Por Eduardo
Hoornaert
De que
modo o Papa Francisco faz uso da palavra? Ela indica, designa, afirma/nega, ou,
pelo contrário, não designa nem indica, mas questiona, suscita dúvidas? É uma
palavra ‘fácil’ ou ‘difícil’? Mal se avalia a importância dessa questão. O que
acontece nestes dias entre o Papa Francisco e alguns dos Cardeais ‘dissidentes’
configura uma luta que, afinal, ultrapassa as contingências do papado católico
e mesmo do cristianismo, para alcançar a questão global do tipo de convivência
que estamos construindo nas sociedades em que vivemos.
A
palavra fácil.
Os
primeiros anos do Papa Francisco foram relativamente tranquilos. Ele
pronunciava palavras que agradavam a muitos, dentro de fora da igreja. Até
brincava com palavras. Virou um papa ‘pop’. Mas com os dois Sínodos sobre a
Família (2014 e 2015), a maré começou a virar e se ouviu dizer que ele é um
Papa ‘de palavras difíceis’. O mesmo aconteceu com o texto Amoris Laetitia de
2016. Palavras inusitadas para um papa, que suscitaram dúvidas e inseguranças.
A
frente anti-Francisco, que se revela com crescente desenvoltura, costuma usar
palavras designativas, como demonstro em seguida por meio de alguns
exemplos de declarações recentes, pronunciadas por cardeais ou outras
autoridades políticas, e que realço aqui usando letras em negrito.
- Num
encontro na Plaza del Duomo em Milão, no dia 20 de maio pp., Matteo Salvini,
que acaba de ganhar as eleições presidenciais na Itália com mais de 34 % dos
votos, discordou abertamente da palavra do Papa, que disse, num encontro no dia
18 do mesmo mês com jornalistas: O Mediterrâneo está se tornando um
cemitério. Na presença de Marine Le Pen da França (a extrema direita
que acaba de crescer na França nas eleições de 26/05), e Geert Wilders da
Holanda, Salvini beijou um rosário e contestou diretamente o Papa declarando:
‘À Sua Santidade eu digo que a política deste governo está
eliminando os mortos no Mediterrâneo com eficiência e caridade
cristã’. Numa outra oportunidade, ele mostrou uma camiseta na qual figuram as
palavras: ‘meu papa é Bento (XVI)’.
- O
Sr. Steve Bannon, ex-assessor de Trump nas eleições de 2017, dá mostras de
querer dirigir seus holofotes para a Itália de Salvini Tem um plano ambicioso
na cabeça: fundar uma ‘Escola de novos gladiadores em defesa do Ocidente’, para
formar líderes católicos nacionalistas e populistas, intitulado ‘Instituto
Dignitatis Humanae’. Para tanto, ele tentou estabelecer tal Escola num antigo
Mosteiro de cartuxos (fundado em 1204) nas montanhas de Trisulti, a uma hora de
carro de Roma. A assistência eclesiástica seria dado pelo Cardeal americano
Raymond Burke. Pelo momento, ele está com problemas com o fisco, mas não parece
que ele pensa em abdicar do plano. De qualquer modo, em relação Papa Francisco
ele é direto: ‘O papa é o inimigo’.
- O
Cardeal Burke, que acabei de mencionar, pronunciou, no dia 18 de maio pp., uma
palestra na Universidade Angelicum de Roma, que foi transmitida pela TV CNS
(Community Network Services), um canal abrangência mundial, em que voltou ao
tema da imigração. Afirmou que essa imigração deve ser entendida dentro do
quadro geral de um movimento que ‘constitui uma invasão muçulmana
no mundo ocidental’. E explica: ‘O Islãse vê destinado a governar o
mundo’. ‘Isso ameaça a cultura verdadeira que consiste no
respeito pela vida, respeito pela moral sexual e culto devido a Deus’. Por
isso, ‘limitar a imigração massiva muçulmana é um exercício
responsável de patriotismo’. E, na mesma linha: ‘desobedecer ao papa é um
dever, caso ele exercer seu poder de modo pecaminoso’.
- O
Cardeal alemão Gerhard Müller, ex-Prefeito da Congregação para a Doutrina da
Fé, entra no coro com palavras não menos contundentes: ‘as palavras do
Papa não sãopalavras de um estadista. O papa não resolve
nada, não decide nada’. Nisso, ele comenta a famosa frase do Papa
Francisco quem sou eu para impedir a um homossexual de se aproximar de
Deus?, para insinuar que o papa seria adepto de permissividade
sexual. Ora, insiste Müller, quem sente atração por uma pessoa do mesmo
sexo tem de guardar a castidade. Senão, afirma ele, ele adere,
sabendo ou não, ao movimento gay, que é de caráter totalitário
e intenta desconstruir a família. O discurso do Cardeal Müller
estabelece, pois, uma ligação entre permissividade homossexual e totalitarismo.
Aqui,
o Cardeal tenta arrastar o Papa para a arena de uma contenda com a opinião
pública que, sempre mais, considera o casamento gay como algo normal. Segundo
investigações da Organização das Nações Unidas (ONU), os menores de quarenta
anos (os chamados ‘millenians’) consideram a orientação sexual como um dos
traços variáveis do ser humano, sem maiores considerações de ordem moral. Assim
como a cor da pele, a nacionalidade, etc.
Os
cardeais que citei acima deixam entender que se sentem irritados com
determinados gestos do Papa Francisco. Eles o consideram um ‘populista’, que
manda parar o papamóvel para abraçar um doente em seu carrinho, visita padres
casados, oferece carona a refugiados em Roma, conversa com ortodoxos, judeus,
islamitas, e até ateus, beija a face de um cego, lava os pés de criminosos
presos, figura em fotos ao lado de camponeses peruanos e indígenas colombianos.
Decididamente, Francisco nem sempre demonstra a moderação que convém ao cargo.
Parece se deixar levar por ‘extremos’. Não se revela um líder sensato, de
discursos razoáveis e ponderados.
Coisa
mais insidiosa aparece em abril 2019. O Papa resignatário Bento XVI estaria
segurando a bandeira de uma oposição não confessa ao Papa Francisco. O estopim
foi um texto, intitulado ‘Reflexões’, que Bento XVI mandou entregar, em final
de fevereiro de 2019, ao Papa Francisco e ao Secretário do Estado Cardeal
Pietro Parolin. Nesse texto, Bento XVI atribui a pedofilia no
clero à ‘frouxidão doutrinal e a atitudes laxistas frente a homossexuais’. Como
nem o Papa, nem o Cardeal Secretário reagiram diante de tais ‘Reflexões’, elas
foram entregues aos grandes meios de comunicação no mês de abril. Como escrevi
acima, Salvini aproveitou da confusão para exibir uma camiseta com os dizeres:
‘Meu papa é Bento’.
Por
que tanto redemoinho? Em que sentido a palavra do Papa Francisco incomoda?
A
palavra difícil.
O Papa
Francisco incomoda por pronunciar palavras difíceis. Cito aqui algumas.
1. Quem
sou eu para julgar?
A
frase foi pronunciada no avião de volta da Jornada da Juventude no Rio de
Janeiro em 2013, poucos meses depois da eleição. Continua sendo, até hoje, a
mais famosa frase do Papa Francisco: Quem sou eu para
impedir um homossexual de se aproximar de Deus?Uma frase que implica que
seus ouvintes tenham a capacidade de fazer uma leitura contextualizada dos
trechos do Antigo Testamento que tratam da assim chamada ‘sodomia’, como Gn 19,
15 (Ihwh faz cair uma chuva de súlfur sobre Sodoma); Lv 18, 22 e 20, 13 (que contém
uma condenação formal da ‘sodomia’) e 2Sm 1, 26 (onde se comenta o amor
homossexual entre Davi e Jônatas). O discurso do papa pressupõe, pois, gente
disposta a refletir, estudar, se aprofundar.
2. Não
se deve dar preferência a espaços de poder frente aos tempos,
por vezes largos, dos processos. Nosso poder consiste em colocar em marcha
processos, mais que ocupar espaços.
Outra
frase nada fácil, pois ela sugere a capacidade de se operar uma mudança radical
na pastoral da igreja católica, tal qual foi concebida e realizada desde a
Idade Média. Uma pastoral que consiste basicamente em ‘ocupar espaços’, tanto
territoriais (a paróquia) quanto institucionais (capelanias, assistências
eclesiásticas, diretorias, assessorias), tanto imaginários quanto políticos.
Vejamos em detalhes como isso foi concebido na Idade Média e vigora até hoje:
- O
controle dos tempos da vida. Do berço à morte, o homem vive sob o controle da
religião católica. A hora, o dia, a semana, o ano, a vida, tudo é
‘eclesiástico’.
- O
controle do espaço físico. Não chega a ser total, pois sempre existiram grupos
que conseguiam escapar e viver em espaços próprios, como, na Idade Média, os
boêmios, os goliardos (sacerdotes vagantes) e, de certa forma, os devotos nas
confrarias, e hoje muitos leigos. Esses espaços livres, contudo, nunca
rivalizaram nem de longe com a rede de instituições controladas pelo clero:
cristandade, diocese, paróquia, santuários.
- Um
terceiro espaço ocupado pelo estado eclesiástico é o do ensino. Na Idade Média,
a única formação intelectual era eclesiástica. Nas escolas episcopais e
monásticas não se estudavam ciências humanas como antropologia, sociologia,
psicologia, história, muito menos ciências positivas como física, química,
biologia etc. Mas, em contrapartida, a teologia nas Universidades era
extremamente racional e fomentava o espírito científico, o que criou um espaço
para o posterior cultivo das ciências modernas. Mas, de qualquer modo, o clero
manteve ao longo de muitos séculos o monopólio da escrita. Ser letrado significou,
antes da Revolução Francesa, ser clérigo.
- Um
quarto espaço controlado pelo estado eclesiástico é o da comunicação de massa.
Na Idade Média, quem diz mídia, diz igreja. A Igreja Catedral domina a cidade,
a Igreja Paroquial domina a aldeia. Catedral episcopal e igreja paroquial
constituem os instrumentos midiáticos mais ostensivos da sociedade. A população
mora em torno da igreja. Em certos casos, a catedral é tão espaçosa que a
população inteira nela cabe (como em Paris). Todos contemplam o bispo e sua
corte litúrgica, ficam impressionados com tanta exibição de poder e majestade.
É através desses instrumentos midiáticos que o estado eclesiástico controla a
moral dos habitantes, concretamente através da catequese, do sermão e da
confissão auricular. Chega a controlar laços de parentesco, valorizando o
padrinho de batismo diante do pai biológico.
- Um
quinto setor público ocupado pelo estado eclesiástico é o da saúde pública.
Sucesso garantido: hospícios monásticos nos inícios e em seguida hospitais nas
cidades. Nesse setor operaram, com notável competência, as ordens femininas.
Elas compunham a imagem pública da sociedade, não só nas cidades maiores, mas também
nas aldeias, principalmente nas terras controladas por ordens monásticas.
-
Finalmente, o clero exerceu, durante séculos, controle sobre a morte das
pessoas. A onipresença do espectro do inferno, sendo que só o clero tem
condições de salvar as almas do inferno, abrir as portas do céu, ou pelo menos
do purgatório. O clero providencia o enterro no cemitério em torno da igreja
paroquial, sendo que a freguesia toda sabe que um dia vai ‘repousar’ em torno
dela.
Diante
de tão impressionante painel histórico, o Papa Francisco tem a coragem para
dizer: Não se deve dar preferência a espaços de poder. Trata-se de
incentivar processos, dinamizar a ação, colocar a igreja em marcha: Nosso
poder consiste em colocar em marcha processos, mais que ocupar espaços. Para
avançar na construção de um povo, o tempo é superior ao espaço.
Abandonar
a ideia da centralidade da igreja na construção da sociedade, dar a César o que
é de César, não querer ocupar todos os espaços, colocar em marcha
processos? Militar na construção da justiça e da misericórdia, do encontro
e do diálogo? Eis um programa para valer. Nisso, todos são convocados: crentes
e descrentes, católicos e ateus, cristãos e islamitas, comunistas e liberais.
3. A
igreja em saída.
Abandonar
a pastoral sedentária, andar pelos caminhos do mundo, deixar de lado a pastoral
sedentária. Francisco não estará sugerindo que se
abandone uma pastoral quase unicamente centrada na ‘administração (paroquial)
dos sacramentos, que ela seja gradativamente abandonada, em benefício de uma
pastoral em saída, missionária? Ora, a pastoral sacramental
tem o peso de séculos. O trabalho sacramental na paróquia constitui a própria
razão de ser dos vigários. Sendo habilitados a administrar sacramentos e tendo
em mãos os meios de salvação dos paroquianos, os sacerdotes detêm um poder
considerável. Pois, embora a teologia ensine que os sacramentos são sinais do
amor de Deus, eles são vividos, durante séculos, num enquadramento de
intimidação, de medo do inferno, da rejeição social, da discriminação. Durante
séculos, ao guardar o monopólio dos sacramentos, considerados indispensáveis à
salvação, o estado eclesiástico suscita na população o terror diante das penas
do inferno, como comprovam sermonários antigos, revelados pela pesquisa
histórica. Os pregadores empurram os recalcitrantes aos sacramentos.
Mas,
com o tempo, o medo do inferno vai cedendo. Pessoas mais formadas se declaram
independentes e abrem um novo espaço. Antes da Revolução Francesa, por exemplo,
mais de 90% dos franceses iam à missa todos os domingos. Vinte anos depois, o
número era de 20%. Antes da Revolução, os que não recebiam os sacramentos eram
fichados na polícia e tratados como suspeitos. Tudo mudou em poucos anos, o que
mostra que estava em marcha um processo amadurecido.
Ao
falar em igreja em saída, o Papa constata implicitamente que hoje
já não se frequentam os sacramentos como antes. É de se lamentar, sem dúvida,
pois – afinal - os sacramentos são gestos de Deus bondoso e misericordioso. Mas
eles foram manipulados pelo estado eclesiástico durante séculos, o que faz
compreender a atual reação contra sentimentos de dependência e obediência, a
favor da liberdade.
O Papa
sabe que, na mente de grande parte do clero, a diminuição da prática
sacramental é interpretada como uma decadência. Alguns clérigos perdem a
necessária motivação para continuar em trabalhos paroquiais. Para outros, os
sacramentos continuam sendo o caminho de seu relacionamento com o povo, a
motivação principal de seu trabalho. Muitos ainda entendem que o sacerdote está
na paróquia para celebrar os sacramentos. Para eles, a perda de frequência aos
sacramentos, por parte dos leigos, chega a ser algo dramático. Mesmo assim,
Papa Francisco bate duro: paróquia não é cartório.
4. Não
podemos continuar insistindo só em questões referentes ao
aborto, ao casamento homossexual e ao uso de contraceptivos
Uma
das artimanhas de um sistema político consiste na articulação do ‘discurso de
desvio’. Questões laterais são insistentemente abordadas, enquanto se deixa a
passagem livre para operações políticas nada favoráveis à maioria da população.
Sem desmerecer a importância das discussões sobre aborto, casamento
homossexual, uso de contraceptivos, imigração, há de se dizer que elas podem
ocultar o que está realmente acontecendo nas atuais sociedades: a transferência
da ‘riqueza das nações’ para as contas bancárias de poucos indivíduos
extremamente ricos. Enquanto a TV enche os noticiários com assuntos de moral, a
depredação da riqueza de grande maioria da população, em benefício de poucos,
prossegue seu livre curso. A crescente desigualdade social não aparece no
discurso hegemônico. Não se fala em controle fiscal das riquezas de grandes
consórcios financeiros, não se fala em imposto progressivo. Fala-se em ‘imposto
fixo’ (flat tax), igual para todos, com isenções que não aparecem na tela.
O
Papa, embora não fuja de temas como migração, pedofilia, etc., detecta um
movimento de desvio no modo em que esses temas costumam ser abordados nos
noticiários. No tocante à pedofilia no clero, ele tem a lucidez e a coragem de
afirmar que não basta elaborar regulamentos punitivos, mas que precisa encarar
o encobrimento de crimes clericais, uma prática generalizada,
como comprovam os noticiários. Esse encobrimento não é algo casual, expressa o
funcionamento real do estado eclesiástico. Aqui, Francisco encara, com certo
temor, um sistema que se formou ao longo de séculos, o paradigma do ‘bem da
igreja’, um poder que praticamente se identifica com a igreja. Nos documentos
oficiais de autoridades eclesiásticas, pode-se substituir o termo ‘igreja’ por
‘estado eclesiástico’. O sentido permanece o mesmo. Alguns milhares de pessoas
representam 1,3 bilhão de pessoas, ou seja, aos católicos espalhados pelo
mundo. Ao tomar resolutamente partido por essa maioria, Francisco não tem por
onde fugir: ele tem de encarar o sistema eclesiástico. Ele tem de saber resistir
à maioria do clero, ao stablishment da Cúria Romana.
Com
passos calculados, ele afirma, no recente Decreto ‘Praedicate Evangelium’,
editado em maio 2019, que a Cúria Romana não é um órgão a ‘auxiliar o papa na
administração da igreja’, mas um órgão missionário, a serviço da igreja
em saída. Não é pouca coisa, pois com isso o Papa enfrenta regulamentos que
remontam ao ano 1588, logo depois do Concílio de Trento, quando se estruturou a
Cúria como organizadora do poder central católico frente ao luteranismo e
outros movimentos centrífugas. Regulamentos não revogados na reforma da Cúria
empreendida em 1988 pelo Papa João Paulo II (‘Pastor Bonus’). No momento em que
Francisco declara que a Cúria Romana deve estar ‘ a serviço do colégio
episcopal’ no tocante à evangelização e à missão, ele provoca uma turbulência
de resultados imprevisíveis.
5. Lutero
não se equivocou, o Islã pode ser considerado uma ‘verdadeira religião’, o
divorciado pode participar da eucaristia, o celibato pode ser questionado,
a mulher merece um lugar mais importante na igreja, há aborto e aborto, a união
entre homossexuais não é, em si, pecaminosa.
Quem
sou eu para julgar o posicionamento de Lutero? Quem sou eu para me pronunciar
sobre o Islã? Quem sou eu para mexer com a vida de um divorciado? Quem sou eu
para dizer à mulher quantos filhos ela deve ter e como ela tem de se comportar
na igreja? Quem sou seu para dizer que o sacerdote deve ser necessariamente um
celibatário? (Quem sou eu para dizer que o candomblé não é uma ‘verdadeira religião’?).
Palavras
diametralmente opostas a um discurso hoje hegemônico nos grandes meios de
comunicação e que o escritor americano Samuel Huntington resume na expressão
‘conflito de civilizações’. Enquanto assessores de líderes mundiais
confidenciam que um enfrentamento global entre superpotências está na agenda e
enquanto se realizam articulações em vista a uma ‘terceira guerra mundial’, o
Papa sinaliza que é possível apagar os focos da terceira guerra mundial por
meio de uma política de ‘encontro entre as civilizações’. Esse seu
posicionamento é importante, pois sua voz é potencialmente ouvida por não menos
de 1,3 bilhão de pessoas (os católicos), o que não é pouca coisa, para não
contar os que não são católicos e ouvem o papa.
6. O
Lawfare, além de colocar a democracia dos países em sério risco, é utilizado
para minar os processos políticos emergentes e incentivar a violação
sistemática dos direitos sociais.
Pronunciada
numa Conferência de Imprensa no dia 4 de junho de 2019, essas palavras do Papa
Francisco demonstram que ele está em ‘plena luta pela palavra’. O termo
‘lawfare’, que provém dos anos 1970, significa ‘guerra jurídica’. A lei vira
arma política, manobras juridico-legais substituem força armada. Eis o modo
pelo qual o poder do estado frequentemente opera em nossos dias, incentivado
por vitórias políticas de líderes como Trump, Bolsonaro, Salvini e outros.
Nos
primeiros anos de seu pontificado, era principalmente em suas conversas no
avião, de volta de uma viagem internacional, que Francisco costumava se
‘soltar’. Como na famosa frase de 2013: quem sou eu para julgar? Ou
em 2015, quando ele brincou: os católicos não são obrigados a se
reproduzir como coelhos. Ou ainda em 2016, quando ele disse que o
então candidato à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, não é cristão (ao prometer construir um
muro na fronteira com o México).
Ultimamente,
porém, nas coletivas de imprensa a bordo, o Papa está se mostrando
mais comedido. A respostas, nestes dias, nada mais são que reiterações de
coisas já ditas. Isso parece denotar um crescente clima de tensão nos altos
escalões da hierarquia católica. De reconhecidamente espontâneo e aberto,
incentivador de debates e disposto a resolver questões difíceis em público,
Francisco se mostra ultimamente mais contido. A impressão e que ele se sente
acuado. É nesse sentido que o jornalista italiano Marco Politi, um dos
melhores conhecedores do Vaticano, escreve que o Papa, atualmente, fica
‘isolado da igreja’ (‘La Solitudine di Francesco’, Editori Laterra, 2019).
A luta
pela palavra.
Eis a
luta pela palavra em pleno curso. Uma luta que se situa sempre mais num cenário
de Lawfare, Fake News, Twitters, enfim, no cenário político criado pelos novos
recursos da comunicação eletrônica.
Um
exemplo? Na preparação das recentes eleições europeias de 26 de maio de 2019,
máquinas produtoras e divulgadoras de Fake News (outro nome de ‘palavra fácil’,
‘palavra que se pretende designativa’) despejaram nada menos de 3 bilhões de
falsas notícias nas telas dos eleitores (daria 20 doses para cada eleitor).
30.000 máquinas espalharam durante semanas seu veneno tóxico pela Europa
inteira. Ainda bem que os responsáveis por Facebook, Google, You Tube, Instagram
e Twitter tenham esboçado uma reação e tenham eliminado 1, 6 bilhão de
visualizações (trolls) na Espanha, 100 milhões na França, 900 milhões na
Itália, 100 milhões na Alemanha, 200 milhões na Polônia, 100 milhões no Reino
Unido. Esse pequeno exemplo mostra que no futuro teremos de ‘lutar por
palavras’, a favor do uso correto delas e contra seu abuso para fins
interesseiros. Todos e todas sabemos que a Internet veio para ficar e a
humanidade terá de lidar com palavras veiculadas por ‘máquinas’ sempre mais
potentes e penetrantes na intimidade das mentes.
A
sociedade, até hoje, parece meio atordoado com esse novo modo de combate. Daí a
conveniência de cavar mais fundo numa questão filosófica: como se transmite (ou
não se transmite) a verdade por meio da palavra? A transmissão da palavra e sua
relação com a verdade.
Para
que você entenda melhor onde quero chegar, realcei acima alguns verbos
usados pela ala da hierarquia que se opõe ao Papa, citando-os em negrito:
‘a imigraçãoconstitui uma invasão’; ‘ o Islã se vê
destinado a governar o mundo’; ‘o Islã ameaça a
cultura verdadeira’; ‘as palavras do Papa Francisco não são palavras
de um estadista’; ‘o movimento gay é de caráter totalitário, intenta destruir
a família’; ‘a pedofilia provém de frouxidão doutrinal e
atitude laxa diante da homossexualidade’. Palavras de ordem designativa.
As
expressões usadas pelo Papa Francisco são manifestamente de outra ordem. Como
relatei acima, Francisco se expressa por meio de frases como: quem
sou eu para julgar?,não se deve dar
preferência, a igreja em saída, não podemos continuar
insistindo.., Lutero pode estar certo, o divorciado pode participar
da eucaristia, etc. Essas duas últimas frases não hão se ser
interpretadas num sentido designativo, mas num sentido questionador: ‘será que
Lutero está certo? Será que um divorciado pode pensar em participar da
eucaristia?’. O mesmo se diga a respeito de conhecidas palavras de Francisco
acerca do celibato, da participação de mulheres na igreja, da validade do Islã,
da contestação por parte de Lutero, etc.
Enfim,
o papa não designa. Ele questiona, exorta, convida, faz refletir. Mas não
define.
Qual o
sentido dessa diferenciação? O que os filósofos têm a dizer sobre esse tema?
Entremos por uns instantes em território filosófico.
Desde
Aristóteles, os filósofos, ao tratar da cognição, recomendam cuidados com
enunciações designativas. Nem falo de Sócrates que é mais que claro nesse
ponto. Ao constatar que nós, humanos, conhecemos por meio da informação,
seja direta, por meio dos cinco sentidos, seja indireta, por falas, escritas ou
imagens, esses filósofos nos advertem diante dos possíveis engodos causados por
enunciações designativas. Aristóteles, em sua ‘Ética’, ao afirmar que a verdade
consiste em detectar, numa mensagem recebida, ‘aquilo que é’ (id quod est), não
deixa de alertar para o imperativo ético: nem sempre ‘aquilo que é’ me agrada,
está em conformidade com meus interesses. Como me comporto diante do que ameaça
se contrapor aos meus interesses? Pois não faltam, na vida da gente,
imperativos não éticos, interesses pessoais, vantagens financeiras, lutas pelo
poder, exercícios do poder, obediência a ordens dadas, compromissos de vida já
assumidos, opção por modelos autoritários, ou simplesmente acomodação com
situações existentes.
Discursos
designativos podem, na realidade, servir para emitir uma ordem, expressar um
desejo, uma exortação, um sentimento, uma intuição, uma imaginação, um sonho,
um projeto, um cálculo, etc. Revestidos de objetividade, esses discursos não
raramente ocultam intencionalidades no sentido de exercer um domínio sobre as
mentes, firmar consensos, enfim, exercer poder sobre pessoas.
Como
se perpetuam esses consensos ao longo da história? Principalmente pela família.
Ela forma um elo de transmissão de mensagens de geração em geração. Como
realçou Freud em suas penetrantes análises, discursos emitidos por instâncias
que parecem merecer respeito, penetram fundo no seio da família e assim moldam
nosso modo de pensar desde a infância. O fator família marca as vidas humanas.
Em não poucos casos, as molda definitivamente. Assim afloram dentro de nós
sentimentos aparentemente espontâneos, na realidade transmitidos de geração em
geração e por isso mesmo pouco controláveis. Quem não estranha ver um
passageiro de chinelos entrar num avião? Quem não estranha ver um negro segurar
um diploma de estudos universitários ou dirigir um carro de luxo? Reações
emocionais difíceis de serem analisadas, mais difíceis ainda de serem superadas.
Freud, em seu tempo, apelou para a psicanálise, a fim de penetrar nesse
universo. Muitos discursos, emitidos por poderes políticos e econômicos,
combinam com o que aprendemos em casa quando éramos crianças. Os imperativos
nada éticos que subjazem a esses discursos não são fáceis de serem detectados.
Isso torna a vida humana complexa, a busca da liberdade e da autonomia uma
verdadeira aventura. Muitos sucumbem no caminho e, de tanto ver televisão, se
metem num labirinto tão intricado de informações contraditórias que não
encontram mais a saída. Confusos e desorientados, desacostumados a refletir,
acabam se rendendo. Não querem mais pensar. Quem contempla o atual cenário
cognitivo, verifica com espanto quão facilmente as pessoas se deixam prender
nas redes de discursos enganosos. Uma situação que só se explica pela forte
adesão emocional a palavras designativas.
Assim
compreendemos o fato aparentemente contraditório de pobre votar em rico ou em
candidato que defende os interesses dos ricos. Isso tem desnorteado mais de um
observador, mas Maquiavel explica o fato dizendo que as pessoas se rendem
facilmente a enunciados que lhes parecem confiáveis. Voltaire ainda acrescenta:
‘mentez, mentez toujours: il en restera toujours quelque chose’ (mintam, mintam
sempre: algo há de ficar). E Goebbels, ministro da informação do governo
nazista, completa: ‘uma mentira repetida mil vezes se torna verdade’. Ninguém
passa ileso pela prova da veracidade.
Assim
compreendemos que, para um católico comum, fica bem mais fácil entender o
Cardeal Burke, o Cardeal Brandmüller ou o Cardeal Müller, que captar o sentido
das palavras do Papa Francisco. Os primeiros dispensam um pensamento mais
aprofundado, seguem a rotina de palavras sempre repetidas, dizem as coisas de
sempre. Nada mais fácil, para um cardeal, que repetir palavras ouvidas pelos
católicos desde a infância. Resulta bem mais difícil compreender as palavras de
um papa que diz que Lutero não se equivocou, o Islã pode ser uma
‘verdadeira religião’, o divorciado pode participar da eucaristia, o celibato
pode ser questionado, a mulher merece um lugar mais importante na igreja, há
aborto e aborto, a união entre homossexuais não é, em si, pecaminosa, etc.
Hoje
temos, para nos apoiar, os filósofos linguistas, os que, ao longo do século XX,
provocaram a ‘reviravolta linguística’, em muitos casos como resposta ao uso da
palavra por parte de ditadores europeus, tanto na Rússia como na Alemanha,
Itália, Espanha e Portugal. Hoje temos Bakhtin, Ricoeur, Bourdieu,
Wittgenstein, Zizek, Noam Chomsky.
Lembro
que, em 1945, logo depois do desfecho da Segunda Guerra Mundial, Ludwig
Wittgenstein reuniu nada menos de 693 aforismos para nos ajudar a superar a
ingenuidade com que discursos designativos costumam ser acolhidos na sociedade.
Posteriormente publicados sob o título ‘Investigações filosóficas’ (Vozes,
Petrópolis, 2005, 4a ed.; ou ainda: Nova Cultural, São Paulo, 1994. Veja também
seu ‘Sobre la Certeza’, Gedisa, Barcelona, 1995), esses aforismos permanecem um
remédio eficiente contra a sedução da palavra.
Esses
filósofos linguistas, de diversas matizes, nos propõem o exercício constante de
limpeza da mente. Há de se tomar um antídoto contra ‘Lawfare’, ‘Fake News’,
etc. Ninguém se engane, essas novas técnicas de comunicação vieram para ficar e
se desenvolver sempre mais, já que repousam sobre um saber em pleno
desenvolvimento, que ainda não revelou todas as suas potencialidades. Vivemos
em sociedades cada vez mais ‘informáticas’, onde não só enormes conglomerados
informativos derramam sobre nós diariamente um fluxo ininterrupto de
informações, mas onde o Twitter também permite que cada um(a) de nós emita, por
sua vez, informações e afirmações, a seu bel prazer.
Um
exercício constante, uma meditação, momentos de reflexão diária, um exercício contínuo
e diário de domínio inteligente sobre o pensamento, tão necessário – ou até
mais – que o exercício físico que fazemos diariamente para ficar em forma.
Num
texto próximo, sob o mesmo título, me proponho tratar da luta pela palavra nos
inícios da história do cristianismo. Isso significa que o Papa Francisco está
inserido numa longa história de luta pela palavra evangélica.
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