Frei Betto
Em 13 de
agosto Fidel completaria 95 anos. Não saberia dizer quantas conversas privadas
tivemos desde que o conheci, em 1980. Após o nosso primeiro encontro, em
Manágua, fiz inúmeras viagens a Cuba, e acredito que, a partir de 1985, em
quase todas elas surgiu a oportunidade de encontrá-lo.
Mas nunca
tive acesso direto a ele. Enganavam-se aqueles que me ligavam e pediam que eu
fosse portador de uma carta ou de um apelo a Fidel. Não era alguém que eu
pudesse chamar por telefone, embora ele tenha me ligado algumas vezes. Uma
delas foi em 2010, pouco antes da eleição presidencial que daria vitória a
Dilma Rousseff. Eu me encontrava em São Paulo, no Esch Café, em companhia – por
coincidência – do embaixador de Cuba no Brasil e do cônsul em São Paulo. Fidel
queria saber das chances de Dilma, candidata do PT e sucessora de Lula, ser
eleita presidente da República. Os dois diplomatas, surpresos, devem ter
imaginado que tais chamadas a mim fossem frequentes...
Desconfio
que, como eu, ele detestava falar ao telefone. Nas poucas vezes que o vi ao
aparelho - uma, em seu gabinete, para cumprimentar o amigo Carlos Rafael
Rodríguez, que fazia aniversário, e outra, certa noite em Havana, na casa do
embaixador do Brasil, Ítalo Zappa, para cancelar um compromisso - foi tão
sucinto que parecia o avesso daquele homem que, de uma tribuna, era capaz de
entreter a multidão por horas seguidas.
Em 19 de
fevereiro de 2016, eu estava em Havana, no meu último dia na cidade naquela
ocasião, já de malas prontas para embarcar à tarde de volta ao Brasil. Fui pela
manhã à Casa das Américas – a mais importante instituição cultural da América
Latina -, assistir ao filme “Batismo de sangue”, baseado em meu livro homônimo.
Havia marcado almoço com Homero Acosta e, em seguida, tomaria o rumo do
aeroporto.
Para
minha surpresa, Homero chegou bem antes do previsto e me retirou do salão no
qual o filme era exibido. Dalia Soto del Valle, esposa de Fidel, ligara para
ele dizendo que o Comandante tinha interesse em falar comigo pelo telefone. Por
razões de segurança, a chamada não poderia ser por celular. Tínhamos que
retornar ao hotel e, de lá, ligar do telefone fixo do apartamento em que me
hospedara.
Ocorre
que eu já tinha fechado a conta no Meliá Habana. Ainda assim, Homero insistiu
em retornarmos ao hotel. Por sorte, o apartamento permanecia vazio. Homero fez
a ligação e me passou o aparelho. Dalia me disse que, lamentavelmente, “el
Jefe” não pudera me encontrar naqueles dias, mas antes que eu partisse queria
ao menos me saudar por telefone. Fidel, sempre atencioso comigo, indagou se eu
tinha mesmo que retornar ao Brasil naquela tarde, se não poderia ficar mais uns
dias. Expliquei-lhe as dificuldades.
─ Mas,
pelo menos, pode vir aqui para tomar um café? – convidou-me.
Respondi
positivamente. Ao entrar no carro de Homero, nem ele nem Roberto, o motorista,
sabiam onde ficava a casa de Fidel. Um segredo guardado a mil chaves por razões
de segurança. No entanto, eu estivera lá várias vezes e conhecia bem o trajeto.
De modo que se criou uma situação inusitada: um frade brasileiro indicando a um
alto funcionário do Palácio da Revolução e a seu motorista o caminho da
residência do Comandante. Aliás, foi a primeira vez que Homero esteve
pessoalmente com ele, o que se repetiu em minhas visitas posteriores a Cuba,
inclusive no dia em que ele completara 90 anos.
O que
primeiro chamava a atenção quando se deparava com Fidel era a sua imponência.
Parecia maior do que era, e a farda lhe revestia de um simbolismo que
transmitia autoridade e decisão. Quando ingressava em um recinto era como se
todo o espaço fosse ocupado por sua aura. Os que estavam em volta se calavam
atentos a seus gestos e palavras. Os primeiros instantes costumavam ser
constrangedores, pois ficavam todos esperando que ele tomasse a iniciativa,
escolhesse o tema, fizesse uma proposta ou lançasse uma ideia, enquanto ele
persistia na ilusão de que a sua presença era uma a mais na sala e que lhe
dariam o mesmo tratamento amigável, sem cerimônias e reverências. Como na
canção de Cole Porter, ele devia se perguntar se não seria mais feliz sendo um
simples homem do campo, sem a fama que o revestia.
Diz a
lenda que, altas madrugadas, costumava dirigir seu jipe pelas ruas de Havana,
incógnito. Sei que tinha o hábito de aparecer inesperadamente na casa dos
amigos, desde que visse uma luz acesa, e embora alegasse que permaneceria
apenas cinco minutos, não era surpresa se ficasse até que os primeiros raios de
luz prenunciassem a aurora.
Outro
detalhe que surpreendia em Fidel era o timbre de voz. O tom em falsete
contrastava com a corpulência. Às vezes soava tão baixo que seus interlocutores
apuravam os ouvidos como quem recolhe segredos e revelações inéditas. E, quando
falava, não gostava de ser interrompido. Magnânimo, passava da conjuntura
internacional à receita de espaguete, da safra de açúcar às recordações de
juventude.
Porém,
não se deve julgá-lo um monopolizador da palavra. Jamais conheci alguém que
gostasse tanto de conversar como ele. Por isso, não concedia audiências.
Repugnavam-lhe os encontros protocolares, nos quais as mentiras diplomáticas
ressoam como verdades definitivas. Fidel não sabia receber uma pessoa por 10 ou
20 minutos. Quando encontrava um amigo, ficava ao menos uma hora. Com
frequência, a noite toda, até se dar conta de que era hora de ir para casa,
tomar um banho de piscina, comer algo e dormir.
Na
conversa pessoal, o líder cubano procurava extrair o máximo de seu
interlocutor. Quando se entusiasmava com um tema, queria conhecer todos os seus
aspectos. Indagava a respeito de tudo: o clima de uma cidade, o corte de uma
roupa, o tipo de couro de uma pasta ou sobre aviões militares de um país. Se o
parceiro não dominava os detalhes do tema suscitado, o melhor era mudar de
assunto.
Ainda que
iniciasse o diálogo confortavelmente sentado, logo tinha-se a impressão de que
qualquer poltrona era demasiadamente estreita para o seu corpanzil. Eletrizado
pela excitação de suas próprias ideias, Fidel se levantava, andava de um lado a
outro, parava no meio da sala, os pés juntos, o tronco arqueado para trás, a
cabeça tombada sobre a nuca e o dedo em riste; bebericava uma dose cowboy de
uísque, provava um canapé, curvava-se sobre o interlocutor, tocava-lhe o ombro
com as pontas dos dedos indicador e médio; sussurrava-lhe ao ouvido, apontava
incisivo o indicador direito, gesticulava veemente, erguia o rosto emoldurado
pela barba e abria a boca, exibindo os dentes curtos e pálidos, como se o
impacto de uma ideia lhe exigisse reabastecer os pulmões; fitava o interlocutor
com seus olhos miúdos e brilhantes, como quem quer absorver cada informação
transmitida.
Era
preciso muita agilidade para acompanhar seu raciocínio. Sua prodigiosa memória
era enriquecida por uma invejável capacidade de fazer complicadas operações
matemáticas mentais, como se acionasse um computador no cérebro. Gostava que
lhe contassem casos e histórias, descrevessem processos produtivos, traçassem o
perfil de políticos estrangeiros. Mas não admitia que invadissem sua
privacidade, guardada a sete chaves. A menos que o interesse estivesse
relacionado à sua única paixão: a Revolução Cubana.
Sempre
cercado por atentos seguranças, Fidel sabia que não era alvo apenas das
atenções de admiradores. Durante doze anos, entre 1960 e 1972, mafiosos como
Johnny Roselli e Sam Giancana, interessados em recuperar os cassinos
expropriados pela Revolução, tentaram assassiná-lo em colaboração com a
CIA.
Apesar de
tudo, sobreviveu. E faleceu aos 90 anos, serenamente, na cama, cercado de seus
familiares.
Frei Betto é escritor, autor de “Fidel e a
religião” (Companhia das Letras), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org
Frei Betto é autor de 69 livros, editados no Brasil e no exterior. Você
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