Por Marcelo
Barros
Nas últimas
décadas, em todo o mundo, grupos ecológicos e movimentos sociais insistem na
defesa do que chamam de Bens comuns.
Muitas vezes, os bens comuns são chamados de “recursos”, como água é vista como “recursos hídricos”. Governos falam de “reservas ecológicas”. Bens comuns seriam
“propriedades comuns”. Nessa
perspectiva, o tema dos bens comuns se torna questão de propriedade.
Essa é uma
visão utilitária dos bens comuns. É como
se eles existissem em função do uso que deles, nós, seres humanos fazemos. De
fato, no mundo inteiro, através da comercialização da Terra, da Água e de toda
a natureza, se provoca forte e acelerada destruição dos ecossistemas. Além
disso, se marginalizam as comunidades originárias e culturas comunitárias.
Cientistas da ONU e organismos internacionais chamam
a atenção para a ameaça de extinção que pesa sobre as calotas polares que cada
vez mais diminuem de extensão e profundidade. Oceanos e mares se encontram
contaminados por resíduos de petróleo. Rios e lençóis freáticos de águas
subterrâneas estão ameaçados. Assim podemos continuar falando do ar que
respiramos e do conhecimento produzido pela humanidade. Até as areias das
praias estão desaparecendo.
Podemos resumir: o planeta Terra pode ser a casa
comum de mais de 7 bilhões de pessoas humanas. Pode acolher 80 milhões de
pessoas a mais a cada ano, mas não resistirá à ganância das empresas
mineradoras que destroem regiões inteiras de florestas, rios e montanhas em
busca de minérios. Não suportará a destruição da Amazônia em benefício do
agronegócio. Não sobreviverá a um sistema econômico que concentra riquezas nas
mãos de 5% de uma elite predadora que possui o equivalente à metade de toda a
humanidade e quer sempre mais.
No hemisfério norte, a defesa dos bens comuns
insiste mais na proteção das águas e do ar, além de elementos que devem ser do
uso comum que a própria Vida indica (conhecimento, direito à saúde, etc), mesmo
se todos compreendem que isso faz parte de uma nova economia política. Já em
2009, a Academia Sueca deu o prêmio Nobel de economia a Elinor Ostrom que
escreveu um livro sobre a economia
política dos bens comuns, ou seja, o
problema da sua governabilidade comum.
Na América Latina e no Brasil, a perspectiva contém
o cuidado ecológico em relação à natureza, mas a preocupação é mais social. No
Fórum Social de Belém, (2009), em um debate sobre esse assunto, Alan Lipietz
declarou: “Bens comuns não são coisas.
São relações sociais” (citado por Jean-Pierre Leroy, Mercado ou Bens
Comuns, FASE, 2015).
O Brasil tem uma longa tradição de uso comum da
terra e dos recursos naturais que vem dos povos indígenas, das comunidades
afrodescendentes e mesmo de migrantes europeus que vieram para cá, no século
XIX, como colônias. Para essas comunidades, a Terra deve ser vista como território, ou seja espaço vital e lugar
de vida comum. Mais do que propriedade. Por isso, a luta pelos bens públicos comuns tem de assumir a defesa das comunidades originárias e suas
culturas.
Na luta pelos bens comuns, é bom nos lembrarmos da
famosa e sempre citada carta que, em 1855, o cacique Seattle, da tribo
Suquamish, do Estado de Washington, enviou ao presidente dos Estados Unidos
(Francis Pierce). O cacique respondia à proposta do governo de comprar o
território ocupado pelos índios. E a carta afirmava: “Como pode-se comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal ideia é
estranha. Nós não somos donos da pureza do ar ou do brilho da água. Como pode
então comprá-los de nós? ... Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada
folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas
escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e
na crença do meu povo”.
Ao reler essa carta, nos damos conta de que
defender os bens comuns (terra, água, ar, florestas, etc) significa
politicamente defender as comunidades que vivem em comunhão com os bens comuns,
tendo-os em comum e não como propriedade ou mercadoria a ser comercializada e
sim como dons divinos, como a carta do cacique Seattle revela.
É necessário incorporar uma visão cultural –
poderíamos chamá-la espiritual que responde diferentemente à pergunta que está
por trás da luta pelos bens comuns. A
quem pertencem os bens comuns? Na lógica capitalista se responderá: a quem
os comprar. Na lógica ecológica moderna se pensa: À humanidade ou à
coletividade que deles cuida e os administra.
As tradições espirituais dos povos originários respondem:
não pertencem a ninguém, porque não são da ordem das coisas que possam
pertencer. São as comunidades originárias que pertencem à mãe Terra, à mãe
Água, ao avô Sol, ao ar e a toda a natureza que nos cerca. Os bens comuns são
bens da natureza. São bens não no sentido
de posse, mas de dádiva. São
presentes. Não podem ser mercadoria. A espiritualidade bíblica dirá: São dons
de Deus que, por ele nos ter dado, nem de Deus são mais. O salmo canta: “Os céus são de Deus, mas a terra ele a
entregou aos seres humanos” (Sl 115, 16). É nossa responsabilidade
defendê-los, sempre sabendo que de todos os bens públicos comuns, o mais
ameaçado e frágil são as comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, etc)
e sem elas será impossível preservar e cuidar dos bens (dons) gratuitos da
natureza.
MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br
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