Eduardo Hoornaert.
Faleceu
em Recife (Pernambuco, Brasil), no dia 16 de agosto de 2022, a Irmã Adélia
Carvalho, brasileira, religiosa salesiana e ‘artista da caminhada’. Ela
acompanhou, durante longos anos, trabalhos junto a lideranças populares ligadas
à Teologia da Libertação, tanto no Brasil como - por um curto período - no
Moçambique. Ilustrou numerosas publicações do Cehila-Popular (uma iniciativa do
Centro de Estudos da História da Igreja na América Latina, que funcionou entre
1980 e 2000 aproximadamente), e ajudou a elaborar, igualmente por longos anos,
grandes painéis que serviam de quadro de fundo em Cursos de Verão promovidos
pelo CESEEP (Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular),
situado em São Paulo, Brasil. Além dos clássicos ‘cartões de Natal’. Adélia formava
parte de um pequeno grupo de desenhistas, pintores e poetas, que se
autodenominavam ‘artistas da caminhada’.
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Para
apresentar a artista Adélia Carvalho, copio aqui seu texto autobiográfico ‘Falando sobre minha trajetória artística’,
que ela redigiu em 25 de agosto de 2015, em preparação de um encontro
rememorativo do Cehila, realizado em Belo Horizonte.
Vai
aqui a breve autobiografia:
‘Meu
nome é Adélia Oliveira de Carvalho.
Assino Adélia Carvalho. Sou brasileira, nordestina, natural do Rio Grande do
Norte, no município de Santo Antônio, agreste potiguar e bioma caatinga. Nasci
em Lagoa das Cobras (25/10/1937), no sítio de meu avô materno. Sou descendente
indígena, por parte de minha avó materna, provavelmente da Nação Cariri. Esses
indígenas, vindos do sul do Brasil, tempos atrás, andavam em busca da ‘Terra
sem Males’. Aqui, nesta região nordestina, se assentaram. Por não entenderem sua
língua, os portugueses os chamavam ‘tapuios’, ‘povo calado’.
Desde
cedo, gostei de me expressar em desenhos e trabalhos manuais. Diante das cores,
sombras, relevos, paisagens, imagens, esculturas, o meu instinto é de
contemplação e admiração. A natureza é o meu espaço preferido. Na escola, meus
desenhos eram admirados por serem bem feitos, com combinações de cores.
Aos
22 anos, (24/01/1960), fiz minha consagração religiosa no Instituto das Filhas
de Maria Auxiliadora (Salesianas) em Recife – PE, onde resido. Minha caminhada
artística, propriamente dita, tem início no noviciado (1958-1959), quando
começo a pintar a óleo temas religiosos. Nos anos seguintes ao noviciado,
continuo pintando, mas sem orientação. Pintei cenários, murais e quadros. Minha
preferência é por figuras humanas. Paisagens e outros elementos aparecem como
complemento.
Então,
sou autodidata, ainda que tenha feito alguns exercícios de trabalhar com modelo
vivo (a figura humana), em 1972, no atelier do Prof. Inaldo Medeiros (em
memória), na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Não tive condições de
continuar. Parei no início do caminho, com esperança de poder, algum dia, estudar
regularmente a arte do desenho e da pintura. Sentia-me insegura com o que
produzia. Em 1995, a esperança se fez presente quando cheguei a frequentar o
atelier do prof. Maerlant Denis, aqui em Recife, à Rua das Pernambucanas. Logo
ele observou que tinha um estilo próprio, tanto nos conteúdos como nas cores. Em
menos de um ano, ele me deu um certificado ‘com distinção’.
A
partir de então, me considerei artista profissional. Meus quadros eram
adquiridos com facilidade e eu recebia encomendas. Mas não me sinto qualificada
para adotar o nome de artista plástica. Isso me incomoda. Acho que é grande demais
para mim. Este sentimento talvez tenha sido motivo de nunca ter feito uma
mostra individual, preferindo expor coletivamente, na qualidade de ‘artista da
Caminhada’.
Em
minhas expressões artísticas, gosto de representar temas contemporâneos
(sacros/religiosos/místicos e, ao mesmo tempo, de caráter social). Com este
viés falo em arte religiosa ‘profanada’, onde o religioso e o profano se
misturam, tornando um só motivo. A figura feminina de olhares grandes e
profundos, ganha destaque especial.
Perante
meus trabalhos em exposições, percebo três reações diferentes nas pessoas: 1)
admiração e contemplação pelas cores vivas e alegres, pelas formas e pela temática;
2) identificação com o estilo e com os temas. Muitos começam a fazer uma
leitura do ‘seu mundo’ e do seu derredor; 3) provocação, um certo escândalo, um
choque, vendo o religioso e o profano misturados. Isso é bom para mim e me
convence de que estou alcançando objetivos concretos.
Dizem
que meus quadros são considerados obras de arte. Já são conhecidos
internacionalmente, têm nome e estilo próprios. Neles eu expresso e revelo meus
sentimentos, minha psicologia, mística, espiritualidade e o caminho por onde
caminho, enfim, minha personalidade.
Sei
que a arte, como expressão do belo e como comunicação, tem necessidade de
expansão e de buscar leitores de diferentes olhares, de diferentes culturas. Isso
levou meus trabalhos a caminharem não apenas pelo Brasil, mas por outros
continentes como Europa, Estados Unidos e África (Moçambique). Minha arte
também foi tema de dissertações e teses acadêmicas. Ela caminhou e continua
caminhando como beleza e profecia de Deus. Fui muito além do que imaginava’.
Até aqui, o depoimento de Adélia Carvalho sobre sua trajetória até 2015.
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Tomo
a liberdade de copiar aqui o texto, emitido no dia da morte de Adélia, 16/08/2022,
pelo CESEEP. Vai intitulado Páscoa de Adélia
de Carvalho (16/08/2022)
Um
passarinho, uma flor e um caju. Nas imagens de pessoas, olhos grandes e
expressivos como marca de seus traços na tela, com capacidade de prender o
olhar e até a respiração de quem vê cada obra de arte. A tela como forma de
comunicação de uma alma leve, generosa e cheia de amor.
A
voz baixa, o olhar sereno e os passos tranquilos pelos corredores da PUC sempre
foram inconfundíveis. O sorriso meigo trazia a luz presente em sua alma e que
nela não cabia, então era preciso partilhar.
Adélia de Carvalho deixa em nós todas e todos que com ela convivemos, a dor da
partida, mas também a alegria pela dádiva da convivência.
Ela
fica entre nós, pela lembrança de sua pessoa, sempre suave e amorosa e pela
vasta obra de arte que deixa como legado.
Os
cartões de Natal do CESEEP, sempre tiveram sua arte como ilustração e
inspiração e, no Curso de Verão, deixou, nesses anos todos, a beleza de cada
quadro ou painel, como produção individual ou coletiva.
Registre-se
aqui a GRATIDÃO imensa por toda a sua generosa contribuição ao Curso de Verão e
a cada uma e cada um que com ela conviveu.
Deus a acolha em sua glória!
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Gostaria
de focalizar, por uns instantes, a colaboração de ‘artistas da caminhada’, especificamente
de Domingos Sávio e Adélia de Carvalho, nos trabalhos do Centro de Estudos da
História da Igreja na América Latina (Cehila). Copio um texto que escrevi em
2015 a esse respeito: ‘O Cehila só será plenamente Cehila, quando estiver em
diálogo contínuo com a cultura popular. Fomos eclesiásticos, hoje somos universitários.
Um dia, seremos ‘populares’? Isso dependerá de nossa capacidade de tocar os
instrumentos culturais do povo e de fazer com que as pessoas do povo reconheçam
seu próprio rosto na arte criada pelo Cehila. Como escreveu o teólogo Hans Urs
von Balthasar: ‘Deus entre no homem pelos
sentidos, pela beleza e pela arte, não por abstrações nem por lógica. Penso
que os ‘artistas da caminhada’ abriram uma senda nessa direção.
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No já mencionado Encontro de 2015, em Belo Horizonte, Adélia
de Carvalho apresentou sua pintura Ameríndia.
Nela representa, por meio de uma proliferação de símbolos, a história de cinco
séculos de cristianismo no continente
ameríndio e as esperanças que o povo latino-americano nutre. Copio aquí essa
pintura, que merece ser vista com atenção.
Há a verticalidade do tradicional simbolismo cristão
medieval: o céu desce à terra. Desce o Cordeiro de Deus; desce, em cima do corpo de Ameríndia, o bico
agudo de um pássaro (será o Espírito
Santo? É ele que dará vida ao embrião?).
Em torno de Ameríndia, tudo é problemático. As
bandeiras dos Estados Unidos, da China e do Brasil flutuam no alto; a caravela de
Cristo derrama sangue na cabeça do indígena; aparece a favela pobre na
periferia da cidade altiva; esgotos e
crânios; crianças inocentes morrendo na violência das ruas; o prato de comida
vazio; ‘retirantes’ em busca de nova vida na cidade grande; o labor na cana de
açúcar dos engenhos.
Mas
a Ameríndia está grávida.
Plumas indígenas, cajus, flores, fogo novo. Vai nascer a criança, um novo mundo
aparecerá. Viagens para as estrelas. Uma nova terra e um novo sol.
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