Maria Clara Bingemer
Talvez seja um pouco tardia esta reflexão
sobre o Papa Bento XVI já mais de dez dias após sua morte. Outras
preocupações tomam o lugar do tempo do luto mais próximo do falecimento do
pontífice que governou a Igreja Católica por oito anos e depois permaneceu em
Roma como Papa Emérito até o último dia 31 de dezembro de 2022. O cenário
nacional fervilha com as últimas ameaças à democracia e parece não haver outro
assunto. No entanto, me parece que a figura do falecido é por demais
importante para não trazer alguma reflexão sobre sua pessoa.
Por isso mesmo, porque tantas coisas importantes –
positivas e críticas – foram ditas e escritas, atenho-me ao que foi essencial
de meu contato com o teólogo Ratzinger, em cujos livros li e estudei durante
minha graduação em Teologia, e com aquele que se tornou sucessor de João Paulo
II em 2005.
Quando foi anunciada sua eleição pelo cardeal
camerlengo em 2005, confesso que tinha sentimentos não muito claros por dentro.
Por um lado, compreendia que o conclave o tivesse eleito, era o colaborador
mais próximo do papa polonês, o teólogo e pensador refinado, o homem culto que
presidia a Pontifícia Comissão para a Doutrina da Fé. No entanto, pude
conhecer de perto igualmente sua atuação à frente desta comissão e minha
impressão era de uma certa perplexidade diante de algumas punições e restrições
impostas a teólogos que eu conhecia bem de perto e cuja fé profunda e o rigor
teológico admirava. Os dois lados se fizeram sentir naquele momento em que a
Igreja, após 26 anos do governo de João Paulo II, esperava ventos novos.
Dos oito anos em que reinou Bento XVI lembro-me de vários momentos
em que surpreendeu positivamente : a reconciliação com a Companhia de Jesus,
que havia recebido intervenção do antecessor João Paulo II, coisa que tanto
fizera sofrer o querido padre Arrupe; o belo texto da primeira encíclica, Deus
caritas est, onde o intelectual refinado que era Bento XVI não temia
dialogar inclusive com Nietzche, o filósofo tão crítico do cristianismo; a
oração pungente em Auschwitz que se lançava de encontro ao silêncio de
Deus. Haveria outras, muitas mais a mencionar.
Desejo destacar duas ocasiões que me parecem centrais para compreender
por que vejo Bento XVI como alguém surpreendente.
A primeira foi sua vinda ao Brasil para abrir a Conferência de
Aparecida, em 2007. Havia um ambiente de desconforto e temor entre muitos
que trabalhavam e participavam do evento. A Conferência de Santo Domingo,
em 1992, havia sido difícil e penosa. O documento final quase não foi
escrito e divulgado. Graças a circunstâncias várias, entre elas o gênio e
a santidade de Dom Luciano Mendes de Almeida, houve um documento com pontos
positivos, mas que parecia não levar em conta o sopro profético das
conferências de Medellín e Puebla, como a centralidade da opção pelos pobres.
Temia-se o que poderia dizer Bento XVI. Se o Papa, no discurso de abertura,
pronunciasse uma clara condenação da teologia da libertação, que tinha como
centro a opção pelos pobres, seria realmente muito triste para a caminhada da
Igreja latino-americana.
O Papa falou. Declarou que a fé nos liberta do isolamento e nos
conduz à comunhão com Deus e com os irmãos, implicando responsabilidade para
com o outro. E continuou. Cito literalmente pela importância que
reside nesta frase que mudou completamente o panorama da V Conferência, em
Aparecida: “Neste sentido, a opção preferencial pelos pobres está implícita na
fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com
sua pobreza (cf. 2 Co 8, 9).”
A partir daquele momento encerravam-se as discussões sobre se a opção
pelos pobres seria realmente teológica ou, ao contrário, apenas um subproduto
de um marxismo mal compreendido.
A alguns não caiu bem a afirmação do Papa. Chegaram a retirar-se da conferência.
Para muitos de nós que ali estávamos foi uma lufada de ar fresco e
uma injeção de ânimo. Aparecida retomou a questão dos pobres, dando-lhe a
centralidade devida, e produziu um documento que voltava a trazer esperança
para a Igreja do continente.
Em 2012, encontrava-me em Chicago conversando com o grande amigo e
teólogo maior David Tracy. Meio abruptamente ele me perguntou: “Você acha
que o Papa vai renunciar?” Surpreendida, disse que jamais havia passado
por minha cabeça esta ideia. David me explicou o porquê de suas suspeitas
e sua argumentação não me convenceu. De Chicago viajei a Roma. Fora
convidada a apresentar, ao lado do Cardeal Ravasi e de outros teólogos e
editores, o livro de Bento XVI sobre a Infância de Jesus. Após a
apresentação, fomos todos cumprimentar o autor. Bento XVI nos
recebeu sorridente e alegre com o lançamento do livro. Ao cumprimentá-lo
disse-lhe, referindo-me à Jornada Mundial da Juventude que teria lugar no Rio
de Janeiro, em julho de 2013: “Nós o esperamos no próximo ano, no Rio.”
Ao que ele respondeu com um meio sorriso: “Se Deus me der saúde...”
No dia 8 de fevereiro de 2013, uma jornalista da Globo News me chamou ao
telefone às 8 horas da manhã. Era segunda feira de Carnaval. Ouvi
do outro lado a seguinte pergunta: “Professora, pode falar algo sobre a
renúncia do Papa?” A notícia me deixou perplexa. Pedi uma hora para
inteirar-me e liguei a televisão. Os olhos do mundo inteiro estavam
voltados para Roma e o gesto histórico da renúncia do Pontífice.
O resto é história. O papa Ratzinger explicou ao mundo as razões
de sua renúncia. À medida que o ouvia e lia, sentia crescendo em mim,
juntamente com a surpresa, admiração por ele. É muito difícil
retirar-se quando se vê que chegou o momento. O papa bávaro o fez com
elegância e firmeza.
Seu corajoso gesto abriu o caminho para a primavera de Francisco,
iniciada pouco mais de um mês depois, em 13 de março de 2013. Este
segue o caminho das surpresas, embora de forma bem diferente de seu
antecessor. Que o Papa Bento descanse em paz e Francisco continue
nos surpreendendo ainda por bastante tempo.
--
Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
autora de “Santidade: chamado à humanidade” (Editora Paulinas), entre outros
livros.
Copyright 2023 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a
reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou
impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
Maria Helena Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
mhgpal@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário