Maria Clara Lucchetti Bingemer
Lilibeth – como era chamada em família e nos círculos mais íntimos a recém
falecida Elizabeth II, rainha da Inglaterra - chegou ao fim de seus
dias. A jovem iniciou seu reinado aos 26 anos, em seguida à prematura
morte de seu pai, o rei George VI, aos 56 anos, de um câncer de pulmão
agressivo.
Assim como a filha, George, duque de
York, viu-se ocupando o trono da Inglaterra inesperadamente e com surpresa. Seu
irmão, o legítimo herdeiro, Eduardo VIII, renunciou ao trono devido a seu
casamento com a estadunidense Wally Simpson, que além de plebeia era
divorciada. Seu irmão, o duque de York, era o primeiro na linha de sucessão
.
George, um jovem com várias limitações, entre elas a gagueira, desempenhou-se
com louvor no cargo, sendo inclusive uma peça-chave nos rumos da Segunda Guerra
Mundial que assolava a Europa e ameaçava o mundo. A Inglaterra foi
importante baluarte na resistência aliada, que acabou vencendo o flagelo
nazista.
Lilibeth, filha mais velha e primeira
na linha de sucessão do falecido rei, teve que substituí-lo também rápida e
inesperadamente, quando aconteceu sua morte. Casada com o príncipe
Philip, tinha filhos pequenos e estava fora do país. Voltou às pressas para
assumir seu posto.
Na última quinta-feira, 8 de setembro, em meio às notícias caóticas que vinham
da guerra na Ucrânia ou da guerra política que precede as eleições no Brasil,
chegou a notícia de sua morte. A monarca, de 96 anos, havia fechado
definitivamente os olhos no castelo de Balmoral, na Escócia. Seu filho
Charles, primeiro na linha de sucessão, foi aclamado rei e deverá em breve,
após os ritos funerários de praxe (que são longos no Reino Unido, sobretudo
quando se trata do rei ou rainha) assumir o trono desta monarquia que há tanto
tempo influi sobre o imaginário das pessoas no mundo inteiro.
Não
sou monarquista nem tenho especial simpatia pela família real inglesa. Apesar
de reconhecer a estatura de certos estadistas do país, as histórias não tão
transparentes de membros da alta hierarquia inglesa não me provocam outra coisa
senão indiferença e até uma certa impaciência. Porém, em se tratando desta
rainha, impõe-se reconhecer algo que emerge de sua figura: uma inquebrantável
dignidade.
A
palavra dignidade origina-se do latim “dignitas” e seu significado refere-se ao
valor de cada pessoa como ser humano. Assim, toda e qualquer pessoa deve
ser respeitada pelo fato de ser humana, pensante e sensível. Mas em
nenhum caso merece maior respeito do que outros. A dignidade de alguém
não depende de seu poder financeiro ou político, de sua situação mais ou menos
favorável. É um valor moral inegociável.
Quando se trata de alguém que ocupa alto cargo ou função em um país, sua
dignidade pessoal é acrescida pela dignidade do coletivo que representa.
No Império Romano, quando as autoridades enviavam um mensageiro ou funcionário
a outro território, este era considerado um dignitário. E isso
significava esperar dele uma atitude digna da instituição que representava, era
a personificação do império e estava moralmente obrigado a comportar-se de
maneira responsável e adequada. No contexto cultural em que vivia, era
digno e apreciado com dignidade, porque atuava como representante de um ideal
ou uma instituição.
Além disso, dignitas era apanágio de pessoas que ganhavam o respeito dos outros
devido a seu comportamento ético. Com esta denominação se aludia a seu
prestígio, honra e reputação social. Em suma: honrava a humanidade à qual
pertencia e a coletividade da qual era membro por suas atitudes e estatura
moral. Segundo o filósofo Cicero, “dignitas” é um dos valores
humanos mais elevados, já que situa o indivíduo e a apreciação que dele se faz
em nível muito superior aos seus interesses pessoais.
A recém falecida rainha foi, sem dúvida, uma pessoa digna sob todos os aspectos
em todos os momentos. Desde o momento em que foi coroada rainha da
Inglaterra, embora ainda muito jovem, dedicou-se de corpo e alma àquilo que
sempre considerou uma missão a serviço de seu povo e seu país. Em
situações sobretudo familiares, mas também políticas, nas quais ficou sob os
holofotes do mundo inteiro, soube comportar-se eticamente. Mesmo se
podemos discordar de algumas de suas atitudes – como, por exemplo, o bloqueio
ao casamento da irmã Margareth com o oficial da aeronáutica Peter Townsend ou
sua atitude um tanto rígida com a linda e doce nora Diana Spencer – sua
prioridade era a missão para a qual fora ungida.
A menina que amava cavalos e cachorros assumiu uma vida feita de compromissos e
agendas lotadas sempre com um impecável sorriso no rosto e fazendo-se amar pela
maioria de seus súditos.
Descanse em paz, Lilibeth. A instituição que você representa não faz
parte de minhas prioridades. Mas olhar sua vida me reconforta.
Mostra que é possível ser o chefe máximo de um país poderoso sem perder a
dignidade, sem ceder aos enredes e conluios que cercam a vida de qualquer
monarca ou presidente ou chefe de estado. Mais: mostra que é possível uma
mulher assumir uma alta função no cenário mundial e desempenhar sua missão com
correção e dignidade. As mulheres, mesmo as que não são entusiastas da
instituição que você representa, a respeitam. E em maior ou menor
proporção, lhe agradecem.
Em tempos de vulgaridade máxima e
decência mínima, você foi um baluarte da dignidade humana. Tomara alguns
políticos e governantes pudessem aprender com sua vida e legado.
Obrigada.
Maria Clara Bingemer é professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Experiência de Deus na
Contemporaneidade: entre o viver e o contar” (Editora Paulinas), entre outros
livros.
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