Frei Betto
Há múltiplas análises do resultado
no 1º turno da disputa presidencial entre Lula e Bolsonaro. Todas surpresas com
o avanço eleitoral do presidente, contrariando previsões dos principais
institutos de pesquisas. Pelos locais de votação via-se muito mais roupas
vermelhas (eleitores de Lula) que verde e amarelo (eleitores do Inominável).
Fica a pergunta: como explicar tão
surpreendente avanço de quem sabotou o combate à pandemia, reduziu
drasticamente os orçamentos da Saúde e da Educação, e demonstra abertamente seu
desprezo por mulheres, pobres, indígenas e negros?
Como respostas há várias hipóteses.
Fico com uma.
Toda pessoa se inclui em um sistema
de sentido, ainda que disso não tenha a menor consciência. Vale para o monge
budista e para o chefão do narcotráfico. Grosso modo há, hoje, dois sistemas de
sentido que imprimem razão de viver: o neoliberalismo e o socialismo ou
comunidades de partilha, como as indígenas. Dentro desses dois sistemas há
subsistemas, e o mais expressivo é a religião.
Na Idade Média, a religião foi
sistema predominante no Ocidente, o mais abrangente de todos os sistemas
criados até hoje. Seu arco se estende do mais íntimo (a culpa por uma ofensa)
ao mais coletivo (a sociedade de justiça e paz). A religião “explica” desde a
origem do Universo até o que ocorre a cada pessoa após a morte. Como ironizam
os cientistas, os físicos têm perguntas; os teólogos, respostas.
Como sistema de sentido, a religião
não exige dos fiéis estudos e status, basta acatar os preceitos e a doutrina
como verdades de fé e confiar (verbo que deriva de ‘com fé’) na palavra
daqueles que, revestidos de suposta sacralidade (o ministro da confissão
religiosa), gozam da prerrogativa de falar em nome de Deus!
Numa sociedade em que a maioria da
população tem baixa escolaridade e pouca renda, o espaço religioso atrai como
um refúgio frente aos sofrimentos, ao desamparo, à competividade que campeia na
vida social. Ali o fiel encontra uma lógica para entender (e aceitar ou
criticar) por que o mundo é o que é, com suas desigualdades e violências.
Vivencia solidariedade, consolo, amparo e, sobretudo, resgata sua
autoestima. O “zé ninguém” da vida cotidiana se sente promovido no espaço
religioso como filho ou filha de Deus, ministro da Palavra, pai ou mãe de santo
etc.
Era isso que as Comunidades
Eclesiais de Base ofereciam a seus milhões de participantes Brasil afora entre
as décadas de 1970 e 1990. Entretanto, foram atropeladas pelos pontificados
conservadores de João Paulo II e Bento XVI. Esse refluxo favoreceu o avanço das
Igrejas evangélicas entre as classes populares. A maioria abraça o neoliberalismo
como sistema de sentido. Consideram que a salvação pessoal neste e no outro
mundo é mais importante que lutar por uma sociedade mais justa.
Aliás, o social viria como acúmulo
de virtudes pessoais... Não se enxerga a floresta, apenas as árvores. Se há
gente na miséria é porque se desviou dos caminhos do Senhor e não perseverou
nas virtudes morais. Vide aqueles que, na Igreja, vieram de uma vida de
devassidão, bebidas, mulheres, jogatina e, ao abraçar a fé no Senhor,
resgataram o equilíbrio familiar, abandonaram os vícios e, hoje, prosperam
social e financeiramente.
São lógicas opostas: enquanto os
progressistas querem mudar a sociedade para que as pessoas mudem, os
fundamentalistas querem mudar as pessoas para que a sociedade mude. Os primeiros
atuam sob o paradigma do social (política). Os segundos, do pessoal
(moral).
A esse contingente evangélico a
esquerda ainda não aprendeu a falar. Guarda ranços dos preconceitos
antirreligiosos do marxismo vulgar. E é desses cristãos fundamentalistas,
dispostos à “servidão voluntária”, que Bolsonaro obtém mais apoio. Não há
argumento que consiga demovê-los, pois não pensam com a razão, e sim com a
emoção temperada por algo que transcende a razão: a fé. Tenho conversado com
muitos deles. Argumentam que se a situação brasileira está ruim não é culpa do
presidente, e sim da pandemia e da guerra na Ucrânia.
A militância progressista e de
esquerda tende a demonizar essa multidão de evangélicos fiéis a Edir Macedo,
Malafaia e outros próceres mercadores da fé. Não se dá ao trabalho de tentar
compreender a vertiginosa expansão das Igrejas evangélicas. E não domina a
única linguagem capaz de estabelecer algum diálogo com este segmento: a
hermenêutica bíblica.
Agora já não há tempo suficiente
para os eleitores de Lula redirecionarem a postura frente aos evangélicos
eleitores de Bolsonaro. Mas isso terá que ser feito, sob pena de o Brasil
caminhar para uma neocristandade capaz de minar o Estado laico e cobrir de
bênçãos as armas dos milicianos.
Nestes poucos dias que nos restam
para o 2º turno a tarefa, urgente, é evitar que o debate eleitoral fique refém
de uma “cruzada religiosa”, alheio às causas da penúria de nosso povo;
convencer os indecisos da pertinência de eleger Lula, desconstruindo o “mito”
ao revelar sua verdadeira face de corrupto, miliciano, preconceituoso e
administrador falido; convocar mobilizações presenciais e virtuais; e torcer
para que o PT e a coordenação da campanha acertem na propaganda eleitoral e na
costura de amplos apoios.
Frei Betto é escritor, autor de “Tom vermelho o verde” (Rocco), entre
outros livros. Livraria virtual freibetto.org
Frei Betto é autor de
73 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com
desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org Ali os
encontrará a preços mais baratos e os receberá em casa
pelo correio.
Copyright 2022 –
FREI BETTO – AOS NÃO ASSINANTES DOS ARTIGOS DO ESCRITOR - Favor não
divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los
ou publicá-los em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou
impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL –
Agência Literária (mhgpal@gmail.com)
http://www.freibetto.org/>
twitter:@freibetto.
Você acaba de ler
este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele -
em português e espanhol - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com
AVISO
IMPORTANTE
Esta mensagem
contém um texto destinado apenas a você. Caso a tenha recebido por engano,
solicitamos que o fato seja comunicado ao remetente e que a mensagem seja
eliminada de seu sistema imediatamente. Este ambiente de comunicação é sujeito
a monitoramento.
Maria Helena Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
mhgpal@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário