Frei Betto
Comemora-se no
próximo 7 de setembro o bicentenário da independência do Brasil. Consta que não
houve sangue, apenas um grito, o do Ipiranga. Teria marcado a ruptura da tutela
portuguesa, assim como hoje somos supostamente soberanos frente ao FMI… E
manteve no poder o português D. Pedro I, que se proclamou imperador do Brasil.
Terminou seus dias como Duque de Bragança. Figura, na relação dinástica, como o
28º rei de Portugal.
Entre o fato e
a versão do fato, a história oficial tende à segunda. Ainda hoje se discute se
o grito decorreu do sonho de uma pátria independente ou da ambição de um
império tropical. Ficou o grito parado no ar, expresso nos rostos contorcidos
das figuras de Portinari, no romanceiro de Cecília Meireles, no samba agônico
de Chico Buarque, no coração desolado das mães brasileiras que enterram, todo
ano, recém-nascidos precocemente tragados pelos recursos que faltam à área
social e são canalizados para abastecer o pantagruélico orçamento secreto. Mães
que choram, inconsoladas, seus filhos mortos por balas “perdidas” ou vítimas do
belicismo policial que sacrifica Genivaldos sem que os assassinos sejam
incriminados pela Justiça.
O Brasil,
pátria vegetal, ostenta o semblante de uma cordialidade renegada por sua
história. Sob o grito da independência ressoam os gritos dos indígenas
trucidados pela empresa colonizadora, agora restaurada pela assepsia étnica
proposta pelos integracionistas ogropecuários, que julgam os
territórios dos povos originários privilégio nababesco.
Ecoam também
os gritos das vítimas indefesas de entradas e bandeiras; Fernão Dias
sacrificando o próprio filho em troca de um punhado de pedras preciosas;
bandeirantes travestidos em heróis da pátria pelo relato histórico dos brancos
- versão barroca do esquadrão da morte rural, diriam os indígenas se figurassem
como autores em nossa historiografia.
Abafam-se, em
vão, os gritos arrancados à chibata dos negros arrastados de além-mar, sem
contar as revoltas populares que minam o mito de uma pacífica abnegação só
presente no ufanismo de uma elite que julga violento o MST, e não a arcaica
existência do latifúndio improdutivo.
Pátria armada
de preconceitos arraigados, casa grande que traça os limites intransponíveis da
senzala na pendular política de períodos autoritários alternados com ciclos de
democracia tutelar, já que, neste país, a coisa pública tende a ser negócio
privado, com tabelas para partidos de aluguel.
Indígenas,
negros, mulheres, desempregados, sem-terra e sem-teto não merecem a cidadania,
reza a prática daqueles que sequer se envergonham de legislar em prol do
próprio bolso. Para a galera, as tripas, marca indelével em nossa culinária,
como a feijoada. Corrompem-se sonhos, valores e sentimentos ao venderem por
trinta dinheiros o projeto libertário de uma geração. Os que querem governar a
sociedade não suportam os que querem governar com a sociedade, abraçados aos
fundamentos da democracia.
Ferida em sua
autoestima e com mais de 30 milhões de famintos e quase 70 milhões endividados,
a pátria navega a reboque do receituário neoliberal, que dilata a violência,
exalta as milícias, o poder paralelo do narcotráfico, a concentração de renda.
Se o salário não paga a vida, a vida parece não valer um salário. Os que
proclamam que a única utopia é acreditar no fim das utopias trafegam cercados
de esquemas de segurança pelas ruas infestadas de famílias miseráveis e nos
semáforos se exibem jovens malabaristas do circo de horrores. Não se dão conta
de que grades e guardas os fazem prisioneiros da própria ostentação.
No Brasil, a
inflação corrói o parco auxílio, a agricultura familiar não merece crédito, os
hospitais estão doentes, a saúde se encontra em estado quase terminal, a escola
gazeteia, o sistema previdenciário associa-se ao funerário e a esperança se reduz
a um novo par de tênis, um emprego qualquer, alçar a fantasia pelo consolo
eletrônico das telenovelas.
O grito dos
excluídos ecoa neste bicentenário da independência. Ecoa na contramão dos
caminhos que restauram o passado, traçados por aqueles que ainda incensam a
ditadura e reforçam o apartheid social. Ecoa indignado frente
à avalanche de corrupção que ameaça nossa frágil democracia. Ecoa do peito
daqueles que exigem o direito dos pobres acima da ganância dos credores. Ecoa
do clamor por ética na política, transparência nos poderes da República e
severa punição aos que traíram os anseios do povo, inoculando-nos o medo de ter
esperanças.
Frei Betto é escritor, autor de “Tom vermelho do
verde” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org
Frei Betto é autor de 73 livros, editados no Brasil e no exterior. Você
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