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por MARIA CLARA BINGEMER |
O ano-novo começa com a celebração do Dia Mundial da Paz. Não há
hoje em meio à violência que o mundo vive e padece desejo que brote com mais
força de todos os corações e bocas, do que o desejo da paz.
Em seu discurso para essa celebração, o Papa Bento XVI diz com
pertinência e razão: “Em cada pessoa, o desejo de paz é uma aspiração essencial
e coincide, de certo modo, com o anelo por uma vida humana plena, feliz e
bem-sucedida”. E continua afirmando que o desejo de paz é essencial e
constitutivo da condição humana. Além disso, corresponde a um princípio
ético fundamental, qual seja, o dever-direito de um desenvolvimento integral,
social, comunitário, de cumprimento e plenificação dos desígnios divinos para
os seres humanos.
Sendo ponto inegociável do projeto do Reino de Deus que Jesus de Nazaré
anunciou à Igreja e que esta tem a missão de levar a toda a humanidade, a paz é
uma bem-aventurança. Por isso, faz parte do sermão da montanha, carta magna do
Reino, onde o mesmo Jesus dá aos seus discípulos orientações específicas de
atitudes e comportamento com vistas a como devem viver e atuar neste mundo.
Refletindo sobre a bem-aventurança que se refere explicitamente à paz e
sua construção e que é o lema do Dia Mundial da Paz, - “Bem-aventurados os
construtores da paz” (Mt 5,9) - Bento XVI conclui “que a paz é,
simultaneamente, dom messiânico e obra humana”. Ou seja, é dom dado de graça e
imerecidamente. Jorra do amor sem fim e gratuito com que Deus nos ama
desde sempre e para sempre. Mas ao mesmo tempo é tarefa, é missão. Deve
ser construída e não acontecerá neste mundo se nesta construção não
pusermos todo o nosso empenho e o melhor de nossos desejos e forças.
Assim é concebida a paz na Bíblia desde o Antigo Testamento. É comum nos países do Oriente Médio ouvir ainda hoje uma
tradição que vem de muito antes, das raízes da vida e da cultura destes povos:
a saudação “ shalom”, que quer dizer paz em hebraico. É a maneira que os
israelitas têm de se saudar. O mesmo acontece com os árabes, que usam o
termo salam, que tem o mesmo significado: “paz”. Chega a ser
incrível que em uma região na qual a paz está totalmente ausente, para não
dizer quase perdida numa guerra sem quartel, a saudação costumeira do povo
continua sendo desejar a paz.
Por ser tão difícil e ameaçada, a paz na Bíblia sempre foi considerada um bem extremamente precioso. A raiz hebraica šlm (da qual deriva shalom) é muito antiga e comum a todas as línguas semitas e expressa não só uma ausência de guerra, mas uma ideia de perfeição, de “estar completo”, “estar perfeito”, “estar terminado”. Portanto, quem vive no shalom está com saúde, sente-se bem, encontra-se em um estado de plenitude.
No texto hebraico do AT, portanto, a paz tem uma ampla gama de significado, que ultrapassa o meramente político-bélico. O significado teológico de paz como benção e salvação de Deus está presente na maior parte dos textos.
A tradução grega traduziu shalom por eirene, o que enfraquece um pouco seu significado, já que eirene remete a uma ideia de ataraxia, de ausência de movimento e conflito, que não corresponde à paz bíblica. Em todo caso, destaca-se na Bíblia judaica o significado da paz como fruto do cumprimento da vontade de Deus. Como diz 2Mac 1,4: “(Que Deus) abra o vosso coração à sua Lei e a seus preceitos e vos conceda a paz”. A paz é, aqui, apresentada como o resultado da observância à Torah e, por conseguinte, indica “salvação” em um sentido bem teológico e dinâmico.
O Novo Testamento, na história da infância de
Jesus, o apresenta como o portador da paz ao mundo por excelência. Em Lc
2,14, por ocasião de seu nascimento, os anjos anunciam: “Gloria a Deus nas
alturas e paz na terra aos homens por ele amados”. No nascimento de Jesus,
a paz, em seu significado pleno de salvação, de superação de conflitos e de
vitória sobre o mal e a injustiça, é oferecida aos seres humanos.
Em outros textos do Novo Testamento, como nas
cartas de Paulo, a paz é sempre unida à graça, mostrando que para o apóstolo a
verdadeira paz era proveniente da graça de Deus que recebemos em Jesus Cristo.
Para Paulo, a paz é um fruto do Espírito (Gl 5,22; Rm 14,17), que é dado por
graça, mas que se tem que trabalhar para construir e fazer crescer. Já em Tg
3,18, encontramos a solene afirmação: “O fruto da justiça semeia-se na paz
para os que constroem a paz”. Entende-se aí justiça como a conduta
humana justa como resposta à vontade de Deus, uma conduta de acordo com as
exigências de Deus. Quem constrói a paz está semeando os frutos da justiça, no
sentido de obediência às exigências divinas.
Por isso, neste ano de 2013, somos convidados a colocar a paz verdadeira, que é graça de Deus e fruto da justiça, como prioridade de nossa vida. E para isso – lembra-nos o Papa - “é preciso renunciar à paz falsa, que prometem os ídolos deste mundo, e aos perigos que a acompanham; refiro-me à paz que torna as consciências cada vez mais insensíveis, que leva a fechar-se em si mesmo, a uma existência atrofiada vivida na indiferença. Ao contrário, a pedagogia da paz implica serviço, compaixão, solidariedade, coragem e perseverança”.
Feliz Ano Novo para todos nós, cheio de justiça e de paz.
Caros amigos (as):
Neste endereço http://canallivre.band.uol.com.br/videos.asp?id=14234070 é possível assistir a entrevista com a teóloga Maria Clara Bingemer (PUC Rio de Janeiro) sobre o livro A Infância de Jesus, no programa Canal Livre/ Band TV.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
http://agape.usuarios.rdc.puc-rio.br
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