A nossa época testemunha o franco recuo do espaço privado. A linha que divide o espaço público do espaço privado tornou-se milimetricamente estreita, quase invisível, facilmente transponível. Nossos espaços de natureza privada passaram por reconfigurações que os tornaram facilmente permeáveis.
Os labores do dia, antes intermitentes, assumiram a forma de um rigoroso continuum. Criamos um jeito de viver que desconhece intervalos. Estranhamente, temos tempo para tudo e não temos tempo para nada. Nunca chegamos, nem partimos, pois já ansiamos partir antes mesmo de chegar. Tornamo-nos absurdamente frenéticos!
A tecnologia, sobretudo a internet, sorrateiramente dominou-nos. Qual de nós consegue conversar longamente com alguém sem que, a cada cinco minutos, precise pedir licença para ler as mensagens que vão chegando ao celular? Raramente conseguimos estar verdadeiramente em um único lugar, razão por que nossas experiências costumam ser rasas e infrutíferas.
Parece-me, assim, de toda pertinência esta pergunta feita por Jesus: “Que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua vida?” (Mc 8,36). Não raras vezes tenho a impressão de que, a despeito de nossas conquistas, estamos perdendo a vida. Recuso-me a acreditar que a vida pode ser vida sem que pratiquemos “a arte da lentidão” (expressão cunhada por José Tolentino Mendonça).
A nossa vida carece de uma serenidade que nos habite e na qual possamos habitar. Urgimos por momentos de silêncio e quietude que criem o caminho por meio do qual adentremos ao mais íntimo do nosso interior e, chegando lá, fechemos a porta a fim de que experimentemos aquele refrigério que só podemos saborear no secreto de nós mesmos.
Nunca antes estivemos tão necessitados de desenvolver uma arte do silêncio. Como escreve Clarice Lispector: “Calar-se é nascer de novo/A verdade é sempre um contato interior e inexplicável”. O silêncio, muito mais que as palavras, aproxima-nos da verdade acerca de nós mesmos, fomenta a possibilidade de aprofundar e reelaborar nossas experiências cotidianas, de parirmos a nós próprios, de renascermos...
“A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa”, escreveu Mário Quintana. Sim, a vida é a nossa maior obra. E fazer a vida requer um abrandamento interior por meio do qual consigamos ser libertos dos automatismos do nosso tempo. Façamos as pazes com o tempo. Devemos resgatar o hábito de caminhar devagar, de modo que a pressa de chegar não nos impeça de fruir a beleza do caminho. A vida se faz devagar.
[1] Kinno Cerqueira é pastor batista e assessor do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) na área de estudos bíblicos.
Reflexão maravilhosa
ResponderExcluirMuito bom e profundo o texto do pastor Kinno, que tanto admiro pela sua simplicidade, autenticidade e dedicação aos evangelhos, com destaque para Jesus Cristo.
ResponderExcluirDe fato, o tempo passa numa velocidade desenfreada e não conseguimos administrar bem o tempo que temos. Isso porque muitas vezes damos prioridade às coisas fúteis, sem substância alguma que as mídias digitais nos oferecem. Esquecemos muitas vezes de nós mesmos, de nossos sonhos, se é que ainda o temos, de nossos projetos. Não temos mais tempo para eles. Não paramos para escutar o outro, para dialogar, para se aproximar e fazer novas amizades. Exupéry já dizia "crescemos na medida em que nos relacionamos". Mas como nos relacionamos hoje em dia, através das redes sociais? Onde temos milhões de amigos, e não temos ninguém?
E por não sabermos administrar bem o nosso tempo, e não priorizar o que realmente importa, visualizamos um desfile de tragédias causadas pela emoção, pela falta de diálogo, de atenção, de comunicação.
Que pena, que o mundo esteja assim e que nós estejamos mergulhado nele. Que aprendamos com Jesus a valorizar as pequenas coisas, e usar o nosso tempo, como disse o pastor Kinno com a lentidão que necessitamos.
Texto maravilhoso, que nos faz refletir,questionar, advertir....
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