Eduardo Hoornaert.
A costumeira entrevista que o Papa
Francisco concedeu no avião que o levou a Roma, de retorno de sua viagem ao
Canadá, no dia 29 de julho passado, respondendo a perguntas de nove jornalistas,
sete delas mulheres, e que ganhou pouco realce na imprensa e nas redes, me
surpreendeu. Tive a impressão que ele vivenciou seus dias no interior do
Canadá, junto a representantes de povos originários, como um retiro espiritual, no melhor estilo inaciano
de ‘discernimento’. Teve tempo e oportunidade de refletir (1) sobre o
magistério na igreja, do qual é o principal representante e (2) sobre o núcleo
formador da igreja.
A entrevista anda cheia de
‘discernimentos’, alguns sutis e de não fácil percepção, outros evidentes, mas
comumente mal percebidos. Guardo na mente a foto de Francisco, sentado, de
cadeira de rodas, em silêncio, à beira do ‘Lago de Santa Ana’, no norte do
Canadá. Meditando. Penso que esse foi o momento culminante dessa visita ao
Canadá, pois a entrevista no avião expressa um espírito meditativo. Não penso
que um papa em meditação suscite muito interesse nos grandes meios de
comunicação, mas aí reside, talvez, o que há de mais original no jesuíta Jorge
Bergoglio. Pois aqui, esse papa se revela, antes de tudo, jesuíta, seguidor de
Inácio de Loyola. Comento apenas alguns tópicos.
&&&&
O magistério.
A sétima jornalista a fazer perguntas
ao papa, Claire Giangrave da ‘Religion News Service’, indagou a respeito de uma
possível re-evaluação, por parte de autoridades eclesiásticas, da postura
assumida pelo Papa Paulo VI, em sua encíclica ‘Humanae Vitae’, em relação aos
anticonceptivos. E não deixou de provocar Francisco, ao lhe dizer que, ao que parece, seu predecessor, João Paulo
I, pensou que a proibição total (de contraceptivos) talvez devesse ser reconsiderada. Eis a porta pela qual o papa entra,
desenvolvendo uma reflexão que vai fundo na questão da fragilidade, até
falibilidade, do chamado ‘Magistério’, mas, ao mesmo tempo, realça sua necessidade.
Cito as palavras do papa e, num segundo momento, as comento.
O dogma e a moral estão sempre em desenvolvimento, mas sempre no mesmo
sentido. Para dizer as coisas de modo claro: para o desenvolvimento de uma
questão moral ou dogmática, há uma regra muito clara e esclarecedora. Ela foi
expressa por Vicente de Lérins no século V: ele disse que a verdadeira doutrina, para avançar, para se desenvolver, não deve
ser tranquila, mas caminha ‘ut annis consolidetur, dilatetur tempore,
sublimetur aetate’. A doutrina se consolida ao longo dos anos, se expande
com o tempo, se consolida na idade. Sempre progredindo, frequentemente em meio
a conflitos.
(Vicente de Lérins foi um monje do
século V, que vivia numa comunidade situada em Lérins, uma ilha no sul da então
chamada Gália, hoje França).
Por isso, o dever dos teólogos é a investigação, a reflexão teológica. Não
se pode fazer teologia com um ‘não’ pela frente. Logo, o Magistério lhe dirá: ‘foste
para além, voltes’, mas o desenvolvimento teológico deve ser aberto, os
teólogos (aí) estão para isso. E o Magistério deve ajudar a compreender os limites.
Então, o Magistério dirá se é bom ou não. Mas a discussão esclarece muitas
coisas. Pensemos, por exemplo, nas armas atómicas: declarei oficialmente que o
uso e a posse de armas atómicas é imoral. Pense na pena de morte: hoje posso
dizer que aí estamos perto da imoralidade, porque a consciência moral, acerca
desse ponto, se desenvolveu bem. Para
ser claro: quando se desenvolve o dogma ou a moral, está bem, mas nessa direção,
com as três regras de Vicente de Lérins.
Creio que isso é muito claro: uma Igreja que não desenvolve o seu
pensamento num sentido eclesial é uma Igreja que anda para trás, e este é o problema
de hoje, de muitos que se intitulam tradicionais. Não, não, não são
tradicionais, são 'para trás', são indietristas,
andam para trás, sem raízes: isso sempre foi assim, no século passado foi
assim. E o indietrismo é um pecado,
porque não vai com a igreja.
(O neologismo ‘indietrismo’ provém de
um advérbio da língua italiana: ‘indietro’, que significa ‘para trás’. Andar
‘indietro’: andar para trás, regressar, retroceder).
A tradição é a fé viva dos mortos, enquanto esses indietristas, que se chamam tradicionalistas, professam a fé morta
dos vivos. A tradição é precisamente a raiz, a inspiração para avançar na igreja,
e essa é sempre vertical.
(Como a raiz, que alimenta a árvore
‘verticalmente’. O papa alude à relação entre um enunciado e seu comentário ao
longo dos tempos, entre enunciados do magistério e a reflexão dos teólogos a
seu respeito, ou, em suas palavras, entre a ‘doutrina’ e a ‘tradição’).
E o indietrismo anda para trás,
está sempre fechado. É importante compreender bem o papel da tradição, que está
sempre aberta, como as raízes da árvore, e a árvore cresce...Um músico tinha
uma frase muito bonita. Gustav Malher disse que a tradição, nesse sentido, é a garantia do futuro, não é uma peça de
museu. Se você concebes a tradição cerrada, essa não é a tradição cristã.
Sempre é a seiva das raízes que o empurra para frente, para frente, para
frente. Por isso, pelo que você diz, pensar e levar a fé e a moral para frente,
mas enquanto vai em direção das raízes, da seiva, está bem. Com as três regras
de Vicente de Léris que mencionei.
Comentário.
- A entrevistadora trouxe à tona uma
ponderação do papa João Paulo I que, antes de ser eleito papa (ele governou a
igreja por apenas um mês), tinha opinado que a ‘doutrina’ oficial da igreja, referente
à contracepção, mereceria ser reconsiderada.
O assunto é da maior relevância, pois se trata de tomar posição diante de um ‘fato’,
ocorrido em 1961, e que ‘mudou a face da terra’. Eu me refiro ao que aconteceu,
no mundo inteiro, em sucessivas ondas, a partir do momento em que os serviços
da saúde pública, dos Estados Unidos, liberaram a pílula anticoncepcional para
uso comercial. Isso foi em 1961. Logo, a pílula atravessou fronteiras e ganhou
o mundo. As mulheres não ergueram a voz, não fizeram declarações, mas tomaram a
pílula. As católicas também. Segundo a
escritora carioca Rose Marie Muraro (1930-2014), a pílula anticoncepcional foi a maior descoberta, para o benefício da
mulher, em todos os tempos. Ela permitiu à mulher controlar sua fertilidade
e entrar, assim, ao mercado de trabalho. E isso foi quebrando uma opressão de
milênios. Continua Rose Marie Muraro: A
primeira fase da identidade de uma pessoa não-escrava é controlar o próprio
corpo. Pois o corpo do escravo pertencia ao dono, assim como o corpo da mulher
pertencia ao homem. Então, a mulher era escrava do homem. Hoje a diferença é
brutal. O mundo da mulher é o mundo de antes da pílula e depois da pílula.
O uso da pílula, que já vai para mais
de 60 anos, alterou profundamente as relações de gênero. Ocorreu um ganho no
plano da identidade e no plano social e político: estamos transformando a noção de política e economia. Quando
dominado pelo homem, o mundo é hierarquizado. Quando a mulher entra em cena, o
mundo se estabelece em rede. Os homens
não estão acostumados. Eles estão acostumados a mandar, a fazer guerra, e
quando se encontram com outra figura, que lhe faz frente e diz ‘não’, eles se
apavoram, pois nunca ouviram esse ‘não’. É a primeira vez na história.
Até aqui Rose Marie Muraro.
- O Papa Francisco não menciona
explicitamente o caso da pílula anticoncepcional, mas nos conduz a uma reflexão
em profundidade. Fala da necessidade e, ao mesmo tempo, fragilidade da doutrina.
A doutrina é frágil, mas necessária. É frágil por ser atravessada por emoções
do momento, é necessária por ser uma bússola num alto mar turbulento. E ele explica: a verdadeira doutrina, para avançar, para se desenvolver, não deve ser
tranquila. Aí, Francisco passa a citar em latim palavras de um monge do
século V, Vicente de Léris, que, aparentemente, navegou igualmente por águas
turbulentas, pois constata que a verdadeira
doutrina annis consolidatur, dilatatur tempore, sublimatur aetate. ‘Dilatare’
se traduz por ‘explicar com maior profundidade’ e ‘sublimare’ por ‘elevar a um
patamar superior’. Ou seja, a doutrina nunca sai ‘perfeita’ no momento de sua
primeira enunciação, ela necessita se consolidar (‘consolidetur’), ganhar uma
explicação mais profunda (‘dilatetur’) e alcançar um patamar mais elevado
(‘sublimetur’). Há uma evolução em direção à maior clareza. Com o tempo, ditos
do momento se aperfeiçoam, se corrigem, se aprofundam.
- Ao falar desse modo, o Papa
Francisco demonstra cultivar uma visão otimista da história da doutrina cristã,
do cristianismo e da humanidade em geral. Afinal, a ‘verdadeira doutrina’ está
sempre em nossa frente e não conseguimos alcançá-la senão como vislumbre de um
futuro ainda incerto. Só aos poucos, na fragilidade, a humanidade percebe o
alcance do ‘terremoto’ causado na história por figuras como Jesus. O evangelho
está em nossa frente, é coisa do futuro, não do passado.
Dou alguns exemplos do entrelaçamento
entre fragilidade e necessidade:
- Mais de dez séculos atrás, em 1095,
o Papa Urbano II (governou entre 1088 e 1099), ao declarar guerra contra os
‘sarracenos’, disse que o motivo era recuperar a terra santa das mãos dos infiéis.
Era isso mesmo? No calor da hora, parece que ele gritou: Dieu veult! (Deus quer!). Eis o que se conta. Quais os motivos,
pelo que sabemos? Em 1095 já estava claro que o Ocidente cristão estava se
constituindo em ‘periferia’ de um imenso império, centrado em Bagdad. Diante da
ameaça de uma rápida islamização da cultura europeia, o papa optou pela
ofensiva, pela ‘cruzada’, por uma guerra que Deus quer. E, por todo canto, gente vestiu a armadura, se juntou ao
exército do papa e partiu para o Oriente desconhecido, em cruzada. Houve oito
cruzadas, com número imenso de mortes e violências diversas. Qual o núcleo
‘doutrinário’ que as palavras do papa Urbano II expressam? A resposta não é
fácil.
O que sabemos é que o Dieu veult funcionou por séculos. Quando
Constantinopla, capital multissecular da cristandade grega, caiu nas mãos dos turcos,
em 1453, um susto perpassou o Ocidente cristão. De novo. Isso repercutiu na Bula
de Alexandre VI, intitulada ‘Inter Caetera’, de 1493, que afirmou que as nações bárbaras (leia:
latino-americanas) sejam derrubadas e
trazidas à fé (leia: fé católica). O papa, que não entendia muito de
geografia, pensou que um domínio sobre os ´índios’ poderia ‘encurralar’ o poder
muçulmano e facilitar a ‘reconquista’ do mundo cristão.
Não vou contar mais histórias acerca
do ‘Deus quer’. Só trago uma lembrança de minha própria infância. Quando, em
1940, os soldados alemães invadiram minha terra natal, a Bélgica, ele tinham,
gravadas, no capacete, as seguintes palavras: Gott mit uns (Deus conosco). É o ‘Deus quer’ do Papa Urbano II. E não
será que o Papa Pio XII, ao publicar, em 1959, a encíclica ‘Fidei Donum’, para
fomentar a ida de sacerdotes diocesanos para a África e a América Latina, tinha
em mente a mesma luta contra os ‘inimigos da fé’, desta vez contra o comunismo,
o protestantismo e o espiritismo? O grito ‘Deus quer’, do Papa Urbano II,
ressoou por séculos e continua ressoando.
A história de textos emanados do
magistério papal é, pois, bastante controvertida. Comentei algo a esse respeito
em meu livro Formação do Catolicismo
Brasileiro (Vozes, 1974), quando escrevi: o católico brasileiro sente certa dificuldade em interpretar a longa
tradição em que está inserido (p. 31). Pois a empresa colonial, desde seus
inícios, foi apresentada como uma guerra
santa. Um messianismo guerreiro permeou,
durante séculos, a ação dos missionários católicos na América Latina (veja o
referido livro pp. 31-65). Isso provoca insegurança.
- Mas, nem sempre a voz do magistério
é sujeita a revisões e retificações. Em 1537, o Papa Paulo III, em sua Bula Sublimis Deus, dirigida aos cristãos das Índias Ocidentais,
declara: pelas presentes letras
decretamos e declaramos, com nossa autoridade apostólica, que os referidos
índios e todos os demais povos que daqui por diante venham ao conhecimento dos
cristãos, embora se encontrem fora da fé de Cristo, são dotados de liberdade e
não devem ser privados dela, nem do domínio de suas coisas. E, ainda mais, que
podem dispor, possuir e gozar livremente desta liberdade e deste domínio, nem
devem ser reduzidos à escravidão. E que é irrito (sic), nulo e de nenhum valor tudo quanto se fizer em qualquer lugar de
outra forma (contracapa do livro História
da Igreja no Brasil, Cehila, Vozes, 1979).
- Aqui entra o discernimento de Santo
Inácio: rejeitar Alexandre VI e acolher Paulo III. A tradição postula critério.
Ela nunca é uníssona. Por vezes, é contraditória, outras vezes profética, mas sempre
‘turbulenta’, ou seja, controvertida. Os historiadores encontram enunciados, a
cada página da história, que dão testemunho da fragilidade e provisoriedade de
tudo que o homem empreende e dos esforços que ele tem de fazer para alcançar
mensagens que ultrapassem seu comum modo de sentir e reagir. Eles sabem que o
tempo condiciona e, eventualmente, redireciona o discurso. O papa vai nessa
linha ao evocar palavras do monge Vicente de Léris e nelas encontrar uma chave
de leitura.
Isso pressupõe cultivar uma visão
otimista da história e da doutrina, e penso que Francisco cultiva essa visão.
Pressupõe considerar que a ‘verdadeira doutrina’ fica em nossa frente e que só conseguimos
alcançá-la em vislumbre, num futuro ainda incerto. Pois, só aos poucos e na
fragilidade, percebemos o alcance do ‘terremoto’ causado na história por figuras
como Jesus. O evangelho está em nossa frente, não é coisa do passado. A ‘doutrina’
não é algo petrificado, enunciado para sempre. Há de se cultivar a capacidade
de salvar a intencionalidade da doutrina e precarizar sua formulação. Desse
modo, surge diante de nós uma tradição colorida, diversificada, por vezes controvertida,
outras vezes com largo consenso. Mas sempre com vida. Em contraste com o dogma frio e sem vida. A tradição
não é tranquila, ela é cheia de vida e contrastes. Captar a tradição viva é
captar a vida da igreja.
- Conclusão: tradicionalismo não é indietrismo, não é andar para trás, estar sempre fechado. É importante compreender bem o
papel da tradição, que está sempre aberta, como as raízes da árvore, e a árvore
cresce...Um músico tinha uma frase muito bonita. Gustav Malher disse que a
tradição, nesse sentido, é a garantia do
futuro, não é uma peça de museu. Por baixo de contradições corre a seiva das raízes. O fruto amadurece com
o tempo. O erro consiste em invocar as palavras do magistério fora do contexto.
Enfim, em ter medo do futuro. Não se volta ao passado por medo do futuro.
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O núcleo formador da igreja.
Já no final da entrevista, depois da
nona intervenção, Francisco diz: antes de
me despedir, gostaria de falar de algo que é muito importante para mim. E aí,
ele começa rememorando alguns momentos de sua viagem pelo Canadá. A viagem ao Canadá esteve intimamente
relacionada com a figura de Santa Ana. Falei algumas coisas sobre as mulheres,
mas, sobretudo, sobre as mulheres mais velhas, mães e avós. E sublinhei uma
coisa que é clara: a fé deve ser transmitida em dialeto, o dialeto - disse
claramente - materno, o das avós. Recebemos a fé na forma de um dialeto feminino, e isso é muito importante: o papel
da mulher na transmissão da fé e no seu desenvolvimento. É a mãe ou a avó que
ensina a rezar, é a mãe ou a avó que explica as primeiras coisas que a criança
não entende sobre a fé. E posso falar, portanto, em transmissão dialetal da fé.
Alguém pode me dizer: mas como você explica isso teologicamente? Porque
eu direi que quem transmite a fé é a igreja e a igreja é uma mulher, a igreja é
uma noiva. A igreja não é masculina, é mulher. E devemos entrar nesse
pensamento da igreja como mulher, da igreja como mãe, que é mais importante que qualquer fantasia ministerial machista ou
qualquer poder machista. A mãe igreja, a maternidade da igreja feminina. A
figura da mãe do Senhor. Nesse sentido, é importante destacar a importância, na
transmissão da fé, desse dialeto materno. Descobri-o lendo, por exemplo, o
martírio dos Macabeus: duas ou três vezes se diz que a mãe lhes deu a alma, no
dialeto materno. A fé deve se transmitir em dialeto. E esse dialeto é falado
por mulheres. Esta é a grande alegria da igreja, porque a igreja é uma mulher,
a igreja é uma noiva. Eu queria dizer isso claramente, pensando em Santa Ana.
Comentário.
- Onde está o núcleo formador da
igreja? Quando a criança reza a Jesus, é imitando a reza da mãe. Quando vai à
missa ou ao culto, é de mãos dadas com a mãe. Quando respeita o colega na
escola, é porque a mãe lhe ensinou assim. Qual é o sacerdote, o pastor, o
bispo, o patriarca, o papa, que não recebeu a primeira evangelização de uma
mulher?
- Aqui estamos com Paulo Freire, o
pedagogo do cotidiano, do vivido em família, no bairro, na escola, na rua, na
natureza, e que parte daí para construir o pensamento. Pelo que sei, Freire não
usou o adjetivo ‘dialetal’. Mas ele ia gostar, penso, em saber que um papa
valorizasse o dialeto materno. Um olhar novo, inusitado, original. Francisco
não cita Paulo Freire, mas diz sem rodeios que a igreja não é uma fantasia ministerial machista, mas um fato que pode ser observado a cada dia:
a mãe conduz seu filho a Jesus falando em dialeto.
Não fala em latim, nem em inglês, nem na linguagem da TV e dos noticiários. Fala
dialeto.
- O que acontece quando o máximo
representante da igreja ‘masculinizada’ medita sobre o fato que a igreja, em
sua concretude, é feminina, não somente sustentada por mulheres, mas
evangelizada por elas, dialetalmente? Provavelmente não acontece nada em ambientes
oficiais. Mas a palavra é lançada e dará seus frutos com o tempo. Francisco não
tem pressa, não reivindica nada.
Simplesmente diz: ‘Abram os olhos, reparem o que acontece na realidade’.
&&&&
Jesus e a mulher.
A originalidade da fala do papa remete
a uma reflexão sobre o comportamento de Jesus em relação à mulher. Em primeiro
lugar, observo que, nos evangelhos, diversas mulheres se comportam diante de
Jesus como mães, como aquelas que ajudam o filho a enxergar, como agir em
determinadas circunstâncias e a corrigir comportamentos incorretos. A mulher
siro-fenícia chama a atenção de Jesus para seu enraizado nacionalismo judaico,
a mulher doente lhe mostra que é preciso saber parar para atender às pessoas e
a mulher do perfume lhe dá uma lição inesquecível de ternura (sucessivamente Mc
7, 24-30; Mc 5, 24-34 e Mc 14, 3-9). Mais tarde, quando está pendurado numa
cruz, as mães estão presentes, de longe. Os
homens fugiram todos, como relata o
Evangelho de Marcos.
Podemos cavar um pouco mais. Em 1989,
a Editora Vozes publicou um pequeno livro, intitulado Fragmentos dos Evangelhos apócrifos, em que aparecem textos que mostram
como o comportamento de Jesus em relação à mulher suscita, já no século II,
intensas discussões. Evoco aqui dois desses textos: o Evangelho de Maria (pp. 139-144) e o último ‘logion’ (n. 114) do Evangelho de Tomé (p. 99).
- O primeiro, desde sua publicação em
1955, atrai a mais viva atenção dos comentaristas. É baseado em dois fragmentos
gregos do século III e numa tradução copta do século V, cujo manuscrito foi
adquirido em Cairo no ano 1896 e só publicado em 1955, na onda de publicação
dos textos de Nag Hammadi. O texto parece ter circulado desde cedo nas
comunidades, pois consta em diversas referências patrísticas. Desde sua
pristina divulgação, talvez já no século II, suscitou a mais viva resistência
por parte de uma igreja em rápido processo de masculinização, cujo símbolo
principal era a figura de Pedro. Sua circulação suscita sentimentos subconscientes,
que emergem de um fundo multimilenar. Cria desconforto, resistência e, em alguns
casos, conflito aberto. O Evangelho de
Maria, então, passa por um período de marginalização e suspeição, para
depois, com a vitória da ‘ortodoxia’ após séculos de luta contra ‘heresias’, desembocar
em silêncio e ulterior esquecimento.
A questão é que, no referido
evangelho, Jesus coloca a mulher no centro da igreja. A figura central se chama
‘Maria’. Trata-se de Maria Madalena. Embora o nome ‘Madalena’ não apareça no
título, é claro que se trata da apóstola de Mágdala, pois seu nome vai 17 vezes
mencionado no documento.
Cito alguns dos trechos do Evangelho
de Maria que interessam mais. Pedro, decididamente, não gosta nada da
aproximação entre Jesus e Maria Madalena. Será
que o Salvador falou secretamente com uma mulher sem combinar conosco? Será que
nós temos de escutá-la? Será que ela é maior que nós? Levi interfere: Se o Salvador lhe deu valor, quem é você
para rejeitá-la? Sem dúvida, o Salvador a conhece muito bem. Ele tem mais
estima por ela que por nós. E fica nisso. A discussão termina ali.
- Um segundo texto é o Evangelho de Tomé, que mencionei acima. No
‘logion’ 114, no final do texto, Jesus assume a defesa de Maria Madalena: Simão Pedro disse: ‘Que Maria saia do nosso
meio. As mulheres não são dignas da vida’. Disse Jesus: ‘Vejam, eu vou
fazer dela um homem, par que ela também se torne um Sopro Vivo, igual a vocês,
homens. Pois cada mulher que se fizer homem entrará no Reino dos Céus’ (Vozes
1997, p. 211). Jesus se refere aqui ao preconceito,
muito difundido na época, de que a mulher não seria apta a pensamentos mais
profundos. Ele declara que seu posicionamento diante da mulher foge a esses
preconceitos. Eu vou fazer dela um homem,
ou seja, ‘para mim não faz diferença, homem ou mulher’. Vale ressaltar aqui que,
dentro e fora do movimento de Jesus, não se admite, na época, que uma mulher
exerça autoridade sobre homens. O filósofo latino Celso, do século II, acha
ridículo ver um homem sentado aos pés de uma mulher a receber conselhos. E o
teólogo Orígenes, que escreve para refutar Celso, não sabe bem o que dizer
sobre esse ponto, pois não está isento do mesmo preconceito. Ele também acha
‘indecente’ uma mãe ensinar as coisas aos seus filhos. Às filhas, sim, mas não
aos filhos. Ele acha que uma mulher que ensina a meninos desmoraliza o ensino
cristão (Orígenes, Homilia em
Isaías 6, 3. Citado em: Nürnberg, R.,´Non decet neque
necessarium est, ut mulieres doceant´, em: Jahrbuch für Antike und Christentum,
31 [1988], pp. 57-73).
Não resisto à vontade de terminar
este texto citando um trecho do artigo As mulheres e o futuro da Igreja, escrito pelo teólogo francês Joseph Moingt
(1915-2020), jesuíta como Bergoglio, e publicado na Revista jesuítica francesa
Études, de janeiro de 2011.
Os encontros de Jesus com mulheres não têm nada de casual. Principalmente
no Evangelho de João aparece a intenção de Jesus no sentido de colocar a mulher
como exemplo. Jesus pratica seu primeiro milagre, em Cana, por solicitação de
sua mãe; em diversas ocasiões erige mulheres como modelos de fé e realiza curas
que atribui à sua fé; da unção recebida de uma mulher na vigília de sua morte
faz um memorial de sua paixão que prescreve seja transmitida às gerações
futuras; dá crédito às duas irmãs, suas amigas, Marta e Maria, como autênticas
discípulas, recebendo de uma delas o melhor testemunho de sua divindade: ‘Tu és
a Ressurreição e a Vida’, e apresentando a outra como o perfeito receptáculo de
sua Palavra: ‘Maria escolheu a parte melhor, que não lhe será tirada’. Enfim, é
a outra mulher, outra amiga, Maria de Mágdala, que aparece por primeira vez na
saída do túmulo e a quem confia a mensagem de sua ressurreição, a fim de que ela
comunique a Boa Nova aos seus apóstolos.
Jesus acreditou nelas, confiou nelas, lhes confiou seu Evangelho, como
aos seus apóstolos, talvez de modo diverso: não as envia a percorrer o mundo,
mas, de modo não menos autêntico, faz delas transmissoras da missão que havia
recebido do Pai de difundir a vida no mundo. Desse modo, convida sua igreja a se
apoiar em mulheres para continuar sua obra. Em suma, não pode ser deduzido
nenhum princípio de exclusão das palavras ou dos exemplos de Jesus, em nada
diversos de uma insistente exortação a não temer de encarregar do ministério do
Evangelho qualquer um, homem ou mulher, uma vez que tenha bastante fé nele para
oferecer-se a esta tarefa: porque somente ele dá a força de levá-la em frente e
de fazer que produza frutos.
Mas o problema principal não consiste em dar poder às mulheres. Não nos
embalemos em ideias idílicas: encontrar-se-iam facilmente mulheres extasiadas
pela ideia de entrar no personagem do padre, transmitindo-nos igualmente uma
dose de sedução, da qual se sabe que torna o poder mais perigoso. Trata-se,
acima de tudo, de renovar o terreno das comunidades cristãs, de nelas instaurar
liberdade, alteridade, igualdade, corresponsabilidade, cogestão, de nelas
deixar penetrar as preocupações do mundo exterior, de tornar as celebrações
mais conviviais, à imagem das primeiras refeições eucarísticas nas quais se
compartilhava o pão e os víveres sob a presidência benévola de um pai de
família.
Não se correrá, então, o risco de subverter o poder monárquico sobre o
qual a tradição construiu a organização da instituição eclesiástica? Talvez,
mas devemos apavorar-nos em relação a isso antecipadamente? Não é da boca de uma
mulher que vem a profecia: ‘Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os
humildes’? Não se trata de subverter seja o que for, mas de exaltar o que é
injustamente discriminado.
A mulher é o futuro da Igreja? A mulher é e será o futuro da Igreja.
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