gratidão para o pontificado de Francisco. Ao longo do mesmo, pode-se
sentir o esforço incessante de promover este encontro entre as pessoas, que não
deve ser algo episódico, mas uma verdadeira cultura. Ele vê e comunica esta
proposta com uma base firme em uma antropologia que concebe o ser humano feito
para a alteridade e a diferença, e capaz de construir a comunhão. O encontro só
pode ter lugar, como ele próprio sublinha, de baixo para cima, para que ninguém
fique de fora desta comunhão difícil de construir, mas tão bela em termos de
ideal e de objetivo.
Feliz aniversário, Santidade!
Que venham outros aniversários e celebrações!
Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de
Teologia da PUC-Rio e autora de Santidade: chamado à
humanidade (Paulinas), entre outras obras.
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Maria Helena Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
mhgpal@gmail.com
Maria Helena Guimarães Pereira
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