Kinno Cerqueira [1]
Tenho
a sensação de que vivemos tempos mortos. Não é um tempo de paixões. É um tempo
de marasmos. É um tempo de contínuos. É um tempo de distrações. Há algo que
ainda faz nosso coração arder? Onde estão os temas que habitam a nossa carne e
fazem nossa língua tremer? O tempo dos autores preferidos passou. Procuro, e
quase nunca encontro, pessoas que tenham sido abaladas por um texto, por uma
música, por uma peça teatral ou por uma história que tenham ouvido em alguma
esquina. Parece que vivemos tempos sem acontecimentos. É um tempo em que quase
nada vai além da esfera do estritamente banal e costumeiro. É um tempo em que
rareiam olhos capazes de brilhar.
Sou
um teólogo: é assim que me sinto e é esta a única designação que não me causa
desconforto. Sou teólogo porque me vejo ininterruptamente às voltas com as
questões em relação às quais as teologias foram sendo fabricadas. Fernando
Pessoa, no Livro do desassossego, escreveu que “existam ou não existam
os deuses, deles somos servos”. Não sou teólogo porque professo fé na
existência ontológica de um ser divino. Sou teólogo porque minhas angústias e
meus prazeres são inelutavelmente atravessados por Deus, quer ele exista ou
não. Pensei em grafar seu nome com inicial minúscula. Mas eu seria hipócrita se
o fizesse. Afinal, como dar uma minúscula a quem, exista ou não, teve e tem um
papel tão maiúsculo na composição de minha biografia?
Eu
paro e sento e miro o horizonte pela janela e pergunto-me se não seria hora de
escrever alguns de meus pensamentos e deixar que o jorrar de seu fluxo
interrompa a sequência de tempos mortos em que nos metemos todos. Mas os
pensamentos meus são simples e calmos e decerto, uma vez fora de mim, não
sobreviveriam às condições inóspitas desses tempos mortos que são incapazes de
se alegrar com o nascimento do que quer que seja. Estes tempos mortos matam
tudo o que não seja sua réplica e sua duplicação pura e simples.
Sofri
terrivelmente ao descobrir que amo mais os mortos que os vivos. A minha vida
tornou-se doce como o mel de flor quando aceitei minha orientação passional. A
minha descoberta foi a maior de toda a minha vida: entre os mortos não há
tempos mortos. Eu não trocaria essa minha descoberta por nada. Ela é meu único
tesouro. Descobri um mundo abandonado ao qual me posso abandonar numa conversa
sem fim. Falo de um “mundútero”: um mundo que não mata nem se entristece com
nascimentos, um mundo que abraça e fecunda. Um mundo que existe para produzir
os frutos da sedução e do prazer. O único mundo que me interessa. O mundútero é
um mundo de tempos vivos.
[1] Teólogo e Pastor Batista.
Assessor de coletivos ecumênicos na área dos estudos bíblico-teológicos.
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