Eduardo Hoornaert
Certa vez, ao discutir questões filosóficas com um
colega num gabinete da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, nos anos 1940,
Ludwig Wittgenstein, com sua conhecida impetuosidade, gritou: Há um elefante na sala. Com isso, ele
quis indicar que seu interlocutor, ao que lhe parecia, não enxergava o óbvio.
A imagem desse elefante me parece apropriada para
passar um olhar crítico pelos vastos campos da atual cognição na civilização
ocidental. Desde os primeiros esboços na Mesopotâmia, a impressão que se tem é
que o próprio processo civilizador impede de enxergar ‘elefantes’,
principalmente o elefante da escravidão. Na Grécia clássica, que nos lega a
filosofia, a escravidão é onipresente, mas invisível. Dizem os historiadores
que, na cidade de Atenas em tempo de Péricles (séc. V aC), cinco mil cidadãos
vivem sustentados por cem mil escravos, um número aproximativo, pois acerca de
escravos não existe registro escrito. No Liceu de Atenas (fundado por
Aristóteles no século IV aC) não é difícil se imaginar um vai-e-vem incessante
de ‘pedagogos’, escravos que trazem e levam crianças e jovens de famílias boas
para participar de exercícios educativos. Pelo pátio do referido Liceu, homens
e mulheres se cruzam, a preparar as mesas, servir comidas e bebidas, limpar o chão
e as latrinas. Os estudantes não lhes dão atenção. Nem o próprio Mestre
Aristóteles, que lhes dedica apenas umas linhas de sua ‘Política’ (não cito
textualmente): esses nossos servidores
fazem o que lhes compete fazer para o bom andamento do Liceu e isso lhes dá
satisfação. A natureza cria uns para mandar e outros para obedecer. Os ‘servi
ex natura’ (servos por natureza) nos são úteis, e mais não digo, já que temos
que nos conformar com as leis da natureza, que dispensam reflexões filosóficas.
Em outras palavras: Aristóteles deixa o elefante perambular tranquilamente por
seu território.
Séculos depois, o teólogo cristão Agostinho (séc. V dC)
não pensa diferente. Ele se mostra triste com os destinos da humanidade
pecadora, essa ‘massa damnada’ herdeira do ‘pecado original’ de Adão e Eva. Mas
não parece afetado pelo fato que, na guarnição militar costeira romana, sediada
em Hipona, onde ele é bispo, se despacham rotineiramente grupos de africanos
algemados, com destino aos mercados de escravos existentes na Itália. O teólogo
lamenta o ‘inferno’ dos pecadores, mas não parece ouvir os lamentos e sussurros
de africanos escravizados.
Desde a era da modernidade, sucessivos ‘elefantes’
entram na sala da cognição ocidental. Spinoza, Galileu, Kant, Hegel, Darwin, Freud,
Marx, cada um num determinado setor, apontam evidências não reconhecidas ou
mesmo abertamente negadas pela oficialidade. Eles formam o topo de um
‘iceberg’, pois o povo, tradicionalmente silencioso, mostra simpatia por seus
posicionamentos. Parece que percebe o andar do elefante, mais que a elite. As
mulheres, de seu lado, não deixam de apontar, por vezes de modo aberto e ativo,
outras vezes silenciosamente, o sistema largamente heterônomo em que são obrigadas
a passar a vida.
A
cultura dominante, desde os tempos da modernidade até hoje, tapa os ouvidos e
fecha os olhos, para não ver o elefante passar. A igreja dominante, por
exemplo, desde os séculos XVII, só abre a boca para condenar, perseguir e mesmo
levar à morte: inquisição [inúmeras mortes], fogueira [entre 40 e 50.000 ‘bruxas’
queimadas], Syllabus, índice livros proibidos, condenação, silenciamento,
censura por todo canto. Ela passa a enxergar heresia em todo canto. Assim chega
ao absurdo de condenar Santa Joana d’Arc à fogueira por se vestir de homem! A
inquisição é um inferno: todos têm medo de todos, pois todos podem acusar o
outro de ‘heresia’. Uma exasperação ‘a longo prazo’, repercussão impressionante
da política de fechar os olhos e tapar os ouvidos. Para não ver o elefante
passar.
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