Maria Clara Lucchetti Bingemer
Os Estados Unidos surpreendeu o mundo
e também seus aliados ao assegurar a saída do Afeganistão de suas tropas,
diplomatas e cidadãos. Outros países estrangeiros procederam da mesma
forma. E os afegãos, aterrorizados com a chegada do novo governo, despertaram
a compaixão mundial ao buscar desesperadamente os aeroportos e outras caminhos
para deixar o Afeganistão.
Embora os dirigentes do Talibã tenham
declarado que os direitos humanos serão respeitados, reina a apreensão em quase
todas as esferas, dentro e fora do país de que tal não aconteça.
Há um segmento da população que nesse
momento se encontra especialmente presente no coração de todos: as mulheres e
meninas afegãs, que com a chegada do regime de força, veem-se ameaçadas de
perder liberdade e direitos duramente conquistados nos últimos
anos.
Em universidades afegãs, professoras
e alunas se despedem por ter certeza de não poder manter as atividades
acadêmicas. O Talibã segue à risca uma interpretação da lei islâmica,
segundo a qual as mulheres não devem frequentar lugares públicos, como escolas
e universidades; não podem sequer sair à rua se não forem acompanhadas por uma
pessoa do sexo masculino; devem cobrir inteiramente o corpo e o rosto, usando
burca, além de véu.
A ética do Talibã, que não é a
do Islã como um todo nem sequer a da maioria, proíbe que o corpo da mulher seja
visto por outro homem que não o marido. Isso confina as mulheres ao espaço
doméstico e exila-as de possibilidades de crescimento pessoal, como estudos,
trabalho, mobilidade nos transportes, viagens etc. Vestes que não sejam a burca
são terminantemente proibidas, invisibilizando assim corpos e rostos das
mulheres. Para as meninas, vigora a mesma lei. Não podem sequer escolher
seu futuro, que será decidido pelo pai ou, na falta deste, por algum parente do
sexo masculino.
Diante do que pode acontecer com as
afegãs, algumas mulheres ilustres manifestaram sua preocupação e
desacordo. A chanceler alemã Angela Merkel, ao se inteirar da volta do
Talibã a Cabul, qualificou a situação de “amarga, dramática e terrível”. Hillary
Clinton, secretária de estado dos EUA durante o governo Obama, e o
primeiro-ministro canadense Justin Trudeau manifestaram também preocupação.
Nas ruas de Cabul reina o
silêncio. Os cartazes onde aparecem mulheres com rosto descoberto,
maquiagem e cabelos à mostra são cobertos com tinta. Algumas ativistas de
direitos de mulheres e crianças no Afeganistão estão dispostas a conversar com
o governo talibã, para mostrar a riqueza de recursos humanos que são as
mulheres afegãs e tentar negociar a manutenção de direitos e liberdades
conquistadas. No entanto, há insegurança e apreensão no ar. A
vulnerabilidade das mulheres é como um fantasma que hoje paira sobre a cabeça
de cada menina ou mulher afegã.
Em 2009, aos 11 anos, Malala
Yousafzai, ativista paquistanesa, assistiu à chegada do Talibã no Paquistão,
onde vivia, e escreveu em um blog, sob pseudônimo, que se despedia para sempre
de sua escola e amigas, certa de que não poderia mais voltar a estudar. A jovem
se tornou conhecida no mundo inteiro por sua defesa da educação feminina no
Paquistão.
Em 2013, a caminho da escola, Malala
foi baleada na cabeça e teve o olho esquerdo perfurado pelas armas talibãs, que
assim procuravam impedir a repercussão de suas denúncias. O governo
britânico mandou um avião buscá-la no Paquistão e a menina recuperou-se após
várias cirurgias. Aos 17 anos, Malala emocionou o mundo ao receber o
Nobel da Paz, sendo a mais jovem da história a quem foi outorgado este
prêmio.
Apaixonada pelos estudos e pela vida
acadêmica, frequentou a universidade de Oxford, na Inglaterra, de grande
prestígio, onde se formou em filosofia, política e economia, em 2020. Diante da
tomada de Cabul pelo Talibã, a ativista usou as redes sociais para pedir ajuda
das potências globais, sobretudo para mulheres, minorias e defensores dos
direitos humanos.
Impressiona a igualmente trágica
trajetória de opressão da mulher pelo mundo por parte das estruturas
patriarcais e pela força da violência. Susan Sontag, conhecida pensadora
estadunidense, escreveu sobre o fato de a violência e a guerra serem um jogo
masculino do qual as mulheres participam pouco ou nada. Acrescentamos que
a exclusão das mulheres de atividades que poderiam trazer-lhes desenvolvimento
pessoal e social também o é. Assim como o desrespeito e a apropriação indébita
e violenta dos corpos das mulheres, que sistematicamente têm sido velados,
cobertos, invisibilizados, ao mesmo tempo em que suas vozes são
silenciadas. A resistência feminina é muitas vezes punida com a violência
e a morte. O crescimento do feminicídio em tantos países, entre eles o Brasil,
é uma prova cabal.
Que neste momento tão difícil e
delicado que vive o Afeganistão, suas mulheres não percam o que construíram ao
longo de suas vidas; que suas meninas e jovens não sejam impedidas de sonhar e
desejar um futuro e possam a ele ter acesso por meio da educação, do trabalho e
da vida pública. Que os corpos e espíritos femininos possam ser e viver livres,
como livres foram pensados pelo Criador. Enquanto isso não estiver
assegurado, as mulheres do mundo inteiro devem repetir: “Somos todas
afegãs”.
Maria Clara
Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de Teologia Latino-Americana: raízes e ramos.
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