Maria Clara Bingemer
A ecoteologia pretende ser uma reflexão que se faz a partir da
revelação e da fé e da metalinguagem por ambas gerada, que é a teologia. A
crítica moderna e secular às religiões monoteístas denunciou a crise ecológica.
Tal crítica atingiu todas as ciências e muito especialmente a teologia.
O cristianismo e seu discurso teológico foram acusados de haver
promovido uma série de atitudes prejudiciais à natureza. Assim também foi a
teologia cristã, denunciada como sendo antropocêntrica, vendo e valorizando
apenas o ser humano, desconsiderando os outros seres vivos que povoam o planeta
e a terra que é casa comum de todos.
A ecoteologia surge como tentativa de resposta a esta crítica,
resultando em tarefa construtiva que faz uma leitura ao mesmo tempo crítica e positiva
das escrituras judaicas e cristãs quanto às questões ambientais.
Ao longo da história predominou na tradição judaica e cristã uma visão
marcada pelo dualismo entre o céu e a terra, que gerou por sua vez uma visão de
mundo e também uma visão de Deus. Baseia-se na separação estanque entre o que
está acima - invisível, transcendente, sobrenatural - e o que está abaixo -
palpável, imanente, natural. O que está acima é superior e deve reger o que
está abaixo.
Esse dualismo tem várias consequências. Uma delas é o
antropocentrismo. O mandato de “dominar a terra” que o livro do Gênesis
(Gênesis 1.28) relata em palavras do Deus Criador dirigido à criatura
recentemente moldada em barro e animada com o sopro da vida divina sofreu
muitas interpretações em toda a tradição cristã. Mas uma delas prevaleceu,
tendendo a interpretar a orientação divina no sentido de uma atitude de domínio
arrogante do ser humano sobre a natureza, em nome do Criador.
Esta interpretação, no entanto, pertence a uma tendência entre tantas
outras, apresentando uma visão antropocêntrica com conotações predatórias em
relação à natureza. Ultimamente outras tendências contestaram esse
antropocentrismo de conquista, sobretudo com o crescimento da consciência
ecológica. Introduziu-se uma perspectiva contemplativa na identidade do mundo
criado, considerando-o como casa a ser cuidada, amada e respeitada, além de
sacramento de Deus e espaço de salvação. A Encíclica Laudato Si, do
Papa Francisco de 2015 é como um marco nesse processo.
A interpretação do mandato genesíaco na direção de uma primazia absoluta
e ilimitada do homem sobre a natureza teve, porém, outras consequências, como a
suspeita de uma concepção erroneamente individualista do ser humano, aliada a
um determinismo econômico e tecnológico onipotente e prepotente. E acima
de tudo conduziu a uma visão da natureza, da terra, do cosmos separados do ser
humano, cindindo assim a Criação de Deus. O humano passou a ver a natureza como
um inimigo a ser conquistado e destruído impunemente em nome de um progresso e
enriquecimento vorazes e ilícitos. A luta do ser humano pela vida foi então
transformada em ameaçador e agressivo instinto de morte que pesa sobre todas as
outras formas de vida.
Na verdade, a revelação de Deus nas escrituras o apresenta como criador
e ardente amante da vida. O relato da criação demonstra um carinho e cuidado
desvelados do Criador para com a terra. Além de iluminá-la com os luzeiros do
firmamento, Ele a povoa de vida, em imensa diversidade de formas e espécies. A
imagem que sobressai da terra na história do Gênesis é, portanto, a de
sede e mãe da vida. Seu grande corpo é hospedeiro e gerador da vida. De
seu útero brotam todos os seres vivos, incluindo os humanos, todos feitos de
sua substância. Feitos da terra, animados pelo espírito de Deus, somos isso:
corpos animados pelo sopro divino.
A partir daí, alguns temas se destacam para um pensar
ecoteológico. Por exemplo, a concepção de que viver é
necessariamente conviver. O ser humano não reina no universo à parte dos outros
seres vivos. Mas é criado a partir da pluralidade e convidado à
convivência. E essa convivência diz respeito não apenas a seus semelhantes em
humanidade, mas a todos os seres vivos. Tudo está interligado, tudo e todos são
interdependentes. Não há vida possível no isolamento de si mesmo ou do
outro. A vida, para existir, necessita ser um com- viver, uma
com-vivência.
Com relação à ética que decorre desta ecoteologia, a atitude humana e
cristã fundamental que emerge é a do cuidado. O ser humano não está na criação
para dominar a terra e conquistá-la. Nem para buscar seu próprio proveito
em detrimento das outras formas de vida que nela existem. Está aí como
responsável pela vida. E, portanto, sua atitude deve ser de cuidado,
proteção, cultivo e desenvolvimento da vida sob todas as suas formas e
configurações. Toda vida importa, toda vida deve ser cuidada, mesmo a mais
frágil e insignificante.
Aparece também com clareza a conexão entre consciência ecológica e
prática da justiça. O esforço para restaurar relações harmoniosas entre a
humanidade e o cosmos requer a superação de certos conceitos deterministas,
individualistas e econômicos. Chama igualmente a recuperar uma noção de vida
tão presente nas culturas dos povos originários, que veem o cosmos como
epifania cheia de significado e manifestação de mistério. A contemplação do
mistério do cosmos não deve ser vista como preocupação ascética ou estética
nascida apenas do ócio, mas como a expressão de uma preocupação ética
primordial: o cosmos deve ser devolvido aos homens e mulheres que foram
despojados do que era seu e do que ali lhes pertencia. Esta restituição
acompanha a luta para dar pão aos famintos, abrigo aos sem-abrigo, água aos
sedentos. Tudo isto é um gesto salvífico, pois implica devolver o mundo criado
a todos aqueles que dele foram expropriados.
Maria Clara Bingemer é professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio e escritora, autora de “Experiência
de Deus na Contemporaneidade: Entre o viver e o contar” (Editora
Paulinas), entre outros livros.
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Maria Helena
Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
mhgpal@gmail.com
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