Maria Clara Lucchetti Bingemer
Eu a chamava de Anete e ela a mim, de Claire. Conhecemo-nos na
PUC-Rio, no curso de Jornalismo, em 1968. Ano de chumbo, mas também de
valores vividos, utopias ardentes, buscas febris e verdadeiras. Ela vinha do
Colégio Santa Úrsula e eu, do Sion. Órfãs de pai ambas, tínhamos mães fortes e
“rochosas” em virtude, firmeza e dedicação. A amizade nasceu entre nós e nunca
mais nos deixou.
Nesse tempo ela ainda não era Ramalho, mas Abreu Monteiro. E à
medida que a conhecia mais descobria sua ascendência ilustre de Capistrano de
Abreu, da Madre Honorina, aliás Teresa de Jesus, primeira santa brasileira, e a
inteligência e cultura como marcas da família. Anna Maria era doce e forte ao
mesmo tempo. Muito feminina, vaidosa e elegante, era ao mesmo tempo capaz
de enfrentar as mais fortes tempestades com coragem e determinação.
Conjugava sensibilidade e racionalidade, sabia combinar inteligência
privilegiada com humor invejável, que se refletia em sua escrita jornalística
apurada, de estilo irônico inigualável.
Ela se formou antes de mim, pois me casei no meio do curso.
Presente ao meu casamento, foi também uma das primeiras a nos receber de volta
do ano passado na França, já com a primeira filha nos braços. Anna Maria também
casou-se e deu à luz o filho Christiano, nascido um mês antes de minha filha
caçula.
Ela acompanhou minha entrada na teologia e a trajetória acadêmica pela
pós-graduação em Roma. Eu segui de perto sua carreira de jornalista
brilhante: trazia saborosas notas sobre a vida social carioca, fazia análises
interessantes e sempre atualizadas sobre política, cultura e acontecimentos
recentes na vida do país.
Sua maior característica sempre foi a alegria com a qual seduzia as
pessoas que a conheciam. Sua presença era garantia de festa, bem-estar e
boas gargalhadas. Mas também de papo sério, inevitavelmente marcado por
um otimismo indestrutível. Crítica mordaz, sempre sabia salvar o lado bom
das coisas e iluminar os ambientes com seu refinamento e brilho.
Vibrei com ela quando Christiano, seu filho, tornou-se um chef renomado
e talentoso. E quando Antônia e Olívia, suas netas, inauguraram um novo e
precioso capítulo em sua história luminosa de vida. A beleza das meninas
refletia-se no rosto da avó, que a devolvia multiplicada e cheia de brilho.
Eu a vi fragilizada em algumas ocasiões. Notadamente quando morreu
sua mãe, dona Honorina, por quem tinha verdadeira adoração. Ou durante a
enfermidade de Fernando, seu companheiro querido, falecido ainda muito
jovem. No entanto, essa fragilidade vinha sempre banhada da
luminosidade do amor à vida e da alegria que a tudo vencia. Nossa
irmandade se construía na interlocução desses seus traços luminosos com minha,
às vezes, excessiva seriedade. Com seu jeito de ser ungia e flexibilizava
minhas articulações um tanto rígidas e seu humor insuperável acabava vencendo
qualquer dureza.
Anna Maria tinha uma irmã mais nova a quem era muito unida. Eu era
filha única e ela se tornou de certa maneira minha irmã, a amiga que meu
coração escolheu e que comigo partilhou praticamente uma vida inteira. Minha
mãe a amava como filha, meu marido como irmã e meus filhos a tinham em conta de
tia muito amada, aberta e de escuta pronta, captando bem seus desejos vindos de
outra geração.
Quando ela me contou que tinha um problema sério de saúde, acompanhei
seu otimismo e acreditei com fé firme em sua recuperação. Claro.
Anna Ramalho só combina com vida, e mais vida, e força e vitória. Segui
de perto o tratamento, animada com sua atitude positiva e certa de sua
cura.
É por isso que me encontro hoje desarvorada e sem entender nada. A
piora em poucos dias, as últimas mensagens trocadas, a visita marcada em sua
casa adiada e que não acontecida. Depois o silêncio. As mensagens
não respondidas e as notícias cada vez piores chegando até a notícia de sua
morte.
Ainda não realizei plenamente o que vai significar não poder mais ouvir
sua voz alegre, suas piadas inteligentes, suas observações finas e
perfeitamente coerentes. Não acredito que não vou ouvir mais meu
nome na versão que ela criou – Claire – em seus áudios e chamadas telefônicas.
O vazio que sinto corresponde ao tamanho da irmandade que nos unia e me fez
experimentar a graça de ter uma irmã em minha unicidade filial.
Querida Anna, recuso-me a dizer adeus. Digo até já, até breve,
porque sei que em cada momento, em cada esquina do que ainda me resta viver vou
encontrar seu rosto alegre, seu sorriso inspirador. Vou ouvir sua voz
dizendo coisas sábias e ao mesmo tempo me fazendo rir às gargalhadas. Você
habita em mim e é parte intrínseca desta vida que vivemos, tão rica e
fecunda. E que continuaremos a viver, pois ambas temos fé e esperança.
Nosso Deus é o Deus da vida e sua última e definitiva Palavra só pode ser de
vida. Vida essa que já se pode sentir nas milhares de mensagens de
carinho das pessoas que foram afetadas por sua passagem e expressam o que você
é: fonte de vida para tantos e tantas.
Maria Clara
Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de
“Teologia latino-americana:raízes e ramos” (Editora Vozes), entre outros
livros.
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